CI. SALÃO

Saí pela janela, deixando a capa, para não sujá-la de sangue. Tinha a esperança de que a hora avançada e minha habilidade natural para agir furtivamente me impedissem de ser visto. Eu nem podia imaginar os boatos que surgiriam se alguém me visse correndo pelos telhados, tarde da noite, ensanguentado e nu da cintura para cima.

Colhi um punhado de folhas ao passar para o telhado de uma estrebaria que dava para o pátio da bandeira, perto do Arquivo.

À tênue luz do luar, vi as sombras escuras e amorfas das folhas que rodopiavam por sobre as pedras cinzentas do calçamento. Passei a mão com força pelo cabelo e acabei agarrando uns fios soltos.

Depois usei as unhas para cavar um sulco no piche do telhado e utilizei um pouco dele para grudar um fio de cabelo numa folha. Repeti esse gesto dezenas de vezes, deixando as folhas caírem do telhado e observando o vento arrastá-las, numa dança louca pelo pátio, de um lado para outro.

Sorri ao pensar em alguém tentando me localizar com uma bússola naquele momento, tentando compreender dezenas de sinais contraditórios conforme as folhas rodopiavam e giravam em dezenas de direções diferentes.

Eu tinha ido aquele pátio, em particular, porque nele o vento se deslocava de formas estranhas. Só notara isso depois que as folhas do outono começaram a cair. Elas se moviam numa dança complexa e caótica por entre as pedras, primeiro para um lado, depois para outro, sem jamais caírem num padrão previsível.

Depois que se percebia esse estranho rodopio do vento, era dificil ignorá-lo. Na verdade, visto do telhado, como naquele momento, ele era quase hipnótico. Do mesmo jeito que a água rolando ou as chamas de uma fogueira são capazes de nos chamar a atenção e de prendê-la.

Observá-lo nessa noite, exausto e ferido, foi muito relaxante. Quanto mais eu o observava, menos caótico ele parecia. Na verdade, comecei a intuir um padrão subjacente maior no modo de o vento se movimentar pelo pátio. Ele só parecia caótico por ser imensamente, maravilhosamente complexo. E mais, parecia mudar o tempo todo. Era um padrão feito de padrões mutáveis. Era...

— Você está estudando até terrivelmente tarde — disse uma voz baixa atrás de mim.

Arrancado de meu devaneio num susto, senti meu corpo retesar-se, pronto para sair em disparada. Como é que alguém tinha conseguido subir ali sem que eu percebesse?

Era Elohkar. Mestre Elohkar. Usava um par de calças remendadas e a camisa solta. Deu-me um aceno displicente e se agachou, sentando-se de pernas cruzadas na beira do telhado, tão sem cerimônia quanto se nos encontrássemos numa taberna para tomar uma bebida.

Baixou os olhos para o pátio e comentou:

— Hoje está especialmente bom, não é?

Cruzei os braços, tentando sem eficácia cobrir o peito nu e ensanguentado. Só então notei que o sangue em minhas mãos estava seco. Quanto tempo eu teria passado sentado ali, imóvel, observando o vento?

— Mestre Elohkar... — comecei, mas me contive. Não fazia ideia do que poderia dizer numa situação como aquela.

— Por favor, aqui somos todos amigos. Fique à vontade para me chamar por meu primeiro nome: Mestre — disse ele. Deu-me um sorriso preguiçoso e tornou a olhar para o pátio lá embaixo.

Não teria notado o estado em que eu me encontrava? Estaria sendo gentil? Talvez... Abanei a cabeça. Com ele era inútil de tentar se adivinhar. Eu sabia melhor do que ninguém que Elohkar tinha a cabeça tão oca quanto os potes limpos de uma cozinha.

— Há muito tempo — disse ele, puxando conversa, sem tirar os olhos do pátio —, quando as pessoas falavam uma língua diferente, isto aqui se chamava Quoyan Haveyal. Mais tarde passaram a chamá-lo de Salão das Perguntas, e os alunos brincavam de escrever perguntas em pedaços de papel e soltá-los para que fossem soprados. Diziam os boatos que era possível adivinhar a resposta pelo modo como o papel saía da praça — acrescentou Elohkar, apontando para as ruas que criavam intervalos entre os prédios cinzentos. — Sim. Não. Talvez. Noutro lugar. Em breve.

Encolheu os ombros.

— Mas foi tudo um equívoco. Uma tradução malfeita. Eles pensaram que Quoyan era uma raiz primitiva de quetenta: questão ou pergunta. Mas não é. Quoyan quer dizer "vento". Isto aqui é acertadamente chamado de "Casa do Vento".

Esperei um instante para ver se ele pretendia dizer algo mais. Não vindo nada, levantei-me devagar.

— Isso é interessante, Mestre... — hesitei, sem saber ao certo até que ponto ele havia falado sério. — Mas preciso ir andando.

Elohkar balançou a cabeça, distraído, e me deu um aceno que foi parte adeus, parte um gesto de dispensa. Em momento algum seus olhos deixaram o pátio lá embaixo, seguindo o vento sempre mutável.

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De volta a meu quarto na Grilo, sentei-me na cama por um bom tempo, no escuro, tentando decidir o que fazer.

Tinha as ideias turvas. Estava cansado, ferido e ainda meio bêbado. A adrenalina que me impulsionara para adiante até então começava a se dissipar, e a lateral de meu tronco ardia e dava fisgadas.

Respirei fundo e procurei concentrar o pensamento. Até ali eu havia agido por instinto, mas agora precisava refletir sobre as coisas com cuidado.

Poderia pedir ajuda aos professores? Por um momento a esperança cresceu em meu peito, depois se desfez. Não. Eu não tinha provas de que Drazno tinha sido o responsável. Pior ainda, se lhes contasse a história toda, teria de admitir que havia usado simpatia para cegar e queimar meus agressores. Legítima defesa ou não, o que eu tinha feito era, incontestavelmente, um ato de má fé. Já houvera alunos expulsos por menos, só para preservar a reputação da Academia.

Não. Eu não podia me arriscar a ser expulso por isso. E, se fosse à Iátrica, haveria perguntas demais. E a notícia do meu ferimento se espalharia caso eu levasse pontos. Isso significava que Drazno ficaria sabendo como havia chegado perto de lograr êxito. Melhor seria eu lhe dar a impressão de ter saído ileso.

Eu não tinha a menor ideia de há quanto tempo os assassinos contratados por Drazno andavam no meu encalço. Um deles dissera "já o perdemos duas vezes". Isso significava que talvez soubessem que eu tinha um quarto na Grilo.

Talvez aquele não fosse um lugar seguro.

Tranquei a janela e fechei a cortina antes de acender minha lamparina portátil. A luz revelou o pedaço esquecido de papel que eu encontrara enfiado na janela.

Desdobrei-o e li:

"Vanitas,

Subir até aqui foi exatamente tão divertido quanto você fizera parecer. Mas forçar sua janela demorou um pouco. Como constatei que você não estava em casa, espero que não se incomode por eu ter pegado papel e tinta emprestados para lhe deixar este bilhete. Visto que não está tocando lá embaixo, nem pacificamente adormecido, uma pessoa cética talvez se perguntasse o que anda fazendo tão tarde da noite, e se está aprontando coisas que não deveria.

Infelizmente, terei de voltar para casa hoje sem o conforto da sua escolta nem o prazer da sua companhia. Senti sua falta no último dia-da-sega na Foles, mas, embora sua companhia me fosse negada, tive a sorte de conhecer uma pessoa bem interessante. É um sujeito bastante singular e estou ansiosa por lhe contar o pouco que sei dele. Quando nos encontrarmos da próxima vez.

No momento, estou instalada na Canção do Cisne, em Torrente. Por favor, procure-me antes do dia 23 deste mês e teremos nosso almoço atrasado. Depois disso estarei cuidando da minha vida.

Sua amiga e aprendiz de arrombadora,

Alys.

PS. — Queira ter a certeza de que não reparei no estado vergonhoso da sua roupa de cama e não julguei seu caráter por ela."

Estávamos no dia 28. A carta não tinha data, mas provavelmente estivera ali fazia pelo menos uma onzena e meia. Alys devia tê-la deixado poucos dias depois do incêndio na Ficiaria. 

Tentei por um momento decidir como me sentia a esse respeito. Lisonjeado por ela ter tentado encontrar-me? Furioso por não haver achado o bilhete até esse momento? E quanto ao "sujeito" que ela havia conhecido...

Era coisa demais para eu examinar naquele momento, cansado, ferido e ainda meio mal como estava por causa da bebida. Em vez disso, limpei rapidamente o corte superficial da melhor maneira que pude, usando minha bacia. Eu mesmo teria dado uns pontos, mas não consegui um bom ângulo. Recomecei a sangrar e rasguei os pedaços mais limpos de minha camisa destruída para improvisar um curativo.

Sangue. Os homens que haviam tentado me matar ainda tinham a bússola de rabdomante e, sem dúvida, eu havia deixado um pouco do meu sangue na faca. O sangue seria infinitamente mais eficaz numa bússola do que um simples fio de cabelo; isso queria dizer que, mesmo que ainda não soubessem onde eu morava, eles poderiam me encontrar, apesar das precauções que eu havia tomado.

Movi-me rapidamente pelo quarto, enfiando tudo o que era de valor em minha sacola de viagem, já que não sabia quando seria seguro voltar. Embaixo de uma pilha de papéis encontrei um canivete dobrável que ganhara do Leif numa partida de quatro-cantos, do qual até já me havia esquecido. Não teria quase nenhum valor numa luta, mas era melhor do que nada.

Depois peguei o alaúde e a capa e desci, pé ante pé, à cozinha, onde encontrei um jarro vazio, de boca larga, de vinho de Fallows. Foi um pequeno golpe de sorte, mas, aquela altura, eu ficaria contente com qualquer coisa que pudesse obter.

Segui para o leste e atravessei o rio, mas não fui até Torrente propriamente dita. Em vez disso, desviei-me um pouco para o sul, rumo ao lugar em que meia dúzia de desembarcadouros, uma hospedaria imunda e um punhado de casas se erguiam junto à margem do largo rio Ometh. Era um pequeno porto que servia a Torrente, insignificante demais para ter um nome próprio.

Enfiei a camisa ensanguentada no jarro e o vedei bem com um pedaço de cera de simpatia, para deixá-lo impermeável. Depois joguei-o no rio Ometh e o vi oscilar lentamente correnteza abaixo. Se usassem a bússola para localizar meu sangue, eu pareceria estar rumando para o sul rapidamente.

Com sorte, eles o seguiriam.