Alastor e Leif estavam à minha espera quando cheguei. Já haviam reivindicado um banco com uma boa vista do chafariz em frente à Foles. A água esguichava ao redor de estátuas de ninfas perseguidas por um fauno.
Coloquei o estojo do alaúde junto ao banco e abri distraidamente a tampa, achando que talvez o instrumento gostasse de sentir um pouco de sol nas cordas. Se você não é músico, não espero que compreenda.
Alas me entregou uma maçã e sentei ao lado deles. O vento soprava na praça e observei os borrifos da fonte se moverem como cortinas balançadas pela brisa. Algumas folhas vermelhas de bordô dançavam em círculos pelas pedras do calçamento. Observei-as saltarem e girarem, traçando desenhos estranhos e complexos no ar.
— Imagino que você tenha finalmente encontrado a Alys, não é? — perguntou Alastor depois de algum tempo.
Balancei a cabeça, sem desviar os olhos das folhas. Não estava realmente com vontade de explicar.
— Dá para perceber, pelo tanto que você está calado — comentou ele.
— As coisas não correram bem? — perguntou Leif, com delicadeza.
— Não saíram como eu havia esperado.
Os dois fizeram acenos sóbrios com a cabeça e houve outro momento de silêncio.
— Andei pensando no que você nos contou — disse Alas. — A respeito do que a sua Alys lhe disse. Há um furo na história dela.
Leif e eu o fitamos, curiosos.
— Ela disse estar procurando por seu mecenas — assinalou Alastor. — Estava viajando com você para procurá-lo. Mas depois contou que sabia que ele estava a salvo, porque... — Alas teve uma hesitação significativa — ...porque o havia encontrado quando ia voltando para a fazenda em chamas. Isso não combina. Por que ela o procuraria, se sabia que o homem estava em segurança?
Eu não tinha considerado isso. Antes que conseguisse pensar numa resposta, Leif abanou a cabeça:
— Ela só estava inventando uma desculpa para passar algum tempo com o Vani — afirmou, como se fosse algo cristalinamente claro.
Alastor franziu de leve o cenho.
Leif nos lançou olhares alternados, visivelmente surpreso por ter que se explicar.
— É óbvio que ela tem uma queda por você — disse, e começou a contar nos dedos: — Foi ao seu encontro na Grilo. Foi buscá-lo naquela noite, na Foles, quando estávamos bebendo. Inventou uma desculpa para passar dois dias perambulando com você no meio de lugar nenhum...
— Leif — retruquei, exasperado —, se ela estivesse interessada, eu conseguiria encontrá-la mais de uma vez em um mês de buscas.
— Isso é uma falácia lógica — destacou Leif, agitado. — Causa falsa. A única coisa que isso prova é que você é péssimo para encontrá-la, ou que ela é difícil de se achar. Não que não está interessada.
— Na verdade — assinalou Alastor, tomando o partido de Leif —, já que ela o encontra com mais frequência, parece provável que passe um bom tempo à sua procura. Você não é fácil de se localizar. Isso indica interesse.
Pensei no bilhete que ela me deixara e, por um instante, alimentei a ideia de que talvez Leif tivesse razão. Senti uma vaga esperança palpitar no peito, recordando a noite em que ficáramos no alto do monólito.
Depois lembrei-me de que ela estivera delirante e fora de si naquela noite. E me lembrei dela de braço dado com Daran. Pensei no rapaz alto, bonito e rico e em todos os outros inúmeros homens que tinham algo valioso a lhe oferecer. Algo além de uma bela voz e bravatas masculinas.
— Você sabe que eu tenho razão! — exclamou Leif, afastando o cabelo dos olhos e dando uma risada juvenil. — Não tem como argumentar para sair dessa! É óbvio que ela é abobalhada por você. E você é simplesmente abobalhado; portanto, é uma grande combinação.
Dei um suspiro.
— Fico contente por tê-la como amiga, Leif. Ela é uma pessoa encantadora, e fico feliz por passarmos algum tempo juntos. E só isso — declarei, forçando a introdução da dose adequada de despreocupação jovial na voz, para que ele aceitasse minha palavra e desistisse do assunto, por ora.
Leif me olhou por um instante, depois descartou a discussão com um dar de ombros.
— Se é assim — disse, gesticulando com seu pedaço de frango —, a Faela vive falando em você o tempo todo. Acha-o um sujeito genial. E depois, tem toda aquela história de você ter salvo a vida dela. Tenho certeza de que você tem uma chance ali.
Dei de ombros, contemplando os desenhos criados pelo vento nos borrifos do chafariz.
— Você sabe o que nós devíamos... — começou Leif, e suspendeu o pensamento a meio caminho, olhando para além de mim com uma expressão subitamente confusa.
Virei-me para ver para onde ele estava olhando e deparei com o estojo do alaúde vazio.
Meu alaúde tinha sumido.
Olhei em volta, aflito, pronto a me levantar de um salto e sair correndo à procura dele. Mas não houve necessidade: a poucos metros de nós estavam Drazno e alguns de seus amigos. Ele segurava frouxamente meu alaúde com uma das mãos.
— Ah, Ardonai misericordioso — resmungou Leif às minhas costas. Em seguida, em tom normal, disse: — Devolva-o, Drazno.
— Quieto, A'lun — rebateu Drazno. — Isto não é da sua conta.
Coloquei-me de pé, com os olhos fixados nele e em meu alaúde. Eu passara a pensar em Drazno como alguém mais alto que eu, mas, quando me levantei, percebi que nossos olhos estavam no mesmo nível. Ele também pareceu meio surpreso.
— Me dê o alaúde — eu disse, e estendi a mão. Fiquei surpreso ao constatar que ela não estava tremendo. Eu é que tremia por dentro: metade medo, metade fúria.
Duas partes de mim tentavam falar ao mesmo tempo. A primeira implorava: Por favor, não faça nada com ele. De novo, não. Não o quebre. Devolva-o, por favor. Não o segure pelo braço desse jeito. A outra metade entoava um coral: Odeio você, odeio você, odeio você, como se desse cusparadas de sangue.
Dei um passo à frente.
— Me dê o alaúde.
Minha voz soou estranha a meus próprios ouvidos, sem emoção e monocórdia. Plana como a palma de minha mão estendida. Eu tinha parado de tremer por dentro.
Drazno parou um instante, apanhado de surpresa por alguma coisa em meu tom. Intuí seu mal-estar; eu não estava me portando como ele havia esperado. Atrás de mim, ouvi Alastor e Leif prenderem a respiração. Atrás de Drazno, seus amigos ficaram imóveis, subitamente inseguros.
Drazno sorriu e enviesou uma sobrancelha.
— Escrevi uma canção para você e ela precisa de acompanhamento — disse.
Segurou o alaúde com rudeza e arrastou os dedos pelas cordas, sem pensar em ritmo nem melodia. Algumas pessoas pararam para olhar enquanto ele cantava:
"Era uma vez um tal de Vanitas, um desacerto,
Rápido no sarcasmo, amante de piadas.
Os professores o acharam muito esperto
E o premiaram com várias chicotadas."
A essa altura um bom número de transeuntes havia parado para espiar, sorrindo e gargalhando do pequeno espetáculo de Drazno. Incentivado, ele fez uma grande mesura.
— Todos cantando! — gritou, levantando as mãos feito um regente de orquestra e gesticulando com meu alaúde como se fosse uma batuta.
Dei outro passo à frente:
— Devolva-me o alaúde, senão eu mato você.
Naquele momento, falei com perfeita seriedade.
Tudo retornou ao silêncio.
Ao ver que não obteria de mim a reação que havia esperado, Drazno fingiu indiferença.
— Certas pessoas não têm nenhum senso de humor — disse com um suspiro. — Pegue.
E o atirou para mim.
Mas os alaúdes não foram feitos para ser jogados. O instrumento rodopiou no ar, desajeitado, e quando fechei as mãos não havia nada nelas. Se ele tinha sido canhestro ou cruel, não fazia a menor diferença para mim. Meu alaúde bateu com a caixa nas pedras do chão e fez um barulho de estralhaçamento.
O som me fez lembrar o ruído terrível que fizera o alaúde de meu pai, esmagado sob o peso do meu corpo numa viela imunda de fuligem em Notrean. Abaixei-me para apanhá-lo e ele gemeu como um animal ferido. Drazno virou-se parcialmente para me olhar e vi os lampejos de diversão bailando em seu rosto.
Abri a boca para uivar, para gritar, para xingá-lo. Porém outra coisa se soltou da minha garganta, uma palavra que eu não conhecia e da qual não podia me lembrar.
E então tudo o que pude ouvir foi o som do vento.
Ele rugiu pela praça como uma súbita tempestade. Uma carruagem próxima derrapou de lado nas pedras, os cavalos a empinara em pânico. Uma partitura musical foi arrancada das mãos de alguém e riscou o ar à nossa volta como um estranho relâmpago.
Fui empurrado um passo para a frente. Todos foram empurrados pelo vento. Todos, exceto Drazno, que rodopiou no chão feito um cata-vento, como que golpeado pela mão de Deus.
Em seguida tudo voltou à quietude. Papéis caíram, girando como folhas de outono. As pessoas olharam em volta, confusas, com os cabelos desgrenhados e as roupas em desalinho. Várias delas ficaram trôpegas, preparando-se para enfrentar uma tempestade que já não estava presente.
Minha garganta doía.
Meu alaúde estava quebrado.
Drazno levantou-se cambaleando. Sem jeito, esticou o braço para o lado, e havia sangue escorrendo de seu couro cabeludo. O olhar desvairado e confuso de medo que me lançou foi um doce e breve prazer. Pensei em gritar de novo com ele, querendo saber o que aconteceria. O vento viria outra vez? O chão o tragaria?
Ouvi um cavalo relinchar, em pânico. Começou a sair gente da Foles e de outros prédios em torno da praça. Os músicos olharam ao redor, confusos, e todo mundo se pôs a falar ao mesmo tempo.
— ...foi isso?
— ...notas espalhadas por toda parte. Ajude-me antes que elas...
— ...foi ele. Aquele ali, do cabelo branco...
— .. demônio. Um demônio do vento e...
Olhei em volta, atordoado, até que Alastor e Leif me tiraram depressa de lá.