V.

O caminho até o hotel foi tranquilo, o trânsito ainda não estava movimentado por ser tão cedo naquela manhã. Porém dentro da cabeça de Amelia estava um caos completo. Liam tentou puxar assunto, mas ela estava distante demais para responder. Naquele momento ela estava com a mente dividida entre se preparar para a bronca que iria levar e ficar remoendo o eco da voz de Jason falando aquele sobrenome. Ela não conseguiu evitar de puxar um cigarro da carteira que ela estava carregando na jaqueta.

— Ames...— o motorista protestou, mas ela não deu ouvidos. Ele também não tentou a impedir. Sabia que ela estava estressada e precisava daquilo para se acalmar. Também estava nervoso, mas era por ela. Tinha certeza que ela estava colocando muito peso em si mesma.

Ela soprou a fumaça densa por uma fresta da janela, esperando sentir sua pressão cair. Não aconteceu. Seu olho azul refletiu a luz do sol que passou por entre os prédios e atravessou o para-brisa, mas o esquerdo parecia ter absorvido toda a energia daqueles raios. Não houve mais conversa, somente o som dos pneus no asfalto.

Quando eles saíram do elevador e caminharam pelo corredor que levava para a sala de Gary viram um grupo de homens, talvez 8 ou 9, saindo de lá. Todos estavam de terno, bagunçados como Liam, como se tivessem saído de uma luta. Todos, menos o cara que andava na frente. Ele estava de jeans escuros e uma camisa azul marinho, que claramente era de um tamanho muito menor do que ele usava. Os botões da região do abdômen se esforçavam para segurar o tecido junto, já os do peito já haviam desistido... Ou sequer tentado. A pele clara, mas bronzeada, chamou a atenção de Amelia durante a aproximação dos dois. Também notou que ele deveria ter uns 20 centímetros a mais que ela. Não só em altura. Era um homem de ombros largos, braços grossos que ficavam bem expostos com aquela camisa. E então seus olhos subiram para o rosto daquele estranho enorme. O maxilar era bem definido, parecia uma escultura renascentista. As bochechas altas, lábios largos e finos, uma barba por fazer contornando a face, sobrancelhas cheias e expressivas no mesmo tom do cabelo, um mel escuro, como se os fios tivessem sido tingidos pelo sol. Mas o mais incrível eram os olhos. Era como olhar para a escuridão e sentir sua alma sugada pelo vácuo daquele olhar. Porém, aquele mistério de pessoa não retribuiu a atenção de Amelia. Todos os homens com ele abaixaram a cabeça quando passaram por ela, mas ele não. Ele cruzou como se nem soubesse quem ela era. E por algum motivo, ela foi obrigada a acompanhá-lo, virando o rosto como se quisesse aproveitar cada segundo daquela visão. Algo dentro dela dizia que já tinha o visto antes, mas com aquela presença... Ela se lembraria.

A garota sequer havia notado que tinha parado no meio do caminho para observar aquele ser. Quando ele entrou no elevador que a trouxe, logo antes das portas prateadas fecharem, ele sorriu para ela. Um sorriso confiante. Era difícil dizer se era um convite ou desafio. Depois que aquele momento acabou, Liam virou-se para ela, alguns metros à frente, confuso.

— Ames? — ele a puxou para fora do transe.

— Ah, estou indo. — sacudiu aquele sentimento do seu peito porque o que viria agora era muito pior.

Ele abriu a porta para ela e a esperou passar sorrindo em gesto de confiança.

Gary estava de costas para a entrada, haviam inúmeros papéis espalhados pelos tapetes caros. Sua cadeira de couro escuro estava caída no chão, a mesa adornada com garrafas de whiskey abertas e o cheiro da fumaça que cobria a sala indicavam o pior clima para a dupla. A regra era clara. Ele falava primeiro. Sempre. Mas essas regras não valiam para Amelia.

— Gary, foi uma embosca-! — a frase foi abruptamente interrompida por um copo que voou tão próximo de seu rosto e se chocou contra a porta atrás dela. O chefe estava virado para ela, agora. Ofegante, com os cabelos bagunçados e o rosto vermelho de ódio.

— Qual é seu problema, Amelia?! Hein?! Qual é a porra do seu problema?! — a pergunta foi acompanhada por vários socos contra a mesa. E ela sabia que era retórica, tinha certeza de que se respondesse, o próximo copo se quebraria na sua testa. — Há quantos anos você trabalha comigo, pirralha?! Como pode cometer um erro tão... tão... Estúpido?!

Ela ouviu tudo, cada palavra. E concordava com todas elas.

— Como pôde deixar a polícia chegar nos nossos servidores, merda?! — mais uma vez, o punho dele se chocou contra a madeira. — Você sabe o protocolo... É tudo blindado... Como pode... Amelia, como você pode ser tão burra?!

— Eu iniciei a auto destruição... Eu segui o protocolo. — ela tentou rebater, mas sabia que não adiantaria.

— É mesmo?! Tem certeza?! — ele perguntou arremessando um tablet no chão à frente dela. O vidro se partiu em vários pedaços mas a imagem ainda era clara. Era claramente uma foto da "cena do crime". Havia uma pequena etiqueta amarela com o número 4, marcando a evidência: a tela do computador central com um aviso de superaquecimento e de que estava entrando no modo de segurança.

Com um movimento rápido, ela se abaixou pegando o aparelho que por pouco sobrevivia. Foi obrigada a fechar os olhos, como se quisesse sumir dali. Seu rosto mostrava o quanto estava envergonhada com tudo aquilo.

— O protocolo é garantir que tudo seja apagado. Você tinha que ter ficado lá.

— Eu... Eu não... Mas mesmo que alguma coisa tenha ficado, ainda está tudo encriptado.

— Mesmo que seja a melhor criptografia do mundo, Amelia, o que me garante que a polícia não vai conseguir quebrar? É questão de tempo. Isso pode colocar todos nós atrás das grades e não vai ter nenhum deputado meia boca querendo nos ajudar sabendo que as informações deles podem estar na mão dos tiras. — a voz dele parecia mais calma, mas agora carregada de decepção. — Mas você já sabe de tudo isso... Eu só não consigo entender que merda você tinha na cabeça para se deixar chegar nesse ponto. Eu esperaria isso de todo mundo, menos de você... Você arriscou a família hoje.

Amelia não sabia pedir desculpas. Ela só baixou a cabeça mais uma vez, encarando seus coturnos. Uma vontade avassaladora de chorar tomou conta do seu peito, mas ela não cedeu.

Ele suspirou tentando engolir a raiva. E fez isso com a ajuda de um gole pesado de álcool. Ele ficou mais cinco minutos em silêncio, segurando os ânimos. Gritar com ela agora não resolveria nada.

— Vai descansar agora... Você vai ter que limpar essa bagunça.

— Sim, senhor. — a voz dela mostrava o quão abalada estava.

— Boa noite, Amelia. — ele dispensou a garota e olhou para o seu parceiro, que permaneceu quieto durante todo o sermão. — Você fica.

Um pouco surpresa, a morena olhou para seu pai como se pedisse uma explicação, mas ele apenas a mandou sair com um gesto de cabeça. Liam sorriu pra ela, como se dissesse que estava tudo bem. Ela não tinha tanta certeza, mas não estava em condições de argumentar. Depois de olhar mais uma última vez para ele, ela se virou para a saída e demorou um pouco no caminho para fora.

— Amelia! Boa noite! — ele repetiu, a fazendo apertar o passo. Ela rapidamente fechou as portas depois de passar por elas, se perguntando sobre o que eles iriam conversar.

Gary caminhou para frente de sua mesa e se escorou na mesma, olhando para o jovem com uma expressão séria mas um pouco curiosa.

— Você sabe que sei o que você fez... Não sabe? — o chefe perguntou depois de um longo silêncio. Ele apenas assentiu com a cabeça. — Por quê?

— Você sabe... Por causa dela.

— E colocou tudo em jogo assim?

— E eu faria tudo de novo, Gary. Eu só estou aqui por causa dela.

O velho suspirou, levantando as sobrancelhas. Ele sabia bem disso. Seus lábios pressionaram um contra o outro em reprovação.

— Eu entendo, se eu estivesse no seu lugar... Acho que faria o mesmo. — ele disse com um sorriso singelo no rosto lembrando que tudo isso só tinha acontecido porque ele não conseguiu se vingar da ex-mulher. — Mas infelizmente não posso deixar isso passar. Você precisa colocar sua cabeça no lugar e focar na organização. Não tem lugar pra você no coração da Amy, Liam.

Ouvir aquilo foi como engolir um copo de areia, secando sua garganta e pesando em seu peito.

— Vou separar vocês por um tempo. Acho que, agora, seu lugar é na inteligência. Você precisa entender o que colocou em risco hoje, o que eu e Amelia lutamos para proteger todos os dias.

— Ela vai ficar uma fera...— ele respondeu, um pouco irônico. O chefe não conseguiu segurar o riso.

— Eu sei, mas vou colocar alguém mais forte com ela. Não que não seja forte, mas como um homem comum vai segurar uma pantera?

Quem suspirou agora foi Liam, mordendo o lábio inferior e colocando as mãos na cintura.

— Seria mais fácil se a pantera ouvisse de vez em quando.

— Ela vai aprender... Vai descansar também, garoto. Você está um trapo.

Ele olhou seu estado e foi obrigado a concordar.

— Boa noite, Gary... — ele se despediu e saiu do local.

Alguns andares abaixo, no saguão principal, Amelia esperava por ele na saída do elevador. Estava de braços cruzados, encostada contra a parede, com a cara fechada, como sempre. Os homens que se passavam por ela a cumprimentavam. "Bom dia, senhorita Jones". Ela até gostava de ser chamada assim, era bom ser respeitada naquela magnitude. Mas naquele momento ainda estava coberta de vergonha.

— Hey, está esperando alguém? — a voz familiar chamou sua atenção.

— L, oi... O que rolou? — perguntou curiosa. Não era comum Gary conversar com ele sem a presença dela.

— Ah, ele tá irritado... Só queria saber o que aconteceu.

— E o que você contou pra ele?

— Hm... — Liam fingiu que precisava pensar para responder. — O suficiente.

— Que merda é "o suficiente"? — indagou, levantando uma sobrancelha.

— O suficiente. — ele sorriu, a provocando.

Como de costume, ela fechou o punho e esmurrou seu braço. Não com força, era apenas brincadeira. Mas ele segurou um gemido de dor. Rapidamente, Amelia puxou o paletó dele ombro abaixo, revelando a camisa branca suja de sangue.

— Meu D... Liam você tá machucado!

— Oh, é... Isso. Eu já ia resolver. — ele tentou sorrir, mas a expressão de dor não saiu do seu rosto com tanta facilidade. Ela bufou em resposta, impaciente.

— Qual é? Vamos pro meu quarto, eu acho que isso precisa de pontos. — com cuidado ela o puxou pelo outro braço de volta para o elevador.

— Os seus pontos? Passo. Da última vez a cicatriz deles ficou pior do que a do corte.

— Por isso mesmo! Eu preciso praticar! — ela rebateu. — É melhor treinar em uma pessoa viva.

— Se você é quem vai continuar me costurando, não sei se fico vivo por muito tempo. — ele riu, tentando esquecer a punição que estava por vir.

— Se continuar enchendo meu saco, posso garantir que não vai mesmo.

Liam não conseguiu segurar a risada, adorava vê-la irritada daquela forma. Mas logo começou a tossir, com dor nas costelas. A morena sorriu de canto.

— Viu? Bem feito. — provocou.