Permaneci no telhado, com a tempestade piscando no céu e o coração pesado no peito. Tive vontade de seguir Hani e lhe pedir desculpas, mas sabia que seria inútil. O tipo errado de pergunta a fazia fugir e, quando ela disparava, parecia um coelho descendo uma toca. Havia mil lugares em que poderia se esconder nos Subterrâneos. Eu não tinha nenhuma chance de encontrá-la.
Além disso, havia assuntos vitais de que eu precisava cuidar. Naquele exato momento, alguém poderia estar descobrindo minha localização com uma bússola rabdomântica. Eu simplesmente não tinha tempo.
Levei quase uma hora para cruzar os telhados. A luz faiscante da tempestade tornava as coisas mais difíceis, em vez de facilitá-las, pois me cegava por longos momentos após cada clarão. Mesmo assim, acabei capengando até o telhado do Magnólio, onde eu costumava me encontrar com Hani.
Com movimentos rígidos, desci a macieira até o pátio fechado. Já ia chamá-la pela grade pesada de metal que levava aos Subterrâneos, quando vi um lampejo de movimento na sombra dos arbustos próximos.
Olhei para a escuridão, sem conseguir enxergar nada além de uma forma vaga.
— Hani? — perguntei em tom gentil.
— Não gosto de contar — disse ela, baixinho, com a voz carregada de lágrimas. De todas as coisas terríveis de que eu havia participado nesses últimos dias, essa era, inquestionavelmente, a pior.
— Sinto muitíssimo, Hani. Não vou perguntar de novo. Prometo.
Houve um solucinho vindo das sombras, que congelou meu coração e partiu um pedaço dele.
— O que você estava fazendo hoje no alto das coisas? — indaguei. Sabia que era uma pergunta segura. Já a fizera muitas vezes.
— Estava vendo os relâmpagos — disse ela, fungando. E depois: — Vi um que parecia uma árvore.
— O que havia no relâmpago? — perguntei, baixinho.
— Ionização galvânica — disse ela. Depois, com uma pausa, acrescentou: — E gelo de rio. E o balanço das tifas.
— Isso eu gostaria de ter visto.
— O que você estava fazendo no alto das coisas? — Hani fez uma pausa e deu um risinho soluçado. — Todo doido e quase nu?
Meu coração começou a descongelar um pouco.
— Estava procurando um lugar para pôr meu sangue.
— A maioria das pessoas o guarda do lado de dentro. É mais fácil.
— Quero guardar o resto dele do lado de dentro, mas tenho medo de que alguém esteja procurando por mim — expliquei.
— Ah — murmurou ela, como se entendesse perfeitamente. Vi sua sombra um pouco mais escura mover-se no breu, levantando-se. — Você deve ir comigo aos Tinidos.
— Acho que não vi os Tinidos. Você já me levou lá?
Houve um movimento que poderia ser um meneio da cabeça.
— É particular.
Ouvi um ruído metálico, depois um farfalhar, e então vi uma luz verde-azulada crescer na grade aberta. Desci ao encontro de Hani no túnel subterrâneo.
A luz em sua mão mostrou manchas em seu rosto, provavelmente de quando ela havia enxugado as lágrimas. Foi a primeira vez que a vi suja. Seus olhos estavam mais escuros que o normal e o nariz, vermelho.
Hani fungou e esfregou o rosto manchado.
— Você está uma bagunça pavorosa — disse ela, em tom grave.
Olhei para minhas mãos e meu peito ensanguentados.
— Estou — concordei.
Então ela deu um sorrisinho valente.
— Não fugi tanto desta vez — disse-me, com uma inclinação orgulhosa do queixo.
— Fico contente. E sinto muito.
— Não — falou ela, com um meneio miúdo e firme da cabeça. — Você é o meu Souache, por isso está acima das recriminações. — Estendeu a mão para tocar com um dedo o centro do meu peito ensanguentado. — Ivare enim euge.
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Hani conduziu-me pelo labirinto de túneis que formavam os Subterrâneos. Descemos mais, passando pelos Saltos e pelo Cricrido. Depois, seguimos por vários corredores tortuosos e tornamos a descer, usando uma escada em espiral de pedra que eu nunca tinha visto.
Enquanto descíamos, senti cheiro de pedras úmidas e ouvi o som baixo e suave de água corrente. Vez por outra, havia o ruído áspero de vidro na pedra ou o tilintar mais alegre de vidro com vidro.
Depois de uns 50 degraus, a escada em caracol desapareceu num lago revolto de águas negras. Perguntei a mim mesmo até onde os degraus continuariam abaixo da superfície.
Não havia nenhum cheiro de podridão nem sujeira. A água era limpa e formava ondulações ao girar na escada e se afastar para as trevas, além do alcance de nossas lâmpadas. Tornei a ouvir o tinido de vidros e vi duas garrafas girando e balançando na superfície, movendo-se primeiro num sentido, depois no outro. Uma delas afundou e não voltou à tona.
Havia um saco de aniagem pendurado num suporte de tocha montado na parede. Hani enfiou a mão nele e tirou uma garrafa pesada e com rolha, do tipo que um dia poderia ter contido cerveja.
Entregou-me a garrafa.
— Elas desaparecem por uma hora. Ou um minuto. Às vezes, por dias. Outras, nunca mais voltam — disse. Tirou mais uma garrafa do saco. — É melhor ter pelo menos quatro lançadas de cada vez. Desse jeito, estatisticamente, você terá sempre duas em movimento por aí.
Assenti com a cabeça, puxei um fio de aniagem do saco surrado e o molhei no sangue que cobria minha mão. Tirei a rolha da garrafa e o joguei lá dentro.
— Cabelo também — disse Hani.
Tirei alguns fios da cabeça e os fiz entrar pelo bocal da garrafa. Depois, fechei-a firmemente com a rolha e a pus para flutuar. Ela girou pela água em círculos errantes.
Auri me entregou outra garrafa e repetimos o processo. Quando a quarta garrafa foi levada pela água revolta, Hani acenou com a cabeça e bateu animadamente as mãos uma na outra.
— Pronto — disse, num tom de imensa satisfação. — Assim está bom. Estamos seguros.
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Horas depois, de banho tomado, com curativos e consideravelmente menos despido, dirigi-me ao quarto de Alastor, no Magnólio. Nessa noite, e em muitas outras que viriam, Alas e Leif se alternaram na vigília enquanto eu dormia, mantendo-me a salvo com sua Vileza. Eram o melhor tipo de amigo que há. O tipo por que todos anseiam, mas que ninguém merece, muito menos eu.
A despeito do que pensavam ambos, eu não conseguia acreditar que Devi fosse responsável pela malfeitoria contra mim. Apesar de minha dolorosa consciência de não saber praticamente nada sobre as mulheres, ela sempre fora amistosa comigo. Até meiga, às vezes.
É verdade que tinha uma reputação sinistra, mas eu sabia melhor do que ninguém com que rapidez um punhado de boatos podia transformar-se em rematadas lendas.
Eu achava muito mais provável que meu agressor desconhecido fosse simplesmente um estudante rancoroso que se ressentisse do meu avanço no Arcano. A maioria dos alunos passava anos estudando para chegar a A'scor, o que eu havia conseguido em menos de três períodos letivos. Poderia até ser alguém que detestasse os Therion. Não seria a primeira vez que isso me rendia uma surra.
De certa maneira, realmente não importava quem era o responsável pelos ataques. O que eu precisava era de um modo de fazê-los cessar. Alas e Leif não podiam velar por mim pelo resto da vida.
Eu precisava de uma solução mais definitiva. Precisava de um gramo.
O gramo é um artefato inteligente, concebido justamente para esse tipo de problema. É uma espécie de armadura simpática que impede que qualquer pessoa faça conexões contra o nosso corpo. Eu não sabia como eles funcionavam, mas sabia que existiam. E sabia onde descobrir como confeccionar um deles.