Enquanto caminhávamos, sentíamos o chão tremer sob nossos pés. Não era sólido, mas sim uma mistura de carne, ossos e lodo, como se o próprio inferno estivesse nos desafiando a dar o próximo passo. Ao longe, vultos indistintos lutavam contra o peso de suas próprias existências, braços se esticando, mas nunca alcançando nada.
Gula mastigava um pedaço de carne humana que havíamos recolhido antes, enquanto lançava olhares desinteressados ao redor. Ela falou, sua voz carregada de um cansaço que não era físico.
- Irônico, não é? Estar aqui no círculo da preguiça, mas ainda ter que continuar caminhando. É quase... cruel.
Avareza soltou um riso seco, enquanto apertava a sacola improvisada com pele humana que carregava com ela.
- Cruel? Eu chamaria de justo. Estes aqui escolheram parar. Se quer continuar vivo, tem que lutar, não importa onde esteja.
Ira estava calada, mas sua presença era como uma chama ardente, pronta para explodir a qualquer momento. Ela carregava sua barra de ferro com firmeza, como se esperasse um ataque iminente. Não que houvesse muito para temer aqui. As almas do círculo da preguiça eram incapazes de atacar com eficácia. Seus corpos mal se moviam, seus olhos pareciam implorar para que fizéssemos o trabalho sujo de acabar com eles.
- Eles não querem viver - murmurei, quebrando o silêncio. - Não têm energia para isso. Apenas existem.
Foi então que vimos a garota. Ela estava sentada em um monte de corpos, sua faca improvisada descansando sobre o joelho, enquanto mastigava calmamente um pedaço de carne. Diferente das almas ao nosso redor, ela não parecia abatida ou presa no ciclo de apatia. Havia algo de deliberado em sua quietude, algo inquietante.
Ela ergueu os olhos para nós, sua expressão tão vazia quanto a de um cadáver, mas seus movimentos eram controlados, precisos.
- Um Humano, e essas sombras? - Sua voz cortou o ar como uma lâmina, baixa, mas firme. - O primeiro "humano" que vejo por aqui.
Ira foi a primeira a reagir, apontando sua barra de ferro para a garota.
- Quem é você?
A garota não se intimidou. Apenas inclinou a cabeça ligeiramente, avaliando Ira como um predador avaliaria uma presa.
- Eu? Não sou ninguém. Só alguém tentando sobreviver, como vocês.
Gula deu um passo à frente, lambendo os lábios manchados de sangue.
- Não parece uma dessas almas rastejantes. Como você ainda está aqui?
A garota deu de ombros, jogando o pedaço de carne que mastigava de lado.
- Eu sou como vocês. Fui trazida para cá. Não faço perguntas, apenas continuo me movendo.
Avareza estreitou os olhos, desconfiada.
- E por que deveríamos confiar em você?
Ela riu, mas o som estava vazio, sem qualquer calor.
- Não deveriam. Mas acreditem, não sou eu quem vai te matar. Esse lugar faz isso sozinho.
- Nome - exigi, sem paciência para enigmas. - Diga seu nome.
- Não importa. - Ela passou a faca pelo tecido sujo de sua roupa, limpando o sangue. - Chamem-me de Naka, se precisarem de algo para gritar quando eu salvar suas vidas.
Ira deu um passo à frente, sua postura tensa.
- Se você acha que pode andar conosco, terá que provar que não é só mais uma dessas almas mortas em movimento.
Naka sorriu de canto, mas não havia emoção naquele gesto. Apenas uma aceitação fria.
- Provar? Muito bem. - Ela ergueu a faca e apontou para uma das almas que rastejava em nossa direção, a mão estendida como se pedisse ajuda. Com um movimento rápido e sem hesitação, ela cravou a lâmina no crânio da criatura, que soltou um gemido curto antes de desabar na lama. - Suficiente?
Gula riu, genuinamente divertida.
- Acho que gostei dela.
Avareza bufou, mas não argumentou. Eu apenas observei, avaliando. Havia algo nela que ressoava em mim, algo perturbador. Ela era fria, apática, completamente amorfa em suas intenções, assim como eu, por isso parecia tão... perturbador. Talvez isso fosse útil. Talvez fosse perigoso. Mas no inferno, todos os aliados eram temporários, e eu sabia disso melhor que ninguém.
Continuamos a caminhar juntos, agora com Naka em nosso grupo. Enquanto nos movíamos pelo pântano, ela falou sem ser convidada.
- Vocês já notaram como este lugar suga mais do que energia? Ele quer sua vontade. Sua luta. A preguiça aqui não é uma escolha. É uma doença.
- E você é imune? - Avareza perguntou, a suspeita escorrendo de cada palavra.
- Não. - Ela olhou para ele por cima do ombro. - Apenas ainda não fui consumida. Talvez porque eu não tenha nada a perder.
Ira balançou a cabeça.
- Que poético. Mas não vamos morrer aqui. Esse não é nosso destino.
- Destino? - Naka soltou uma risada curta, fria. - Aqui não existe destino. Só escolhas e suas consequências.
Avançávamos pelo círculo da preguiça, e o ambiente parecia piorar a cada passo. O ar estava denso, quase sólido, como se cada inspiração exigisse um esforço monumental. À medida que caminhávamos, começamos a notar uma estranha presença. Não era visível de imediato, mas parecia envolver tudo ao nosso redor, um peso que se infiltrava em nossas mentes e corpos, tentando nos esmagar sob sua influência.
Então, nós o vimos. Preguiça.
Era colossal, uma aberração que dominava o horizonte. Seu corpo parecia parte do próprio terreno, enraizado em um trono feito de almas mortas e carne apodrecida. Ele era imenso, inchado como um tumor que pulsava vagarosamente, sua pele cinzenta e flácida coberta de fissuras que exalavam um líquido espesso e oleoso. Seus olhos eram fundos, quase inexistentes, mas pareciam nos observar de todos os ângulos, mesmo quando estavam fechados.
Ao redor dele, centenas de corpos se arrastavam em círculos lentos, seus movimentos tão descoordenados e arrastados que mais pareciam mortos do que vivos. Cada um deles estava preso a correntes que os puxavam de volta sempre que tentavam parar de se mover, obrigando-os a continuar em um ritmo eterno e inútil.
A colossal figura de Preguiça permanecia em seu trono de carne, sua presença saturando o ar ao nosso redor com um peso quase tangível. Cada palavra que ela sussurrava dentro de nossas mentes era um convite à inação, uma sedução insidiosa para desistir. Porém, naquele momento, algo dentro de mim clareou: Preguiça não era apenas um oponente físico. Era um conceito, um estado de espírito. Para derrotá-la, precisávamos confrontá-la em seu próprio território.
- Espere - murmurei para os outros. - Não precisamos atacá-la de imediato. Precisamos... pensar.
Gula arqueou uma sobrancelha, mastigando preguiçosamente o pedaço de carne que trazia consigo.
- Pensar? Sobre o quê? Só esmagamos ela, não?
Naka, no entanto, parecia captar algo no meu tom. Ela cruzou os braços, observando-me com olhos frios e avaliativos.
- Você tem um plano. Não é?
Assenti, deliberadamente devagar. Tudo o que fiz a partir daquele momento foi intencional, uma performance para o público mais perigoso que já enfrentamos.
Deixei meus ombros caírem e suspirei profundamente, como se cada palavra que saísse de minha boca fosse um esforço monumental.
- Talvez... talvez não haja motivo para isso. - Pausei, esperando. - Talvez... devêssemos apenas nos sentar.
Preguiça, mesmo imóvel, parecia reagir. O ar ao nosso redor ficou mais denso, como se ela estivesse se inclinando para escutar melhor.
"Ah... Você entende. Descansar. Abandonar o peso do querer. É isso que desejo para vocês..."
- Sim... talvez você esteja certa... - continuei, arrastando as palavras e abaixando o olhar, fingindo deliberar. - O que significa tudo isso? Caminhar, lutar, sobreviver... Não vale a pena.
Ira, que até então estava inquieta, bufou alto, mas antes que pudesse interromper, Naka ergueu uma mão, pedindo silêncio. Ela entendeu meu jogo.
Preguiça pareceu se expandir, como se o reconhecimento das minhas palavras lhe desse mais poder. Suas vozes agora ecoavam dentro de mim com uma força renovada.
"Sim... isso mesmo... sente-se. Descanse. Deixe que o mundo siga sem você. Não há necessidade de esforço."
Continuei a me dobrar sob a pressão, minha postura ficando mais mole, minha expressão mais apática. Comecei a arrastar minha fala ainda mais, fingindo indecisão.
- Talvez... devêssemos... só ficar aqui... pelo menos... por um tempo...
De canto de olho, vi Naka entrar no jogo. Ela também relaxou os ombros e se jogou no chão, sentando-se casualmente com um suspiro exagerado.
- Sim, acho que ele está certo. Não tem sentido. Vamos descansar um pouco.
Avareza olhou para mim, irritado, mas não questionou. Apenas apertou a sacola contra o peito e murmurou:
- Isso é estupidez. Mas faça o que quiser.
Mesmo Ira, depois de um olhar longo e penetrante, percebeu que algo estava acontecendo. Ela encostou-se em sua barra de ferro, suspirando pesadamente.
- Finalmente. Achei que ninguém fosse perceber que lutar contra isso é uma perda de tempo. - Sua voz gotejava sarcasmo, mas soava suficientemente convincente.
Preguiça, por sua vez, pareceu relaxar em sua postura monstruosa, como se estivesse satisfeita.
"Ah... Vocês entendem... Finalmente. Apenas parem..."
E então comecei a plantar as sementes.
Enquanto fingia procrastinar, comecei a murmurar para mim mesmo, tão baixo que parecia falar apenas para o vazio.
- Mas... e se pararmos por muito tempo? Isso não seria... perigoso?
Preguiça hesitou. A vibração no ar diminuiu por uma fração de segundo.
"Permanecer... é a única verdade... Não há perigo no nada."
Continuei.
- Mas... mesmo o nada não é seguro... certo? Quero dizer, se ficarmos muito tempo parados, talvez... algo venha nos consumir.
A hesitação tornou-se palpável. A criatura não estava acostumada a ser confrontada com lógica, e, em sua própria natureza letárgica, parecia incapaz de lidar com a complexidade do pensamento crítico.
Naka percebeu a abertura e entrou no jogo.
- Ele tem razão. Se ficarmos parados, talvez nos tornemos como essas almas rastejantes. - Ela apontou para as criaturas ao redor, cujos corpos flácidos e olhos vazios exemplificavam o destino de quem sucumbia à preguiça.
Preguiça tentou reagir, mas suas palavras vinham mais lentas agora, como se estivessem sendo sufocadas por suas próprias dúvidas.
"O nada... é... paz... Vocês... não precisam... temer..."
- Paz? - Ira finalmente entrou na conversa, sua voz carregada de uma fúria controlada. - Isso aqui não é paz. Isso é tortura. Você nem consegue se mover, está preso em seu próprio trono. É isso que chama de liberdade?
O golpe acertou. Preguiça tremeu, como se tivesse sido ferida, mas não fisicamente. Seu corpo gigantesco começou a contrair-se, como se estivesse tentando resistir às sementes de dúvida que havíamos plantado.
Finalmente, aproveitei o momento para dar o golpe final. Levantei-me de repente, minha voz cortando o ar.
- Você é uma fraude, Preguiça. Não é livre. Está tão presa quanto qualquer um aqui. Nós escolhemos seguir em frente, mas você? Você não pode. Você não sabe como.
O impacto psicológico foi imediato. Preguiça urrou, um som gutural que sacudiu o terreno inteiro. Sua massa começou a desmoronar sobre si mesma, como se estivesse sendo consumida por sua própria inatividade. As almas ao redor, antes rastejando sem propósito, começaram a desaparecer uma a uma, dissolvendo-se no lodo sob nossos pés.
Naka levantou-se, sua faca ainda em mãos, e lançou-me um olhar seco.
- Nada mal. Mas da próxima vez, avisa antes de fingir que vai desistir.
Gula riu, mastigando o que restava de sua carne.
- Eu gostei do teatro. Me lembrou um pouco de mim.
Avareza suspirou, olhando para a sacola que ainda segurava.
- Só espero que isso tenha valido a pena.
Ira, como sempre, apenas assentiu, embora seu rosto mostrasse uma rara expressão de respeito.
Preguiça então virou uma sombra. Não uma sombra no sentido literal, mas uma distorção do espaço ao nosso redor, como se seu corpo tivesse sido consumido pelo vazio de sua própria natureza. Ela não tinha mais forma ou substância, apenas uma mancha escura e pulsante no ar, uma lembrança do que fora, agora reduzida a uma ideia. A escuridão começou a engolir o chão onde ela havia estado, criando uma espiral de inatividade e letargia.
Mas a luta não estava acabada.
- Isso não vai durar. - Naka murmurou, olhando para a mancha no chão com desdém. - Ela vai se reconstituir. Não com corpo, mas com a mentalidade daqueles que a seguem.
Gula, impaciente como sempre, já se preparava para dar um passo à frente, sua fome insaciável nunca satisfeita.
- Não importa. O que importa é que ela não pode mais nos parar.
Eu permaneci parado, absorvendo o que acontecera. A luta não foi física, foi mental. E embora Preguiça tenha sido derrotada, ainda sentíamos o peso da sua presença no ar. Um convite a parar, a desistir. Ele não desapareceu completamente. Havia algo mais, como uma pressão constante, uma lembrança do que havia sido.
Avareza, desconfiado como sempre, olhou para a sombra que ainda ondulava no ar.
- Isso não me parece certo. Não podemos simplesmente andar e esperar que ela desapareça. Isso não é o fim dela.
Eu balancei a cabeça, respondendo com uma voz sombria.
- Não. Não é. É o que ela é. Ela é o vazio. A falta de ação. Ela não pode ser destruída, só... afastada. A mente humana pode ser a prisão dela, mas ela nunca vai ser completamente extinta. Ela vai viver em todos nós, como uma semente esperando para crescer novamente.
Naka deu de ombros, parecendo indiferente.
- Então é isso? A Preguiça venceu? Apenas desapareceu sem deixar vestígios?
- Não. - Foi Gula quem respondeu, com uma ferocidade que era rara nela. - Ela não venceu. Não enquanto estivermos caminhando. Não enquanto estivermos com fome de algo mais.
Eu olhei para Naka, e ela me observou de volta com um olhar que poderia ser qualquer coisa, mas que, naquele momento, parecia entender o que eu estava tentando dizer. A Preguiça não tinha sido derrotada pela força, mas pela escolha. Não se tratava de se afastar dela para sempre, mas de reconhecê-la e seguir em frente. A verdadeira vitória era a resistência à sua atração. Não a destruição, mas a superação.
Avareza olhou para a sombra que ainda pairava no ar, um sorriso cínico se formando em seus lábios.
- Eu tenho uma ideia. Vamos continuar. Vamos fazer o que a Preguiça não queria que fizéssemos. Vamos caminhar sem parar.
Ira olhou para todos nós, sua expressão rígida e implacável.
- Não podemos permitir que nada, nem mesmo a sombra dela, nos paralise. Vamos seguir em frente, não importa o que venha. Não é o fim, é só mais uma parte da jornada.
E continuamos a caminhar.