Hani estava sentada numa chaminé larga de tijolos, à minha espera.
Usava o vestido que eu lhe dera e balançava indolentemente os pés descalços, contemplando as estrelas. Seu cabelo era tão fino e leve que formava uma auréola em torno de sua cabeça, balançando ao mais leve sussurro de brisa.
Pisei com cuidado no meio de um trecho plano de telhado de zinco. Ele fez um tum grave sob os meus pés, como um tambor suave e distante. Os pés de Hani pararam de balançar e ela ficou imóvel como um coelho assustado.
Então me viu e abriu um sorriso. Acenei para ela.
Hani pulou da chaminé e veio saltitando até onde eu estava, com o cabelo esvoaçando às costas.
— Olá, Vanitas — disse e deu meio passo atrás. — Você está cheirando mal.
Abri meu melhor sorriso do dia:
— Olá, Hani. E você tem cheiro de mocinha bonita.
— Tenho, sim — concordou ela, alegre.
Deu um passinho para o lado e chegou um pouco mais à frente, movendo-se de leve nas pontas dos pés descalços.
— O que você trouxe para mim? — perguntou.
— O que você trouxe para mim? — retruquei.
Ela riu.
— Eu tenho uma maçã que acha que é uma pêra — disse, levantando a fruta. — E um pãozinho que acha que é um gato. E uma alface que pensa que é uma alface.
— Então, é uma alface esperta.
— Dificilmente — disse Hani, com uma bufadela delicada. — Por que uma coisa esperta haveria de pensar que é uma alface?
— Mesmo se ela for uma alface?
— Especialmente nesse caso. Ser uma alface já é muito ruim. Que coisa terrível também se pensar que é uma alface!
Hani balançou a cabeça com ar tristonho, o cabelo seguindo o movimento como se ela estivesse embaixo d'água.
Desembrulhei minha trouxa.
— Eu lhe trouxe batatas, meia abóbora e uma garrafa de cerveja que pensa que é pão.
— O que a abóbora pensa que é? — perguntou ela, curiosa, fitando-a. Manteve as mãos cruzadas às costas.
— Ela sabe que é uma abóbora — respondi. — Mas está fingindo que é o sol poente.
— E as batatas?
— Elas estão dormindo. E frias, eu temo.
Auri ergueu a cabeça, fitando-me com um olhar meigo.
— Não tema — disse, estendendo a mão e descansando os dedos em minha face pelo tempo de uma pulsação, com um toque mais leve que o de uma pluma. — Eu estou aqui. Você está a salvo.
Era uma noite fria e, assim, em vez de comermos nos telhados, como muitas vezes fazíamos, Hani me conduziu pela grade de ferro do ralo para a rede de túneis embaixo da Academia.
Carregou a garrafa e segurou no alto algo do tamanho de uma moeda, que emitia uma suave luz esverdeada. Eu levei a tigela e a lamparina de simpatia que eu mesmo fizera, a que Kelvin tinha chamado de lâmpada de ladrões. Sua luz avermelhada era um estranho complemento para a luz azul- esverdeada e mais brilhante de Hani.
Ela nos levou a um túnel com canos de todas as formas e tamanhos, que corriam pelas paredes. Algumas das tubulações mais grossas de ferro levavam vapor e, mesmo envoltas em tecido isolante, forneciam um calor contínuo. Hani dispôs cuidadosamente as batatas numa curva do cano em que o tecido havia descascado. Ela formava uma espécie de estufa minúscula.
Usando meu saco de aniagem como mesa, sentamos no chão e dividimos o jantar. O pãozinho estava meio dormido, mas tinha nozes e canela. A alface estava surpreendentemente fresca e me perguntei onde Hani a teria achado. Ela me trouxera uma xícara de porcelana e, para ela mesma, um copinho de prata que parecia uma tampinha. Serviu a cerveja com ar tão solene que se diria estar tomando chá com o rei.
Não houve conversa durante o jantar. Essa era uma das regras que eu havia aprendido por tentativa e erro. Nada de contatos físicos. Nada de movimentos súbitos. Nada de perguntas nem mesmo remotamente pessoais. Eu não podia perguntar sobre a alface nem sobre a moeda verde. Uma coisa dessas a faria sair em disparada pelos túneis e eu passaria dias sem vê-la.
A bem da verdade, eu nem sabia seu verdadeiro nome. Hani era apenas como eu havia passado a chamá-la, mas, no fundo do coração, eu pensava nela como minha fadinha da Lua.
Como sempre, Hani comeu com delicadeza. Sentou-se com as costas eretas, dando mordidas pequenas. Ela possuía uma colher que usamos para comer a abóbora, dividindo-a e nos revezando.
— Você não trouxe seu alaúde — disse ela, ao terminar de comer.
— Hoje tenho que ler. Mas logo o trarei.
— Logo quando?
— Daqui a seis noites — respondi. Já então eu teria terminado o processo de admissão e estudar mais seria inútil.
O rostinho dela franziu-se.
— Seis dias não são logo. Amanhã é logo.
— Seis dias são logo para uma pedra — argumentei.
— Então, toque para uma pedra daqui a seis dias. E toque para mim amanhã.
— Acho que você pode ser uma pedra por seis dias. É melhor do que ser uma alface.
Diante disso, ela sorriu.
— É.
Depois de terminarmos o último pedaço da maçã, Hani me conduziu pelos Subterrâneos.
Seguimos em silêncio pelo Caminho do Aceno, andamos aos pulos pelos Saltos e entramos no Enfurnado, um labirinto de túneis tomado por um vento lento e constante. Era provável que eu pudesse achar o caminho sozinho, mas preferia ter Hani como guia. Ela conhecia os Subterrâneos como um criaferro conhece seus fardos.
Alastor tinha razão, eu fora banido do Arquivo. Mas sempre tive jeito para entrar em lugares em que não deveria estar, por bem ou por mal.
O Arquivo era um imenso bloco de pedra sem janelas. Mas os estudantes lá dentro precisavam de ar puro para respirar e os livros necessitavam de mais que isso. Se o ar fosse muito úmido, eles apodreceriam e mofariam. Se fosse seco demais, o pergaminho ficaria quebradiço e se desfaria em pedaços.
Eu tinha levado muito tempo para descobrir como o ar puro entrava no Arquivo. Mas, mesmo depois de encontrar o túnel certo, entrar nele não foi fácil. Implicou um longo rastejar por um túnel assustadoramente estreito, um quarto de hora me arrastando de bruços, feito uma minhoca, pela pedra suja.
Eu guardava uma muda de roupa nos Subterrâneos e, mal completadas 12 visitas, ela estava inteiramente estragada, com os joelhos e cotovelos rasgados. Mesmo assim, era um preço pequeno a ser pago para se ter acesso ao Arquivo.
Eu teria que pagar o diabo se algum dia me apanhassem. Enfrentaria a expulsão, no mínimo. Contudo, se me saísse mal no exame de admissão e recebesse uma taxa de 20 crimos, seria o mesmo que ser expulso.
Portanto, a verdade é que não fazia diferença.
Ainda assim, eu não tinha medo de ser apanhado. As únicas luzes do Acervo eram as carregadas por estudantes e escribas. Isso queria dizer que era sempre noite no Arquivo, e sempre me senti mais à vontade de noite.