No abismo mais profundo do Inferno, onde as chamas negras iluminavam apenas para revelar ainda mais trevas, o salão dos Príncipes estava tomado por uma tensão opressora. Lúcifer, o Portador da Luz, estava sentado em seu trono de obsidiana, sua figura imponente irradiando uma autoridade que fazia o próprio Inferno se curvar.
Diante dele, os três príncipes do pecado se reuniam. Mammon, senhor da Avareza, com suas vestes brilhantes de ouro sujo, encarava os outros com um semblante irritado. Azazel, o furioso avatar da Ira, andava de um lado para o outro, sua armadura negra faiscando como se quisesse consumir tudo à sua volta. Belzebu, o gluttonoso, repousava no canto mais escuro, seus olhos de mosca girando incessantemente, um sorriso grotesco em seu rosto inchado.
Mammon foi o primeiro a quebrar o silêncio. Sua voz, carregada de desprezo e ansiedade, ecoou pelo salão.
- Esse homem... esse inseto ousa desafiar a essência do que somos. Gula, Ira, Avareza... tudo o que criamos, ele destrói. Ele não só nos enfrenta, ele nos desmembra!
Azazel deu um soco na mesa de pedra, rachando-a. Sua voz era um trovão carregado de ódio.
- Esse maldito não conhece limites! Ele enfrentou minha fúria e não sucumbiu. Ele desafiou minha chama com algo ainda mais ardente: propósito. Um propósito que não consigo destruir!
Belzebu riu baixinho, sua voz gorgolejante carregada de ironia.
- Propósito... tolice humana. Mas tenho que admitir, ele é persistente. Ele virou Gula contra si mesma, transformando meu banquete em veneno. Isso... isso não pode continuar.
Lúcifer, que até então observava em silêncio, ergueu uma mão, silenciando a disputa. Sua voz era baixa, mas cheia de uma gravidade que fazia o ar no salão se tornar ainda mais pesado.
- Ele não é um homem comum. Isso já está claro. Ele resiste porque acredita que está redimindo algo maior que ele mesmo. Ele não destrói apenas nossos avatares; ele tenta erradicar as ideias que representamos.
Mammon cruzou os braços, seu tom desdenhoso mal escondendo o medo.
- Então, o que faremos? Deixar que ele caminhe até nós, destruindo tudo em seu caminho?
Azazel rosnou, seus olhos vermelhos brilhando com uma fúria incontrolável.
- Ele pode ter resistido à minha ira, mas ninguém é invulnerável à dor. Se ele busca justiça, farei questão de transformá-la em desespero.
Belzebu lambeu os lábios com uma língua grotesca, um brilho de malícia em seus olhos.
- Ele superou a gula? Então vamos alimentá-lo com o próprio vazio que carrega. Farei com que ele engula seu orgulho, sua esperança, até que não reste nada além de desespero.
Mammon inclinou-se para frente, um sorriso ganancioso deformando seu rosto.
- E eu o tentarei com o que ele mais teme: o poder. Não apenas o poder sobre o Inferno, mas sobre tudo que ele deseja proteger. Vamos dar-lhe o mundo e observar enquanto ele se destrói tentando segurá-lo.
Lúcifer finalmente se levantou, sua presença esmagadora silenciando qualquer murmúrio. Ele caminhou lentamente até o centro do salão, suas palavras escorrendo como veneno.
- Vocês são fracos porque o subestimaram. Mas eu, não. Esse homem não é apenas uma ameaça. Ele é um catalisador. Ele acredita que pode superar o próprio Inferno, mas ele ainda não enfrentou a essência do que somos.
Ele se voltou para os três.
- Vamos unir nossas forças contra ele. Transformar cada passo que ele der em um labirinto de sofrimento. Ele acredita que está purgando os pecados? Então, faremos com que ele seja consumido por eles. Que cada vitória pese em sua alma como uma maldição, até que ele mesmo se torne o que jurou destruir.
Azazel sorriu, um sorriso selvagem e cruel.
- Vamos ver quanta fúria seu coração pode suportar antes de implodir.
Belzebu gargalhou, suas palavras escorrendo como bile.
- Vamos engordá-lo com seu próprio ego até que ele não possa mais se mover.
Mammon assentiu, sua voz gotejando veneno.
- E então, quando ele estiver no chão, vou fazer com que deseje nunca ter entrado no Inferno.
Lúcifer ergueu uma mão, as chamas ao redor explodindo em um brilho cegante.
- Ele acredita que pode nos derrotar, mas é hora de mostrar-lhe o verdadeiro Inferno. Vocês três irão lá conquistar seus pecados de volta, eu ficarei esperando ele até o pecado do orgulho, se é que ele consegue chegar lá, esse humano não tem medo do perigo, ele brinca com pecados capitais. Não o subestimem.
-
O silêncio entre nós era sufocante, quebrado apenas pelo som das pedras do Inferno rangendo sob nossos pés e o lamento distante de almas que jamais encontrarão descanso. A atmosfera era pesada, saturada de um calor que não vinha apenas das chamas, mas do peso das dúvidas que cada um carregava. Então, como se não pudesse mais suportar o vazio, Avareza falou. Sua voz era hesitante, quase como se ele temesse a resposta.
— Deus realmente existe? — Ele apertou sua sacola contra o peito, como se a segurança de seus tesouros pudesse protegê-lo de uma verdade que talvez não quisesse ouvir.
Por um momento, ninguém respondeu. Gula, que geralmente não resistia a uma provocação, estava estranhamente quieta, mas logo sua fome incontrolável encontrou um canal diferente.
— Se Ele existe, por que isso? — ela disse, gesticulando ao nosso redor com uma mão. — Por que nos fazer e nos deixar apodrecer? Por que criar isso tudo, para depois virar as costas? Eu nunca entendi… Ele nos despreza? Nos odeia? Ou simplesmente não se importa?
— Ele nos despreza, sim, — Ira interveio, sua voz fervendo com a mesma raiva que sempre carregava. — Porque só alguém que despreza suas criações seria capaz de fazer isso. Criar dor, sofrimento, abandono. Se Ele é real, então Ele é um sádico, um tirano que se diverte com nossa miséria.
Eu ouvia. O som de suas vozes parecia tão distante quanto a minha própria humanidade. Cada palavra, cada pergunta, era apenas um eco de algo que tantas almas já haviam questionado antes de nós. Deus. Sua existência. Sua ausência. Como se a resposta fosse mudar alguma coisa.
— Vocês falam de Deus como se Ele fosse um tirano humano, — comecei, minha voz cortante, mas vazia. — Como se Ele pensasse, sentisse ou agisse como nós. Como se Ele tivesse falhas ou intenções. Mas e se Ele não for nada disso? E se Deus não for justo, nem cruel, nem bondoso, nem maligno? E se Deus não for nada do que imaginamos, porque Ele simplesmente... é? Porque Ele é o absoluto. Porque Ele não precisa se justificar para suas criações.
Avareza me olhou, sua expressão oscilando entre curiosidade e medo.
— Se Ele é o absoluto, então o que somos nós? Apenas um erro?
Eu ri, mas minha risada não tinha calor. Era seca, fria, quase mecânica.
— Vocês se consideram erros porque acreditam que tudo deveria girar ao redor de vocês. Essa é a arrogância humana, a mesma arrogância que nos trouxe até aqui. Vocês acham que o sofrimento não deveria existir porque ele fere sua ideia de justiça, como se o mundo tivesse alguma obrigação com vocês. Mas e se até o sofrimento fizer parte do plano? Não porque Deus seja cruel, mas porque Ele é perfeito. E a perfeição não tem falhas. Ele não pode errar, e isso significa que Ele não pode voltar atrás. Deus é prisioneiro de Sua própria perfeição, tanto quanto somos prisioneiros de nossas fraquezas.
Gula soltou uma risada amarga.
— Então Ele é perfeito, mas nos fez imperfeitos? Que tipo de lógica é essa? Se Ele é perfeito, por que não criou um mundo perfeito? Por que não fez algo que valesse a pena?
— Porque vocês confundem perfeição com conforto, — retruquei, minha voz ganhando peso, mas não emoção. — Alguns gostariam que Deus tivesse criado outro mundo. Outras perfeições. Algo mais fácil, mais gentil, apenas para satisfazer suas mentes frágeis e extravagantes. Mas não percebem que a verdadeira perfeição não está em agradar vocês, mas em existir acima de qualquer julgamento. Deus não erra porque tudo o que Ele faz é completo. Mesmo a dor, mesmo o sofrimento, mesmo este lugar. Vocês querem que Deus seja humano, porque não conseguem conceber algo maior.
O silêncio caiu sobre nós novamente, mas dessa vez era opressor. Não era o tipo de silêncio que vinha da paz, mas da resignação. Eles não responderam, talvez porque não havia nada mais a dizer. Talvez porque, em algum lugar dentro deles, sabiam que eu estava certo.
A verdade é que Deus não é bom ou mau. Ele não é justo ou injusto. Deus é o peso absoluto de tudo o que existe, de tudo o que jamais existiu, e de tudo o que ainda existirá. Ele carrega o fardo de tudo o que criou, e nunca poderá desfazer nada disso. Ele é, e isso basta.
Eu continuei andando, indiferente aos olhares deles. O que eles pensavam, acreditavam ou temiam não importava para mim. Talvez, lá no fundo, não importasse para ninguém. Deus não precisa que acreditamos Nele, nem que o compreendamos. E, ao entender isso, percebi que talvez fosse isso que o tornava Deus.
À minha direita, uma árvore retorcida sangrava pelas raízes, enquanto galhos seguravam corpos que gritavam com vozes dissonantes. Suas bocas se rasgavam, esticando-se até as orelhas, enquanto uma seiva negra e pegajosa escorria pelas fendas. Um deles, ou o que restava dele, virou a cabeça para mim, os olhos vazios de alma, mas cheios de um entendimento cruel:
— Você pensa que é diferente de nós? — sua voz era frágil, mas afiada como uma lâmina. — Não somos os pecadores. Somos a verdade que vocês temem olhar no espelho.
Continuei andando, ignorando o desafio. Mas algo dentro de mim remexeu. Não era culpa. Era fascínio. Talvez ele estivesse certo.
À frente, um rio de carne fervia como um mar doente. Pessoas — ou o que restava delas — lutavam para escapar, mas cada tentativa só afundava mais seus corpos deformados no oceano de agonia. Braços se erguiam, dedos derretidos se agarravam ao ar em um gesto fútil de desespero. Um deles gritou enquanto sua cabeça emergia do líquido escarlate:
— Eu só queria ser amado! Só queria que alguém me olhasse! É por isso que estou aqui? É?
Sua voz ecoava, desesperada, mas o rio não lhe deu trégua. Ele foi puxado de volta, seu corpo engolido pela substância viva, enquanto seu grito se transformava em borbulhas abafadas.
Olhei para o espetáculo, sem compaixão, sem horror, apenas uma indiferença que eu começava a reconhecer como parte de mim.
É assim que o Inferno funciona, pensei. Não é uma punição. É uma revelação. Não são os atos que os trouxeram aqui, mas o vazio dentro deles, que agora foi amplificado até se tornar um grito eterno.
Ao longe, uma figura magra e curva rastejava pelo chão, suas pernas torcidas em ângulos impossíveis. Seus olhos estavam cobertos de pele, mas ela ainda enxergava de alguma forma. Enquanto nos aproximávamos, a criatura sussurrou, cada palavra arrancada de uma garganta que parecia estar sendo dilacerada:
— Eles me disseram que havia misericórdia... — a voz tremia, mas carregava uma tristeza impossível de ignorar. — Que bastava pedir perdão. Mas, aqui, até mesmo a esperança é um pecado.
Parei por um momento, fitando-a enquanto ela se contorcia em sua própria dor. Não havia piedade em mim. Eu sabia disso. Mas havia curiosidade.
— Quem disse que havia misericórdia? — perguntei, minha voz saindo como um sopro gélido.
Ela riu, ou tentou rir, mas o som foi um gemido grotesco.
— Eles. Aqueles que nunca vieram me buscar.
Continuei andando, deixando-a para trás, seus sussurros desaparecendo no vento carregado de gritos.
O chão começou a se transformar novamente, agora feito de espelhos rachados que refletiam não meu rosto, mas fragmentos das almas que caminhavam comigo e ao meu redor. Cada rachadura parecia contar uma história — não de seus pecados, mas de suas razões. Uma mulher apareceu refletida em um dos espelhos, seu rosto metade consumido por chamas, metade pálido como a morte. Ela me encarou e falou:
— Deus viu tudo. E Ele deixou. Ele nos criou para isto, sabia? Para sermos um lembrete de que até Ele não é perfeito.
— Não — respondi, minha voz cortante como o vidro sob meus pés. — Ele não é imperfeito. Ele é a perfeição que você nunca entenderá. Ele cria e destrói porque só Ele pode suportar o peso do que fez. Você caiu porque não era forte o suficiente para existir.
O reflexo riu, mas a risada era um soluço de dor. E eu? Não me importei. Porque sabia que havia verdade nas minhas palavras.
Chegamos a um vale onde corpos estavam pendurados de correntes que perfuravam suas carnes. Cada movimento fazia com que a pele rasgasse mais, mas eles continuavam se balançando, lutando contra a gravidade, como se escapar fosse uma possibilidade. Uma das figuras penduradas sussurrou, sua voz abafada pelo som do vento:
— Deus realmente existe?
As palavras ressoaram pelo ar, como um desafio. Não hesitei em responder.
Então, repeti novamente. Todos buscavam respostas, mas nunca as encontravam, e talvez fosse exatamente essa busca infinita que definisse o que é ser humano. Ser humano é duvidar, é questionar o próprio sentido de existir. Quem não tem dúvidas, quem carrega todas as respostas, é Deus — e talvez, nesse fardo, exista algo terrivelmente solitário. Eu não desejava ser Deus, nem perfeito, nem absoluto. Desejava ser apenas eu, na versão mais verdadeira que pudesse alcançar, uma visão de mim mesmo guiada pelo coração, mesmo que isso significasse errar e cair. E, depois de refletir sobre isso, olhei para a figura e repeti as mesmas palavras que antes havia dito aos pecados.
— Deus existe. Ele é a única constante aqui. Mas vocês nunca entenderão o que isso significa. Deus não é bom ou justo, não no que vocês entendem como justiça. Ele é indiferente. Ele é o peso de tudo que existe, de tudo que foi criado. Ele suporta o que nós nunca suportaríamos. Vocês estão aqui porque Ele criou um mundo que reflete a vocês mesmos. E esse mundo exige equilíbrio.
O silêncio caiu por um momento, até que uma voz, mais distante, sussurrou:
— Então, por que não criou algo melhor?
Eu me virei para as sombras, meus olhos fixos no vazio à minha frente.
— Porque não somos Ele. Alguns gostariam que Deus tivesse criado outro mundo, outras perfeições, apenas para satisfazer suas mentes pequenas e extravagantes. Mas isso não faria de vocês nada além de marionetes. Este é o mundo que vocês quiseram, o reflexo das escolhas que fizeram, mesmo antes de estarem aqui.
Continuei andando, cada passo carregando-me mais fundo, mais perto do que quer que estivesse no final. E em cada alma que passava, eu via não só a dor delas, mas a verdade de que talvez, só talvez, o Inferno fosse a única justiça verdadeira.