II.

No elevador, Amelia estava de braços cruzados, um suspiro atrás do outro. Liam estava na frente dela, como proteção. Ele cuidava dela como se fosse sua, mas sabia que Amelia só poderia ser dela mesma. Quando ele pressionou o botão do térreo, as portas se fecharam e ele pode sentir o cheiro doce da garota. Sabia qual perfume ela usava, mas sabia também como ele complementava o aroma natural de sua pele. Era como se entrasse em um campo de morangos. Aquele era seu detalhe favorito nela e o que quase sempre fazia ser difícil manter seus sentimentos por ela guardados em seu peito. Toda a vez que a fragrância frutada invadia sua mente ele sentia vontade de abraçá-la o mais forte que conseguia. Segurar essas vontades era o maior desafio do dia a dia de Liam. 

Ele era alguns anos mais novo que Amelia e tinha sido recrutado quando foi pego tentando hackear os servidores do site do hotel que servia de fachada para todo o esquema de Gary. Uma equipe massiva que foi capaz de descobrir sua localização, apesar de não ter sido fácil, Quando ele foi levado até a base da família, o chefe ficou encantado com as habilidades do jovem e se sentiu obrigado a convidá-lo para ser seu subordinado. Apesar de já imaginar o que se passava naquele lugar, Liam não teve muita dificuldade para tomar sua decisão. Dois motivos estavam claros em sua mente: o dinheiro; e uma jovem, de olhos assimétricos, um azul e um castanho, pele branca como um tela pronta para ser pintada, o rosto delicado emoldurado por longos cabelos pretos e os lábios inchados, pintados de sangue, sequela de um soco que havia levado de um treinamento. 

Os dois se viram pela primeira vez em um corredor. Amelia andava de cabeça levantada, apesar de estar mancando. Era alta, com o corpo coberto por uma calça larga de moletom cinza, manchada de vermelho naquele momento, e um top escuro, que mostrava os cortes em sua barriga. As mãos estavam cobertas de ataduras, tinham rastros de que haviam machucado muitos rostos. O cabelo estava grudado pelo suor próximo as orelhas, pra ele, foi um charme. A visão dela era de um garoto que tentava ser homem, sendo carregado por homens de terno enquanto suas mãos estavam atadas com lacres plásticos. O cabelo era castanho escuro, curto, parecia ter saído do barbeiro naquela manhã. O olhar era azul acinzentado, mas em um momento em que os raios do pôr do sol bateram nele, ela jurou que eles eram verdes. A boca era pequena, mas com lábios cheios. Estavam machucados como os seus, mas ele também acompanhava um nariz bem debilitado, se ela tivesse que apostar, diria que estava quebrado. Ela viu que ele estava com dor, era claro. Seu maxilar bem definido estava tenso e em alguns segundos ele mostrava os dentes, o que deixava a linha do queixo mais fino bem acentuada. Mas Liam tinha uma expressão firme, séria. Não reclamava. A força dele a deixou com uma sensação de estar com um igual. Ele não tinha medo, apesar de saber que poderia estar caminhando para sua morte. Tinha passos rígidos, fazendo a barra da calça jeans escura que usava bater contra seu tênis. Os músculos não chamativos, mas definidos, estavam à mostra pela camisa rasgada que pendia quase na altura da cintura. 

No momento que passaram um pelo outro, seus olhos se encontraram. A admiração que ambos sentiram naquele momento fez com que o ar ao redor deles ficasse estático. Liam poderia jurar que levou um choque quando se cruzaram, mas o que causou essa sensação nele foi o sorriso, o minúsculo sorriso de canto de boca, que Amelia riscou em seu rosto. Ele não sabia se ela estava rindo da cara dele, se havia sido uma saudação ou se era apenas imaginação dele depois de ter apanhado. Mas naquele momento, aquela face foi tatuada em seu coração e ele nem imaginava que seria para sempre. 

Durante seu treinamento, Liam se esforçou todos os dias para ficar ao lado dela. Inicialmente, ela o achava irritante. Quando se era aceito pela família, um longo período como recruta começava. Eram mais de 80 jovens convivendo em um alojamento e passavam o dia todo aprendendo e treinando luta, pontaria e uso de armas brancas. Revistas periódicas aconteciam com frequência e qualquer recruta pego com drogas era imediatamente expulso. Obviamente, essa pessoa seria vigiada pelos próximos anos, mas era uma regra que funcionava.

Amelia era a única mulher que já tinha passado por aquele alojamento. Viveu por meses no meio de tantos homens que estavam sempre no limite dos níveis de testosterona. No início eram comentários infantis falando sobre como ela estava lá para entreter e servir de brinquedinho. Ela ficava quieta, aquelas provocações não eram nada perto do que já tinha passado. Porém o que era só verbal começou a se tornar físico. Tapas na sua bunda, mãos que tocavam suas coxas, proximidades além do espaço pessoal… Sua paciência se esgotava com facilidade nessas ocasiões e ela se envolvia em brigas. Mas eram muitos contra um e ela apanhava sempre. Ela conseguia lidar com três ou quatro, mas a confusão aumentava e só terminava quando algum superior a apartava. De cabeça erguida ela se recolhia no seu beliche para lamber suas feridas. Durante esse tempo, ela se esforçou para treinar todos os dias. Não era o suficiente, mas ela acreditava que seria algum dia. 

Liam chegou alguns meses depois. Ele tentava a defender, muitas vezes parando as agressões antes que ficassem violentas demais. Mas por algum motivo, Amelia parecia só ficar mais brava com ele. Em uma madrugada no meio do outono, ele acordou com calor debaixo das cobertas mais pesadas. Foi beber um copo d'água e tomar um ar para se livrar do suor quando passou pela academia e viu sua amada socando um saco de pancadas no meio do tatami. Era como se ele visse Amelia se movimentando em câmera lenta. Os músculos de seus braços se contraiam a cada golpe que ela dava. Estava usando toda a sua força, mas ele só notava a beleza dela. Os olhos cerrados, o cabelo preso em um rabo de cavalo bagunçado, as bochechas avermelhadas do calor.

O jovem ficou alguns segundos cuidando cada detalhe dela antes que ela notasse sua presença ali, no escuro, como um fantasma. Quando os olhos desparelhos da mais velha o encararam, um arrepio cruzou sua espinha como um raio. Ela apenas o ignorou e continuou o que estava fazendo. Liam não conseguiu evitar se sentir decepcionado, triste. Ele queria mais um pouco da atenção daquela mulher.

— Você- — a voz saiu um pouco mais aguda que o normal e ele foi obrigado a limpar a garganta. — Você deveria descansar.

Mais uma vez aquele par portais, para o céu ou para o inferno, o olharam. Por mais de 3 segundos dessa vez. Ainda assim, não foi o suficiente para que ela dirigisse a palavra a ele.

— Descansar e ter energia também faz parte do treinamento. — Ignorado, agora nem um olhar. — Digo… Se não dormir não vai-

— Eu não preciso da sua pena. — Amelia disse sem parar de socar o saco. 

Liam ficou sem ar com as borboletas em seu estômago voando sem ter para onde ir. Era a primeira vez que ele ouvia a voz grave dela, sem ser em um xingamento para algum colega. E ela estava falando com ele dessa vez. Seu cérebro demorou para conseguir colocar os pensamentos no lugar. Naquele momento ficou óbvio o porquê dela ficar brava com ele quando se intrometia nas brigas dela. Ele respirou fundo, prendendo o ar no peito, a fim de manter o coração acolchoado.

— Você está enganada se acha que eu tenho pena de você. 

Os socos cessaram. O barulho que ecoava agora dava lugar ao som do ar que saia do peito ofegante da morena. De alguma forma, aquilo era pior ainda. Ele estava desesperado para saber o que passava na cabeça dela, mas sua expressão não mudou nem um milímetro. Cada segundo que passava parecia uma eternidade de desconforto.

— Olha, eu também não sou o mais forte. — Ele não aguentou e precisou emergir daquele oceano de ansiedade onde estava afundando. O garoto entrou no tatami pegando luvas da cesta ali perto. Enquanto as vestia, ele se aproximou da garota, que deu alguns passos para trás. — Mas eu sei… a técnica. — Um sorriso tímido surgiu no rosto dele como forma de oferecer amizade, como se estendesse a mão a um gato feral. 

Colocando as mãos na frente do rosto, ele a chamou com um gesto de cabeça. Era um convite. Amelia não recusou. Ela se posicionou, o olhando como se fosse o despedaçar. E ele quase queria isso. Com um movimento rápido ela deu passos pesados e jogou o punho direito contra o rosto dele e com facilidade… Ele desviou. Era veloz. Isso a irritou e ele jurou que pode ver suas sobrancelhas surpresas. A garota tentou mais uma vez. E mais uma. Era como se estivesse tentando atingir o vento.

— Você precisa pensar no que seu oponente vai fazer. — disse com aquele sorriso no rosto. — Sempre vai ter a desvantagem, então é melhor reagir ao invés de ser a primeira a atacar. 

Dando alguns pulos e sacudindo os braços ao lado do corpo, Liam se preparou e foi pra cima dela. Não era fácil para ele também. Apesar dele não querer bater na garota, ele não se segurou. Ele já tinha entendido que se pegasse leve com ela seria desrespeito. Ela se protegia bem e já parecia estar aprendendo algo com ele. 

— Está mirando nos lugares errados. Você precisa debilitar o oponente o mais rápido possível. Precisa ser mais rápida. — A luta dos dois era acalorada, rápida e… Divertida? Amelia não entendia porque estava se divertindo em um momento como aquele. Mais algumas vezes, ele desviou dos golpes dele. — Nos lugares certos, vamos! Mas rápido!

Com as veias pulsando lotadas de adrenalina, ela se esforçou o máximo que conseguia, quase sem ar, mas sem desacelerar nem por um segundo. 

— Mais rápido! Vamos, Amelia, mais rápido! — O garoto disse sorrindo, defendendo cada soco dela e sentindo que estava ficando mais difícil de acompanhar. — Mais rápido!

E assim que terminou aquela frase, o punho direito da mais baixa atingiu o maxilar de Liam com força. O soco vinha de baixo e ele sentiu seus dentes batendo uns contra os outros. Por pouco não mordeu sua língua. O garoto deu alguns passos para trás, parecia desnorteado, tonto.

— Desculpa! — Ela se aproximou dele, olhando seu rosto de perto. Seu cheiro doce invadiu sua mente o deixando ainda mais tonto. 

— Esse… Foi bom. — Liam disse, sorrindo, massageando seu queixo. Amelia desviou o olhar, revirando os olhos com um sorriso. O sorriso mais lindo que ele já tinha visto, com certeza. Seu coração quase explodiu ali mesmo enquanto ele a olhava dar passos com as mãos na cintura, recuperando o fôlego. Estava suada, bagunçada, a roupa era larga, masculina. A calça de moletom e o top, combinação que ela sempre usava. Mas para ele, era a mulher perfeita. 

— Mais uma? — ela perguntou, pressionando os lábios, escondendo o sorriso orgulhoso de si mesma. Ele apenas sorriu, confirmando com a cabeça. 

Eles continuaram treinando até o sol nascer.