A Queda

O vento uivava pelas frestas da janela, frio, denso, como se tentasse invadir o quarto. Dante estava deitado, os olhos abertos no escuro. O orfanato sempre era silencioso à noite, mas naquela, o silêncio parecia mais… profundo. Como se algo tivesse sido arrancado do mundo sem que ninguém notasse.

A madrugada era gélida, tão cortante quanto o quarto onde Dante e outras cinco crianças dividiam o espaço apertado. O orfanato era um labirinto de corredores iguais, dormitórios idênticos, cada um abrigando dezenas de crianças sem passado e sem futuro. Mas aquele quarto em particular parecia diferente. Talvez fosse coincidência. Talvez fosse apenas um capricho do destino—reunir os mais estranhos sob o mesmo teto.

Elisa dormia encolhida no canto, a respiração tão leve que mal se ouvia. Nunca falava muito, mas, às vezes, quando acordava de súbito, soltava palavras soltas que pairavam no ar tempo demais. Ela era reclusa, de forma realmente surpreendente, até mesmo para Dante, apesar disso, Dante a conhecia bem – ela tinha um dom peculiar para arte, algo que Dante apreciava – uma pena que aquele dom tão notável era usado poucas vezes, mas ele ainda lhe admirava, de certo modo.

Hector roncava baixinho, os dedos ainda manchados de graxa depois de passar o dia desmontando alguma coisa que provavelmente não deveria. O garoto perspicaz era pequeno, com uma cabeleira protuberante de castanho acobreado.

Serena estava acordada, como sempre. Sentada na cama, pernas cruzadas, olhando para a parede. Seus olhos cor índigo eram parecidos com a luz que provinha pela fresta da janela, que também contratava com seu cabelo escuro, tão qual quanto o breu que residia pelo quarto – era de senso comum que Serena, por ironia do destino ou não, era uma garota neutra – apesar de muito mais comunicável que Dante e Elisa, a jovem ainda era discreta.

Noah dormia abraçado ao baú onde guardava seus achados—pequenos objetos sem valor para os outros, mas preciosos para ele. O jovem, que continha uma pele como ébano, era de estatura alta, talvez o mais alto do orfanato, bem... não havia muito sobre o que pensar nele.

Inaya, no beliche superior, mantinha a respiração controlada, mas Dante sabia que ela não dormia. Não como os outros.

Ele se mexeu, tentando se ajeitar no colchão fino. O vento passava pelas frestas da janela, assobiando baixinho. O silêncio parecia mais pesado naquela noite, denso como um manto.

Provelmente já havia passado da meia noite, o que dizia que ele havia feito 14 anos. Ele odiava aniversários. Detestava a maneira como, por um único dia, as pessoas lembravam que ele existia—como se tentassem compensar o resto do ano com palavras vazias e sorrisos forçados. Amanhã não seria diferente. Um bolo barato, alguns "parabéns" sem emoção, olhares que mal disfarçavam o desconforto. Depois disso, voltaria a ser a sombra que sempre fora.

Praguejando em pensamentos, Dante se mexeu no colchão gasto, e as molas rangendo romperam o silêncio do quarto. O som, embora pequeno, fez com que um olhar assustado recaísse sobre ele. Elisa, a garota de cabelos loiros e olhar sempre distante, o observava com hesitação.

— D-desculpa... — murmurou ele, quase como um reflexo.

Dante franziu levemente a testa. Ele não estava acostumado a dividir espaço com outras crianças—tinha um quarto só para si, como era costume para os mais velhos do orfanato. Mas, com as goteiras transformando seu quarto em um pântano, foi obrigado a passar a noite ali.

Elisa desviou o olhar, mexendo-se desconfortável nos lençóis finos. Então, com uma voz baixa e hesitante, disse:

— Ah... não foi nada. Na verdade, eu já estava acordada. O sono me evita, como sempre.

Ela ficou em silêncio por um instante, como se ponderasse se deveria continuar. Então, soltou um suspiro e completou:

— E... bem. Feliz aniversário.

Dante piscou, surpreso. Por um momento, não soube o que dizer. Quase ninguém se lembrava, e os poucos que lembravam apenas mencionavam por obrigação. Mas havia algo diferente na forma como Elisa disse aquilo—um resquício de sinceridade em meio ao desconforto.

Ele forçou um sorriso, e para sua surpresa, foi mais genuíno do que esperava.

— Obrigado... De verdade.

Elisa desviou o olhar, como se estivesse arrependida de ter falado. O silêncio entre os dois se prolongou, preenchido apenas pelo som distante da tempestade lá fora.

Dante não sabia muito sobre ela, além do fato de que falava pouco e passava boa parte do tempo desenhando em um velho caderno. Mas havia algo nela que o intrigava—um tipo de solidão que ele reconhecia.

— Você sempre tem insônia? — perguntou, sem realmente esperar uma resposta.

Elisa hesitou, mas então assentiu devagar.

— Desde que me lembro. — Ela puxou os joelhos contra o peito, abraçando-os. — Não gosto do silêncio da noite. É... pesado. Parece que algo está sempre prestes a acontecer.

Dante entendeu exatamente o que ela quis dizer. Aquela sensação de inquietação constante, como se o mundo estivesse esperando por um desastre.

— Sei como é. — Ele olhou para o teto manchado, os pensamentos vagando. — Às vezes, acho que é só paranoia. Outras vezes... acho que é um aviso.

Elisa o observou por um momento, seus olhos claros refletindo a luz fraca que entrava pela janela.

— Você sente isso agora?

Dante ficou em silêncio. Ele queria dizer que não, que era só uma noite comum. Mas algo o impedia.

— Sim.

Elisa abaixou a cabeça e apertou os braços ao redor dos joelhos, como se tentasse se proteger do frio ou de algo invisível.

— Eu também.

Lá fora, fazendo a estrutura do orfanato ranger, a tempestade estava se intensificando.

O vento berrava do lado de fora como um louco moribundo, mas dentro do quarto só restava o silêncio hesitante entre os dois. Dante não sabia por que ainda estava ali, conversando. Normalmente, ele se afastava das pessoas, evitava conversas desnecessárias. Mas Elisa parecia diferente.

— Você é a primeira pessoa que lembra do meu aniversário. — Ele soltou um riso curto, sem humor. — Nem eu costumo lembrar.

Elisa o olhou de soslaio, como se estivesse tentando entender se ele falava sério ou só estava brincando.

— Bem... eu só lembrei porque vi seu nome na ficha do orfanato. — Ela deu de ombros. — E porque a Lúcia comentou mais cedo. Disse que talvez fizessem algo no almoço.

Dante bufou.

— "Fizessem algo" significa bolo de caixinha e uma vela torta.

Elisa riu de leve, um som discreto, mas real.

— E crianças gritando "feliz aniversário" como se fossem obrigadas a isso.

Ele sorriu, dessa vez sem forçar.

— Exato.

Dante percebeu que Elisa ainda o observava, analisando-o com cautela.

— Você realmente não gosta do seu aniversário?

Ele pensou um pouco antes de responder.

— Não é que eu odeie. — Suspirou, apoiando a cabeça na parede. — Só... não gosto da atenção. Durante o ano todo, sou praticamente invisível. Mas no meu aniversário, de repente todo mundo lembra que eu existo.

Elisa assentiu, como se entendesse exatamente o que ele queria dizer.

— Acho que eu ia gostar de ser invisível.

Dante ergueu uma sobrancelha.

— Mas você já é meio invisível. Você nunca fala com ninguém, está sempre desenhando no seu canto.

Ela deu um meio sorriso.

— Mas as pessoas ainda me veem. Ainda esperam algo de mim.

Ele franziu o cenho.

— Como assim?

Ela hesitou, como se estivesse pensando se deveria falar.

— Sei lá. — Elisa desviou o olhar para a janela, onde a tempestade continuava castigando o lado de fora. — Acho que todo mundo aqui tem uma maneira de lidar com esse lugar. Você se esconde, eu finjo que estou ocupada. No fim, dá na mesma.

Dante a observou em silêncio por um momento. Nunca tinha pensado nisso dessa forma, mas fazia sentido.

— Então você desenha para fugir?

Ela sorriu de leve.

— Talvez. Mas acho que também desenho para lembrar.

— Lembrar do quê?

Ela ficou quieta por um tempo, antes de responder baixinho:

— Que eu existo.

Dante não soube o que dizer. Então, apenas ficou ali, deixando o silêncio preencher os espaços que as palavras não conseguiam, no entanto, ponderou as palavras dita por Elisa.

'Dúvido muito que ela esteja falando sobre o ato de desenhar realmente, deve ser uma metáfora que só ela entende. Será que ela é uma louca viciada?'

Com um olhar curioso, Dante voltou sua atenção para a aparência de Elisa.

'Nah! Ela não parece do tipo rebelde...'

O silêncio voltou, mas agora parecia mais confortável. Ele se perdeu no pensamento por um momento, quando a tempestade lá fora parecia ganhar força, os ventos uivando com mais intensidade. E foi nesse momento, quando ele estava prestes a falar novamente, que o som explodiu.

KRRRRZZZZZZSSSSSSHHHHHH!!

O pensamento mórbido morreu abruptamente, sendo ofuscado por um som nauseante, tão alto que se explosões planetárias tivessem som provavelmente não seriam tão assustadoras quanto essa.

Sirenes rugiam enquanto mais um dos inimagináveis estrondos parecia rasgar o tecido da realidade.

——————–—————————————

Longe dali, um jovem de altura modesta, olhos profundos e pele esbranquiçada, observava o céu — um emaranhado de estrelas, brilhando como pontinhos prateados em uma tela escura. Ele ficava perdido naquela imensidão, pensando que, por mais que o mundo fosse vasto, sempre havia algo além dele, outro céu, outras estrelas, outros mundos... o universo era, sem dúvida, algo sem fim.

"Belo, né?" Daphne, sempre radiante, o olhava com seus olhos azuis, profundos como o oceano ao amanhecer, quase refletindo as estrelas que o observavam.

"Sem igual."

A voz rouca de Cael ressoou suavemente pela varanda, iluminada pela luz suave da lua. Ele se levantou, um sorriso leve, quase imperceptível, tomando conta de seu rosto.

"Perdão, me empolguei. Que horas são?"

Daphne, com um sorriso travesso, respondeu:

"Não deve passar de meia-noite, mas quem conta o tempo quando se está diante de um paraíso desses?"

Ela olhou para o céu, que parecia brilhar ainda mais ao seu comentário.

'Sem dúvidas...' pensou Cael, um brilho nos olhos dele também.

"Bem... Vamos entrar, Daph? Acho que a fome bateu. Tem lasanha congelada, não tô muito afim de cozinhar agora."

Daphne revirou os olhos, mas não pôde deixar de sorrir. "Só porque eu estava afim de uma comida de verdade..."

Ela entrou resmungando, mas o tom leve de sua voz deixava claro que, apesar da brincadeira, ela adorava cada momento com ele, e ele com ela.

Daphne olhou para Cael, o sorriso iluminando o rosto dela como sempre. A tranquilidade da noite parecia envolver os dois, um momento de paz em meio à imensidão do céu.

"Vamos logo, então," ela disse, já começando a virar-se para dentro. "Eu não vou esperar a lasanha esfriar."

Cael a observou, um leve sorriso tomando conta de seu rosto. Ele se levantou, mas antes de seguir Daphne, seus olhos se fixaram novamente no céu. O brilho das estrelas parecia mais intenso naquele momento, como se estivessem prestes a se mover, a fazer algo que não era comum. O pensamento o atravessou rapidamente, mas logo ele o afastou.

"Cael?" Daphne o chamou, uma leve impaciência em sua voz. "A lasanha vai esfriar."

Ele desviou o olhar, rindo baixinho. "Desculpa, só me perdi por um momento." Enfim á seguiu.

Daphne, percebendo o movimento de Cael, se virou. "Tá tudo bem? Você parece... estranho."

Ele deu um sorriso curto, tentando dissipar qualquer preocupação. "É só a lua. Quando ela brilha assim, me sinto... meio fora de sintonia." Ele deu de ombros. "Vamos? Tô morrendo de fome."

Daphne fez um gesto impaciente com a mão. "Sempre com essa desculpa. Vamos logo!"

Eles começaram a andar em direção à porta da varanda. Mas então, um som baixo, quase inaudível, começou a cortar a noite. Cael parou de andar, seus olhos se estreitaram, tentando identificar de onde vinha o som.

"Você ouviu isso?" ele perguntou, a calma de antes já desaparecendo de sua voz.

"Ouvi o quê?" Daphne parou também, franzindo a testa. Ela não parecia perceber nada fora do comum. "Não tá ouvindo, Cael? Sua cabeça tá cheia de estrelas hoje."

Mas o som foi ficando mais claro, mais forte, como o retumbar distante de algo pesado, uma pressão no ar que parecia aumentar a cada segundo.

"Cael..." Daphne começou, com um tom que estava ficando mais tenso, mais desconfortável. "O que está acontecendo?"

Antes que ele pudesse responder, a vibração no chão ficou mais forte. O barulho que até então era distante e abafado agora reverberava como um trovão, só que mais profundo, mais visceral. O vento aumentou, arrastando com ele um frio gélido que fez os dois se estremecerem.

"Isso não é normal..." Cael murmurou, olhando para o céu, que agora parecia se contorcer, as estrelas tremendo, brilhando com uma intensidade que não parecia natural.

"Cael..." Daphne sussurrou, olhando para ele com uma mistura de confusão e medo. "O que está acontecendo? O que é isso?"

O som se intensificou de uma forma quase insuportável, o ar pulsando ao redor deles. Então, com um impacto tão forte que parecia explodir em suas mentes, um estrondo profundo ecoou, fazendo o chão tremer. O céu à sua frente se rasgou com um clarão brilhante, uma luz que cegou tudo ao redor, e o mundo, por um momento, pareceu paralisar.

Daphne estendeu a mão instintivamente, como se quisesse se agarrar a algo, mas o clarão a cegou por um momento. Cael estava paralisado, os olhos fixos na luz que se espalhava pelo horizonte.

"Cael... o que...?" Daphne conseguiu dizer, a voz cortada pela pressão do som e da luz que invadiam o mundo ao redor deles.

Ele não teve tempo de responder. O som da queda se aproximava a uma velocidade impossível, um rugido surdo que parecia engolir tudo ao seu redor. E, antes que pudesse reagir, a onda de choque os envolveu, destruindo a noite, o céu, tudo.

Seguido por um turbilhão incandescente surgindo no horizonte, Cael só pode pensar que o apocalipse havia chegado. O céu que antes parecia claro e acolhedor agora estava em chamas, um brilho intenso e ameaçador cortando o céu, como uma lâmina de fogo prestes a rasgar o mundo. Ele respirou fundo, tentando encontrar alguma explicação lógica, algo que pudesse impedir o pânico que começava a se espalhar por seu corpo. Mas nada fazia sentido. Nada.

O som que ecoava pelo ar agora era diferente. Não era mais o retumor distante, mas algo mais grotesco, mais terrível — como os choros de agonia de um ser infernal, de um mundo desmoronando sob seu peso. O ar estava carregado de uma pressão insuportável, e até as estrelas pareciam desaparecer, engolidas pela luz apocalíptica que se aproximava.

Antes que Cael pudesse dizer uma palavra, um grito silencioso de terror surgiu de Daphne, seus olhos arregalados de incredulidade. "Cael... O que... o que é isso?!"

Acima do prédio onde o casal vivia, uma fenda se abriu no céu, rasgando a escuridão como uma ferida exposta. Ela parecia uma cicatriz no próprio tecido da realidade, um buraco escuro onde nada de bom poderia nascer. Localizava-se cerca de 40 metros acima do edifício, e sua forma era monstruosa: um portal com 60 metros de largura e 60 metros de diâmetro, uma abertura no céu que parecia absorver toda a luz ao seu redor.

A fenda pulsava, como se respirasse, emitindo um som ensurdecedor que se misturava aos gritos que agora pareciam vir de todas as direções. Algo de dentro da fenda se movia, sombras que dançavam e se retorciam, mas nada que Cael pudesse distinguir com clareza. A sensação era de que o próprio mundo estava sendo rasgado, e eles estavam bem no centro disso, à mercê de algo que nem as estrelas no céu poderiam explicar.

Daphne deu um passo atrás, seu corpo tremendo.

Mas Cael não conseguia responder. Seus olhos estavam fixos no portal, uma mistura de medo e fascinação prendendo-o no lugar. Ele sabia que nada seria mais o mesmo. O que quer que estivesse vindo através daquela fenda... não parecia natural. Era algo primordial, algo que não deveria existir no mundo deles.

A fenda parecia crescer, expandindo-se à medida que o som grotesco aumentava, um grito que cortava o céu e fazia o chão sob seus pés tremer. As paredes do edifício começaram a vibrar, como se estivessem prestes a ceder ao peso do que estava chegando. E então, sem aviso, um estrondo infernal emitiu da fenda — o som de algo entrando no mundo, rasgando o espaço, e Cael teve certeza de que o fim havia chegado.

Daphne, com os olhos fixos na fenda, sussurrou: "Cael... o que é isso?"

Ele não tinha resposta. Não havia o que fazer. O apocalipse estava ali, diante deles, e não havia como fugir.

Então por meio da fenda visceral, surge o primeiro demônio, sua presença profana invade a realidade, instigando o medo primitivo com o quê tentasse ousar olhar para ele. A criatura desceu, dando início a sentença da humanidade.