Eu estava a caminho da Ficiaria para ver se minhas lamparinas finalmente tinham sido vendidas, quando vislumbrei um rosto conhecido atravessando o pátio, usando a toga preta dos professores.
— Mestre Elohkar! — chamei, ao vê-lo aproximar-se de uma porta lateral do Prédio dos Professores.
Era um dos poucos edifícios em que eu não havia passado muito tempo, já que ele tinha pouco mais do que os aposentos dos professores e dos guildeiros residentes, além de quartos de hóspedes para arcanistas visitantes.
Ao som do seu nome, ele girou o corpo. Em seguida, ao me ver correndo na sua direção, revirou os olhos e tornou a se voltar para a porta.
— Mestre Elohkar — repeti, com a respiração meio ofegante. — Posso lhe fazer uma pergunta rápida?
— Falando em termos estatísticos, é bem provável — respondeu ele, destrancando a porta com uma chave brilhante de latão.
— Então, posso lhe fazer a pergunta?
— Duvido que algum poder conhecido pelo homem pudesse impedi-lo — respondeu ele. Abriu a porta e entrou.
Eu não tinha sido convidado, mas me esgueirei para dentro atrás dele. Elohkar era difícil de achar e tive medo de que, se não aproveitasse essa oportunidade, talvez não tornasse a vê-lo por mais uma onzena.
Acompanhei-o por um corredor estreito de pedra.
— Ouvi um boato de que o senhor estava reunindo um grupo de alunos para estudar nominação — falei, com cautela.
— Isso não é uma pergunta — observou Elohkar, dirigindo-se para um lance comprido e estreito de escada.
Lutei contra a vontade de lhe dar uma resposta torta e, em vez disso, respirei fundo.
— É verdade que o senhor vai dar aulas a essa turma?
— Sim.
— Estava planejando me incluir?
Elohkar parou e se virou de frente para mim na escada. Parecia deslocado com sua toga negra de professor. Tinha o cabelo emaranhado e o rosto jovem demais, quase de garoto.
Ficou me encarando por um bom momento. Olhou-me de cima a baixo, como se eu fosse um cavalo em que estivesse pensando em apostar ou uma peça de carne que pensasse em vender a peso.
Mas isso não foi nada comparado ao momento em que seus olhos encontraram os meus. Por uma fração de segundo, foi simplesmente inquietante. Depois, foi quase como se a luz da escada escurecesse. Ou como se, de repente, eu fosse lançado em águas profundas e a pressão me impedisse de respirar direito.
— Diabos, seu retardado — ouvi dizer uma voz conhecida, que parecia vir de um ponto muito distante. — Se você vai ficar catatônico de novo, tenha a decência de fazê-lo lá no Refúgio e nos poupar o trabalho de carregar a sua carcaça salpicada de espuma de volta para lá. Afora isso, chegue para o lado.
Elohkar desviou os olhos de mim e, de repente, tudo voltou a ficar brilhante e claro. Fiz força para não soltar um arquejo e encher os pulmões de ar.
Mestre Hilme desceu a escada pisando firme e deu um tranco com o ombro em Elohkar, empurrando-o grosseiramente para o lado. Ao me ver, soltou um grunhido:
— É claro. O duplamente retardado também está aqui. Será que posso recomendar um livro para os seus estudos? É uma leitura encantadora, intitulada Corredores, sua forma e função: um guia para deficientes mentais.
Fuzilou-me com os olhos e, quando não pulei imediatamente para o lado, deu-me um sorriso desagradável.
— Ah, mas você ainda está banido do Arquivo, não é? Devo tomar providências para lhe apresentar as informações pertinentes num formato mais adequado a gente da sua laia? Talvez uma pantomima ou algum tipo de espetáculo de marionetes?
Dei um passo para o lado e Hilme passou feito um tufão, resmungando consigo mesmo. Elohkar lançou adagas com os olhos nas costas largas do outro professor. Só depois de Hilme fazer a curva foi que a atenção dele voltou a recair sobre mim.
Elohkar suspirou.
— Talvez fosse melhor você seguir seus outros estudos, A'scor Vanitas. O Lal tem apreço por você, assim como o Kelvin. Você parece estar progredindo bem com eles.
— Mas, Mestre — falei, tentando esconder a desolação na voz —, foi o senhor que patrocinou a minha promoção a A'scor.
Ele se virou e recomeçou a subir a escada.
— Nesse caso, você deveria valorizar o meu sábio conselho, não é?
— Mas, se o senhor vai dar aulas a outros estudantes, por que não a mim?
— Porque você é ansioso demais para ter a paciência adequada — disse ele, com ar atrevido. — É orgulhoso demais para ouvir como convém. E é inteligente demais. Essa é a pior parte.
— Alguns professores preferem estudantes inteligentes — resmunguei, ao emergirmos num corredor largo.
— Sim — disse Elohkar. — Lal, Kelvin e Armin gostam de alunos inteligentes. Vá estudar com um deles. A sua vida e a minha ficarão consideravelmente mais fáceis com isso.
— Mas...
Elohkar parou abruptamente no meio do corredor.
— Ótimo — disse. — Prove que você merece ser ensinado. Abale as minhas suposições nos próprios alicerces. — Bateu dramaticamente na toga, como se procurasse algo perdido num bolso. — Para minha grande desolação, descubro-me sem meios de passar por esta porta — disse, e bateu nela com os nós dos dedos. — O que se faz nesta situação, A'scor Vanitas?
Sorri, a despeito da minha irritação geral. Ele não poderia ter escolhido um desafio que se adequasse mais perfeitamente aos meus talentos. Tirei de um bolso da capa um pedaço longo e fino de aço de molas, ajoelhei-me diante da porta e examinei a fechadura. O trinco era substancial, feito para durar. Mas, embora as fechaduras grandes e pesadas impressionem, na verdade são mais fáceis de contornar, quando têm uma boa manutenção.
Essa tinha. Levei o tempo de três respirações lentas para abri-la com um clique satisfatório. Levantei-me, limpei os joelhos e empurrei a porta para dentro com um floreio.
Elohkar, por sua vez, pareceu um tanto impressionado. Suas sobrancelhas subiram quando a porta se abriu:
— Inteligente — comentou, enquanto entrava.
Continuei nos seus calcanhares. Eu nunca me perguntara realmente como seriam os aposentos do Elohkar. Mas, se houvesse tentado adivinhar, não teria sido nada parecido com aquilo
Eram cômodos imensos e luxuosos, com pé-direito alto e tapetes espessos. As paredes eram revestidas de madeira antiga e as janelas altas deixavam entrar a luz da manhãzinha. Havia quadros também antigos e enormes peças de mobiliário de madeira antiquíssima. Um lugar bizarramente comum.
Elohkar deslocou-se depressa pelo vestíbulo, atravessou uma sala de estar de bom gosto e entrou no quarto. Melhor chamá-lo de câmara. Era imenso, com uma cama de baldaquino do tamanho de um navio. Elohkar abriu um guarda-roupa e começou a retirar várias togas pretas longas, semelhantes à que estava usando.
— Segure — ordenou e foi jogando togas nos meus braços até eu não poder segurar mais nada. Umas eram de algodão comum, mas outras eram de linho fino ou de um rico veludo macio. Elohkar colocou mais meia dúzia de togas em seu próprio braço e as levou para a sala de estar.
Passamos por estantes antigas, repletas de centenas de livros, e por uma enorme escrivaninha polida. Uma das paredes era tomada por uma vasta lareira de pedra, grande o bastante para se assar um porco, embora, naquele momento, houvesse apenas um fogo miúdo ardendo nas brasas, para afastar a friagem do começo do outono.
Elohkar levantou de sobre uma mesa um decantador de cristal e foi postar-se em frente à lareira. Jogou nos meus braços as togas que carregava, de modo que mal pude enxergar por cima delas. Levantando delicadamente a tampa do decantador, provou um gole do conteúdo e levantou a sobrancelha com ar apreciativo, segurando a garrafa contra a luz.
Resolvi tentar de novo.
— Mestre Elohkar, por que o senhor não quer me ensinar a arte de nomear?
— Essa é a pergunta errada — disse ele, emborcando o decantador sobre as brasas que ardiam na lareira.
Quando as chamas subiram, vorazes, ele pegou de volta sua braçada de roupa e pôs lentamente no fogo uma toga de veludo. Ela se inflamou depressa e, enquanto ardia em chamas, Elohkar alimentou o fogo com as outras, em rápida sucessão. O resultado foi uma enorme pilha de tecido fumegante, que fez uma fumaça densa subir em ondas pela chaminé.
— Tente de novo — completou.
Não pude deixar de fazer a pergunta óbvia:
— Por que o senhor está pondo fogo na sua roupa?
— Não. Não chegou nem perto da pergunta certa — disse ele, enquanto tirava mais togas dos meus braços e as empilhava na lareira.
Depois, segurou a alça da tampa do duto de ar e a puxou, fechando-a com uma batida metálica. Grandes nuvens de fumaça começaram a inundar o quarto. Elohkar tossiu um pouco, depois deu um passo atrás e olhou em volta, com ar vagamente satisfeito.
De repente eu me dei conta do que estava acontecendo.
— Ah, meu Deus, de quem são estes aposentos? — indaguei.
Elohkar fez um meneio satisfeito com a cabeça.
— Muito bom! Eu também teria aceito Por que o senhor não tem a chave deste quarto?, ou O que estamos fazendo aqui?
Baixou os olhos para mim, com ar sério:
— As portas são trancadas por uma razão. As pessoas que não têm a chave devem ficar do lado de fora por uma razão.
Cutucou a pilha de tecido fumegante com um dos pés, como que para se assegurar de que ela permaneceria na lareira.
Lembrei da porta no Arquivo. Valarnitas.
— Você sabe que é inteligente — disse-me ele. — Essa é a sua fraqueza. Você supõe saber no que está se metendo, mas não sabe. — Com uma expressão séria nos olhos escuros, acrescentou: — Você acha que pode contar comigo para lhe ensinar. Acha que eu o manterei em segurança. Mas esse é o pior tipo de tolice.
— De quem são estes aposentos? — repeti, estupefato.
Ele me mostrou todos os seus dentes, numa risada repentina.
— Do Mestre Hilme.
— Por que o senhor está queimando toda a roupa do Hilme? — perguntei, tentando ignorar o fato de que o quarto se enchia rapidamente de uma fumaça amarga.
Elohkar me olhou como se eu fosse um idiota.
— Porque eu o odeio — respondeu.
Pegou o decantador de cristal no console e a atirou com violência no fundo da lareira, onde a garrafa se espatifou. O fogo começou a arder com mais vigor, graças ao que quer que houvesse restado nela.
— O homem é um perfeito imbecil. Ninguém fala comigo daquele jeito.
A fumaça continuou a fervilhar no quarto. Não fosse o pé-direito alto, já estaríamos sufocando. Mesmo assim, estava ficando difícil respirar e por isso nos dirigimos para a porta. Elohkar a abriu e a fumaça rolou para o corredor.
Paramos do lado de fora, olhando um para o outro, enquanto os rolos de fumaça passavam. Resolvi abordar o problema de outra forma:
— Entendo a sua hesitação, Mestre Elohkar. Às vezes eu não pondero as coisas até o fim.
— Obviamente.
— E admito que houve ocasiões em que meus atos foram... — fiz uma pausa, tentando pensar em algo mais humilde que 'irrefletidos'.
— De uma estupidez que ultrapassa todo o conhecimento mortal? — disse Elohkar, procurando ajudar.
Explodi de raiva, acabando com minha breve tentativa de humildade:
— Bem, graças a Deus por eu ser a única pessoa aqui que já tomou uma decisão errada na vida! — exclamei, mal conseguindo manter a voz abaixo dos gritos. Encarei-o com o olhar duro: — Também ouvi histórias a seu respeito, sabe? Dizem que o senhor mesmo fez um bocado de estragos por aqui na época em que era estudante.
A expressão divertida de Elohkar desfez-se um pouco, deixando-o com cara de quem tinha engolido alguma coisa que ficara empacada a meio caminho.
— Se o senhor acha que eu sou inconsequente — continuei —, faça alguma coisa a esse respeito. Mostre-me o caminho mais certo! Molde a minha mente jovem e flexível... — engoli uma golfada de fumaça e comecei a tossir, o que me forçou a abreviar meu discurso. — Faça alguma coisa, droga! — Engasguei. — Me ensine!
Eu não estivera realmente gritando, mas acabei sem fôlego do mesmo jeito. Minha explosão de raiva esvaiu-se com a mesma rapidez com que tinha surgido e senti medo de ter ido longe demais.
Porém Elohkar apenas me olhou.
— O que o faz pensar que não lhe estou ensinando? — perguntou, intrigado. — Afora o fato de que você se recusa a aprender.
Dito isso, virou-se e saiu andando pelo corredor:
— Eu sairia daqui, se fosse você — observou, com uma olhadela para trás. — Vão querer saber quem foi o responsável por isto e todo mundo sabe que você e o Hilme não se dão muito bem.
Senti que começava a suar de pânico.
— O quê?
— E eu também tomaria banho antes do exame. Não será bom se você aparecer por lá cheirando a fumaça. Eu moro aqui — disse, tirando uma chave do bolso e abrindo uma porta no extremo oposto do corredor. — Qual é a sua desculpa?