Capítulo 23

-Boa tarde, senhorita Bernardi. - me saudou uma mulher de meia idade que estava sentada em uma poltrona cinza.

Seu escritório era espaçoso, decorado com cores neutras dando uma ideia de calma, quase como se quisesse acalmar seus pacientes, deixando-os à vontade, ela vestia um vestido de linho tubinho com caimento perfeito na cor azul claro com um salto scarpin na cor bege. A definição de elegância.

-Boa tarde, pode me chamar de Giu.

-Ótimo, me chame de Ellen. Sente-se por favor. - Assim o fiz, retirei meu sobretudo e coloquei no braço do sofá e me sentei de frente para ela, levantei os óculos de sol. - Essa é sua primeira consulta, certo?

-Sim.

-O que te fez marcar esta consulta?

-Minhas amigas e eu chegamos à conclusão de que precisava lidar com algumas coisas. - Fui evasiva ainda não estava totalmente a vontade.

-Giu, isso é apenas uma conversa. - me tranquilizou.

-Então, o seu caderno é apenas de enfeite? - disse me referindo ao caderno que ela tinha em seu colo.

-Justo, mas é o meu trabalho anotar o seu progresso, mas se te deixa mais à vontade vou deixá-lo de lado.

-E como vai acompanhar meu progresso? - estava me esquivando e ela sabia.

-Acredite quando digo que não vou me esquecer de você. Pense no caderno como uma lembrança, iremos conversar e ele irá nos ajudar a nortear como vai ser aproveitado nosso tempo.

-Tudo bem pode usar. - disse ainda rígida.

-Tudo bem. - Ela pegou de volta o caderno. - Fique à vontade, se quiser deitar, água, suco, café, biscoitos. Fique à vontade.

-Achei que tínhamos apenas uma hora.

-E temos, mas se for assim que deseja passar nosso tempo para que aprenda a confiar em mim, tudo bem.

-Claro que diz isso, já paguei a consulta. - Ela riu da minha perspicácia.

-Estou apenas tentando fazer o que acho ser melhor para nossa conversa fluir e você se sentir à vontade comigo, você precisa confiar em mim, senão não irá levar isto a sério, independente dos motivos que tenha. Você pode simplesmente ficar calada e está tudo bem. Quando estiver pronta estou aqui. - disse ela me olhando nos olhos.

Ficamos assim por uns cinco minutos até que decidi levar a sério e dar a ela uma chance, um voto de confiança.

-Eu tive uma briga com minhas amigas, descontei nelas minha raiva dos meus pais. - Confessei sem olhar nos olhos dela.

-E por que?

-Eles me ligaram, tivemos um jantar com outra família e ali ficou claro que eles estavam praticamente arrumando um casamento para mim, agiram como se eu fosse um animal que precisava de rédeas e estivessem passando pra outra pessoa. E essa não é a pior parte, o meu colega de classe que seria meu futuro marido, ele gosta de mim, mas nunca dei bola, apenas ignorei até que ele percebesse, mas o infeliz nunca percebeu e então tive essa briga com minhas amigas.

-Por que não reclamou ou fez algo que mostrasse a eles o que sentia?

-Você não conhece meus pais. - Dei uma risada vazia.

-Então me faça conhecer.

-Minha mãe é perfeita ou pelo menos age como se fosse e como sua filha devo agir da mesma forma, "a perfeição é apenas mais um degrau para ser alcançado Giuliana" é o que ela diz, meu pai a ama tanto que fecha os olhos para o modo como ela age. Ela não é uma pessoa ruim, só não é boa mãe.

-Por que acha que ela não é boa mãe?

-Que tipo de mãe obriga a filha a ser perfeita? Quer dizer que outras opções eu tinha? - Falei levantando os olhos para ela.

-Falar alguma coisa, por exemplo.

-É e ver nos olhos ela a decepção, sem contar que ela iria fazer uma chantagem emocional. Com a minha mãe a melhor forma de se livrar de um problema com ela é justamente fazendo o que ela quer. Foi assim minha vida toda.

-E o que mudou? Você disse que ela foi assim a sua vida toda, e você tem 21 anos, então não é algo recente, no entanto, aqui está você só agora. Você poderia ter vindo assim que completou 18 anos. O que mudou?

-Eu disse minhas amigas, nós moramos juntas e eu explodi com elas.

-Há quanto tempo moram juntas?

-Dois anos, mas nos conhecemos a vida toda.

-Elas sabiam sobre o que seus pais fazem com você?

-Sim, mas todas as vezes eu apenas dizia que queria ficar sozinha como da vez passada e elas me deixavam e depois tudo voltava ao normal no dia seguinte, porém quando foi da última vez elas me confrontaram.

-O que mudou?

-Minhas amigas, elas...

-Não acredito em você. - Ela me interrompeu, fechando seu caderno.

-Como?

-Não acredito em você e você sabe que está omitindo as coisas aqui, olha eu quero te ajudar, mas preciso saber o motivo que te fez vir aqui.

-Como sabe que estou omitindo? Nem nos conhecemos.

-Não precisamos nos conhecer para eu ter uma ideia de quem você é. Agora mesma está tentando ganhar tempo.

-Não é grande coisa ok?

-Então me diz o que é.

Respirei fundo.

-Eu tenho um relacionamento nada convencional. - Fui vaga.

-Explique.

-Eu tenho um envolvimento consensual e eles sabem, com 3 homens.

-Poliamor? - ela falou com naturalidade.

-Sim. - Esperei por um julgamento que não veio, não sei se por estar sendo minha terapeuta ou porque de fato ela não ligava.

-Então, está aqui por eles. Eles sabem disso?

-Sim.

Ela anotou algo em seu caderno e me deixou apreensiva.

-Me conte mais sobre seus pais. Algum momento que queria compartilhar?

Há 6 anos ...

-Impressionante como sua filha consegue ter tamanho domínio dos idiomas. - Elogiou mais uma das amigas de minha mãe.

-Giuliana não é apenas influente em francês, alemão, espanhol, italiano, latim, ela também é uma exímia musicista – enalteceu meu pai.

-Sério? Ela poderia tocar algo para nós? - perguntou um sócio da empresa de minha tia Carla.

-Claro. Giuliana, querida. - Minha mãe me chamou. - Poderia tocar algo para nós?

-Alguma preferência? - perguntei de forma bastante educada, voz baixa, mas não tanto a ponto de as pessoas precisarem me perguntar o que disse. Apesar de italianos adorarem falar alto, meus pais não encorajavam esse meu comportamento. Diziam para ser diferente do que se esperavam.

-Aquilo que preferir meu bem. - disse papai.

Assenti e fui em direção ao piano.

Estávamos tendo uma reunião para poucos amigos e familiares. Apesar de mamãe e tia Bella não se darem bem, minha mãe não cometeria a indiscrição de não a convidar para suas recepções e dessa forma alimentar fofocas indesejadas.

Decidi tocar a música Thinking out Loud de Ed Sheeran, tomei a liberdade de começar a cantar de forma bem apaixonada, como se de fato estivesse vivendo uma situação como a da música. Essa era uma dica valiosa que aprendi em minhas aulas "mesmo que não esteja sentindo o que a música diz, transmita a mensagem como se fosse. Ninguém irá se atentar para o que você realmente sente se fizer o que disse, aliás talvez algumas pessoas o façam, mas é assim que descobre como poder melhorar suas táticas de convencimento."

Considerei um sucesso quando todos me aplaudiram e perguntaram se eu tinha algum namorado.

Missão cumprida. Todos estavam tão focados na música e na minha paixão que nem notaram que aquilo me era indiferente.

-Uau Giuliana, quanta paixão você colocou nessa música. - disse meu tio Giovannni, marido de tia Bella.

Os demais convidados pareceram concordar. Então dei a resposta padrão.

-É apenas o que desejo viver, como os meus pais.

Meus pais sorriram para mim, pela minha resposta e performance no piano, mas quando meus olhos cruzaram com os de tia Bella...ali estava a verdade, ela sabia o que eu realmente fiz, sabia que na verdade era somente mais uma das muitas respostas ensaiadas que dava por aí, afim de manter a imagem de "família perfeita". Era sempre um misto de pena e raiva, este último dedicado à sua irmã mais nova, por me fazer dizer coisas como essa.

Mas meu pai parecendo ignorar a troca de olhares que tive com minha tia, prontamente afastou a ideia de envolvimentos amorosos alegando que eu precisava estudar e me focar nos passos para o futuro, o que de fato estava sendo muito bem trilhado na Escola Salvatori, onde tinha ganhado os troféus em primeiro lugar na turma de debates e na feira de ciências. Além claro de ser líder de torcida, jogar lacrosse e fazer tantas aulas extracurriculares como me era permitido.

Eu era um troféu. Um perfeito troféu.

Sorrir, acenar, falar pouco, mas bem, olhar a postura. Todos os eventos era sempre a mesma coisa. E sem falhas. Falhas eram inadmissíveis.

Assim que contei para ela sobre aquele momento em minha vida, percebi que nunca de fato tinha contado para ninguém.

-Como se sentiu?

-Eu cantei muito bem, sem desafinar.

-Não duvido. Mas perguntei como se sentiu, como foi para você encenar aquilo?

-Onde quer chegar?

-Quando cantou aquela música no que estava pensando?

-Eu queria viver o que meus pais vivem, eu disse isso quando meu tio Giovanni me perguntou.

-Era verdade?

-Não. - disse abaixando os olhos.

-Tudo bem se você não quiser dizer.

-Eu não sei o que senti. - Confessei. - eu não senti, eu acho. Apenas fiz o que queriam, eles queriam que eu mostrasse o quão boa eu era, aliás boa não, perfeita, para que pudesse me exibir como um troféu e eu fiz.

-Entendo. - Ela anotou algo em seu caderno. - me fale sobre seus envolvimentos amorosos.

-Bom, eu conheci Logan no primeiro ano de faculdade, sempre flertávamos, mas nada sério, confesso que sempre o achei idiota. Quanto a Luca, foi nesse semestre que tivemos aula pela primeira vez, ele é meu professor e sempre houveram farpas entre nós dois, ele era um imbecil comigo. Sobre Carson foi uma noite numa balada, onde dias depois, quase uma semana nos encontramos em uma consulta ginecológica, ele substituindo minha médica e bom, não houve nada de inapropriado, ele foi perfeitamente profissional, acho que eu quem não fui profissional tendo pensamentos inapropriados. - disse dando uma risada baixa só de lembrar.

-Então vocês começaram a se relacionar quando?

-Tem pouco mais de uma semana, veja bem, jantei com eles numa quinta e na próxima quarta ocorreu o jantar com meus pais, na quinta passada fomos para casa de Luca e aqui estou então, uma semana e quatro dias.

-Como funciona o seu relacionamento?

-Não precisamos estar sempre no ato sexual apenas os três, pode ser dois ou um e isso não diminui em nada.

-Não estava me referindo a isso, mas é bom saber. - Ela anotou mais alguma coisa. - me refiro que você tem uma semana e quatro dias. Me parece que vocês estão envolvidos de certa forma que mais parecem meses.

-Estamos indo rápido demais e nem é questão de forçarmos isso. É simplesmente natural.

-Explique.

-Passei o primeiro fim de semana com eles. Uma das vantagens de ser adulta, meus pais morarem longe e morar com minhas amigas, era justamente não ter que agir como uma adolescente. Nós conversamos e entendemos melhor a situação, não houve pressão, não houve ciúmes, bom não uns com os outros.

-E este último também, certo?

-Sim, também. E eu não sei se isso é apenas um clima gostoso de começo de namoro já que essa é minha primeira relação adulta ou se estamos correndo enquanto deveríamos estar andando.

-Tempo é algo relativo. Você pode estar com alguém ou alguéns, há anos e simplesmente não se conectar da mesma forma com alguém ou alguéns em pouco tempo, então é relativo.

-É meu primeiro relacionamento com alguéns e os deles também e eu me preocupo se isso é algo que possa digamos, atrapalhar as coisas.

-Por que acha isso? Ocorreu algo?

-Não, quer dizer nós tivemos uma crise de ciúmes, eles com relação ao George meu colega de classe que tem uma queda por mim, mas se aliou aos seus pais para tentar me pressionar para um envolvimento e ainda por cima teve a audácia de dizer que não vai desistir de mim, mas o que é isso por acaso? Ele pensa o que? Eu não o quero, nem lutando, nem deixando de lutar, nem nada. Nunca demonstrei querer ele, mas ele aparentemente via futuro onde não tinha. Enfim, eu ia apenas dizer claramente para George que não o queria em algum momento, pois minhas amigas me fizeram entender que se fosse o contrário se um deles ou todos eles apenas demonstrassem que não estão na mesma vibe que alguma mulher esteja com eles e não dissesse nada, eu não iria gostar. Mas então ocorreu o que contei e eu decidi deixar claro, resultando nele dizer que não ia desistir de mim. Quanto a mim, bom, estávamos ontem na piscina e eu vi algumas mulheres flertando com eles e tudo isso no meio tempo em que eles subiram, eu fiquei no apartamento de Luca para pegar o protetor solar e passei ali mesmo mas levei mesmo assim, quando subo vejo elas praticamente se jogando em cima deles, eu então deixo minha lingerie vermelha quase transparente amostra pois não tinha biquini ali e eles vendo isso vem pra perto de mim, elas vendo isso chamam eles pra passar protetor nelas, e aí não me segurei, resumo da história empurrei elas na piscina, na verdade empurrei uma e as outras duas estavam atrás e foram juntos. E antes que chame nossa relação de tóxica...

-Por que eu chamaria de tóxica? - ela me interrompeu.

-Ué, não é a moda? Não estou naturalizando nenhum tipo de relação que seja tóxica, abusiva, mas aparentemente fazer o que fizemos pode se encaixar como tóxico, na verdade mais o que eu fiz.

-Não acho que seja tóxico, apenas mostrou que não é passiva. Entenda, existe uma diferença entre ser tóxica e ser explosiva. No primeiro, você delimita regras para que uma determinada ou algumas determinadas pessoas sigam, senão seguirem há consequências e na maioria das vezes não é bonita e isso ocorre quando o agressor faz a vítima achar que de fato tem culpa. No segundo, você apenas reagiu de maneira inesperada, e muito espontânea.

-Quando conversamos na primeira quinta, eles deixaram claro que não queriam George perto de mim como ele ficava e cada vez que eles se irritassem com isso me dariam 10 chibatadas cada na bunda. Essa é uma boa hora para te dizer que praticamos BDSM também?

-O que sentiu quando eles disseram isso?

-Tudo vai ser sobre isso agora, "o que você sentiu"?

-É sua vida, não a minha.

-Se você não tiver uma vida bem resolvida, não há esperança no mundo. - Resmunguei fazendo ela rir. - Tesão, quer dizer sei que não faz sentido, mas a ideia deles me punirem por algo, é simplesmente uma coisa que me deixa a mil.

-BDSM é um estilo de vida, muitos não gostam de definir assim, mas enfim, aqueles que seguem o SSC, ou seja, são seguro e consensual, sabem estipular limites, ou seja, presumo que haja palavras de segurança e que você possa dizer o que está ou não disposta a fazer e até onde chegar, não é? - sinalizei que sim. - Se eles seguem isso, então não é tóxico, mas a partir do momento que suas vontades forem ignoradas, onde você não esteja confortável ou tenha sentido o ápice da prática e não esteja mais aguentando e eles insistirem, aí já são outros quinhentos. Dito isso, não é tóxico nem vocês praticarem BDSM, nem você sentir tesão por isso.

-Você deve achar que sou louca.

-Você é uma mulher que se excita com a dor, tem três homens em um relacionamento e eles estão conscientes disso. Onde está a loucura? - ela me perguntou séria.

-Não sei, é só que nem todos achariam assim.

-Inclusive você?

-Como?

-Como denomina o seu relacionamento?

-Temos um envolvimento fechado e praticamos BDSM.

Ela anotou algo em seu caderno. Nesse momento o cronômetro apitou sinalizando que acabou o tempo, uau, nem tinha percebido.

-O tempo ainda não acabou. Faltam dez minutos, na sessão inicial eu reservo esse tempo para definirmos um horário que possamos nos adequar melhor. - disse ela terminando de anotar algo e fechando o caderno.

Decidimos que iria lá, as segundas, quinta e sexta no mesmo horário.

-Então Giu, nesse primeiro encontro achei bem proveitoso e como dever de casa quero que reflita sobre algo. Você falou sobre sua mãe e o modo como todos devem fazer o que quer, falou do seu pai que ele fecha os olhos para o modo como ela age com você e aparentemente apoia. Falou sobre seus envolvimentos pessoais, como gosta de chamar, sobre suas amigas te incentivando a vir aqui. Mas não falou sobre seus tios a quem você citou quando perguntei sobre um momento seu. Quem são eles? Eles também fechavam os olhos? Foi um ato de coragem ter vindo aqui, as pessoas não entendem o quanto é bom falar sobre certas coisas, fico feliz por ter vindo realmente apesar de saber que mais uma vez não fez algo por si mesma e você sabe disso também. Então para próxima consulta, quero que me diga quem é a Giu.

Oooi meus amores, tudo bom?

Mais uma semana começando e aqui está mais um capítulo.

O que acharam dessa sessão de terapia?

Me contem aqui o que estão achando, suas teorias.

Continuem votando, comentando, compartilhando, isso é de extrema importância para mim.

Amo vocês e até quinta.