Capítulo 16 - Acorrentado

Eu me afoguei em prazeres momentâneos achando que preencheriam meu vazio, mas só me deixaram nu diante da minha própria degradação… E você?

Quantas vezes você se vendeu por um instante de fogo que, depois, só deixou cinzas? Quantos pedaços da sua dignidade você rasgou, trocando amor por lascívia, conexão por carne vazia? Você não é livre — é escravo de um corpo que nunca te bastará, preso em um ciclo de desejo e vergonha que te reduz a um animal faminto, incapaz de enxergar além do próprio impulso.

Cada olhar devasso, cada toque apressado, cada mentira que você contou para justificar sua gança… tudo isso te transformou em um morto-vivo, um fantasma que se arrasta atrás de prazeres que nunca saciam, só ampliam o buraco. Você acha que é dono do seu prazer, mas é ele que te domina, te envergonha, te esvazia de humanidade.

Enquanto você se esconde na escuridão de seus desejos, o mundo lá fora perde a cor, as pessoas viram sombras e você… você vira um estranho para si mesmo. Um monstro que, no silêncio da noite, não consegue nem encarar o próprio reflexo.

A luxúria não te torna poderoso — ela te expõe, frágil e miserável, mostrando que, no fundo, você é só mais um incapaz de amar ou ser amado. E se um dia você acordar e perceber que tudo o que restou foi a poeira do que poderia ter sido… será tarde demais para reconstruir sua alma.

Atravessar o círculo da Luxúria era como andar por um pesadelo vívido. O chão era escorregadio, coberto por uma substância oleosa que fazia cada passo parecer uma luta. Homens e mulheres deformados pelo desejo se moviam em grupos, seus corpos brilhando como se cobertos de óleo. Havia algo grotesco em seus movimentos; cada gesto era carregado de luxúria, mas desprovido de qualquer beleza. Era uma paródia distorcida, um reflexo vazio de desejo sem sentido.

Então eles nos atacaram.

Eram dezenas, talvez centenas. Cada um deles se jogava sobre nós com uma voracidade animalesca, seus gritos ecoando no ar pesado. Avareza foi o primeiro a gritar: 

— Eles vão roubar minha bolsa! Não deixem que se aproximem! 

— Eles não querem sua porcaria de bolsa! — Ira rugiu, balançando sua barra de ferro contra o primeiro que se aproximou, esmagando seu crânio com um som nauseante. — Eles querem a gente! 

O caos tomou conta. A batalha era desesperada. Os moradores de Sodoma e Gomorra eram frenéticos, seus corpos escorregadios dificultavam qualquer tentativa de agarrá-los ou mantê-los afastados. Cada golpe parecia insuficiente, cada tentativa de avançar era bloqueada por uma onda interminável de luxúria deformada. 

— Continue avançando! — gritei, tentando liderar, mesmo com a dor das pancadas que recebia. Eu desferia golpes com a faca improvisada, mas eles continuavam vindo, suas mãos agarrando qualquer coisa que pudessem. 

— Eles são como vermes! — Naka gritou, chutando uma figura que tentou agarrar suas pernas. 

Avareza, com o rosto contorcido em pânico, recuava o máximo que podia enquanto segurava sua sacola. 

— Se perdermos isso, estamos acabados! Vocês não entendem! 

— Cale a boca e lute! — Ira vociferou, golpeando uma mulher deformada que se lançava sobre ele. 

Foi então que eles começaram a mudar. Os corpos escorregadios começaram a se fundir, formando algo maior, algo mais terrível. A multidão grotesca se uniu em uma massa disforme, uma amalgama de luxúria que avançava como uma maré. O cheiro de óleo queimado e carne podre se intensificou, tornando o ar quase impossível de respirar.

— Isso está ficando pior! — Gula gritou, suas mãos ensanguentadas enquanto arrancava pedaços dos que caíam.

Eu sabia que, se parássemos, seríamos engolidos. A luta se tornou ainda mais feroz. Gritos, sangue, o som de carne sendo rasgada. O chão estava escorregadio com o sangue e óleo dos inimigos, e a dor de cada golpe recebido era um lembrete brutal de que estávamos vivos – por enquanto.

E então eles apareceram.

Asmodeus surgiu como uma tempestade, o chicote negro em sua mão estalando no ar, separando a massa de corpos em dois com um único movimento. Ele era uma figura imponente, quase angelical, mas com uma presença que fazia o ar ao nosso redor parecer mais pesado. Ao seu lado, Belphegor caminhava preguiçosamente, bocejando, como se tudo aquilo fosse um fardo irritante.

— Vocês não passarão daqui, — Asmodeus declarou, sua voz carregada de autoridade e desprezo. — Este é o domínio da Luxúria, e vocês não têm lugar nele. 

Belphegor olhou para nós como se estivéssemos interrompendo seu sono. 

— Aí, mano... sério isso? Nem dá vontade de lutar com vocês. O filho da puta do Lúcifer tirou aquele pedaço cozido de carne de mim, tava cozido pra caralho, tava bom pra porra, que merda. Mas, já que eu tô aqui... 

Antes que pudéssemos reagir, Asmodeus atacou. O chicote cortava o ar como uma serpente viva, e cada golpe era uma explosão de dor e destruição. Belphegor, por outro lado, apenas observava, erguendo a mão de vez em quando para lançar correntes que se materializavam do nada, prendendo quem estivesse ao alcance. 

Naka, Ira, Gula e Avareza foram arremessados violentamente contra as paredes escarpadas do Inferno, seus corpos sendo lambidos pelas chamas vorazes por um breve momento, antes de caírem pesadamente no chão, onde o fogo e o óleo ainda não haviam alcançado. Fui atingido no peito pelo chicote de Asmodeus, que me lançou ao chão. Antes que pudesse me mover, as correntes de Belphegor envolveram meu corpo, apertando com força brutal. Eu senti o metal frio afundar em minha carne, cortando até que o sangue começasse a escorrer.

— Tá bom assim, né? — Belphegor bocejou. — Não vai mais a lugar nenhum, cara. 

Eu tentei me mover, mas era inútil. As correntes me prendiam completamente, apertando a cada tentativa de resistência. Asmodeus se aproximou, olhando para mim com desprezo, me deu um chute no pâncreas, minha boca jorrou sangue como um lago.

— Você achou que poderia nos enganar, mortal? Que poderia atravessar nosso domínio ileso? Sua arrogância é sua maior fraqueza. 

Eu estava preso, ensanguentado e derrotado, mas algo dentro de mim se recusava a ceder. Mesmo na dor, mesmo na humilhação, minha mente estava trabalhando. Eles acreditavam que haviam vencido. E essa crença era o que eu precisava.

— Vocês não entendem nada, não é? — minha voz saiu rouca, mas carregada de algo que os fez parar. — Vocês se alimentam dos desejos e fraquezas dos outros, mas não percebem que são tão presos quanto nós. 

Asmodeus franziu o cenho, enquanto Belphegor soltava um suspiro de impaciência. 

— Aí, mano... vai começar com discurso? Sério? A gente não vai cair nesse papo que nem aqueles outros três burros.

Eu continuei, ignorando a dor. 

— Vocês se acham superiores, mas não são nada além de carcereiros. Nem mesmo livres em seus próprios domínios. Acham que essas correntes me prendem? Elas só mostram o quanto vocês têm medo.

O sangue escorria pelo meu corpo, as correntes de Belphegor apertavam mais a cada movimento que eu fazia, rasgando minha carne, afundando no tecido e na alma como uma sentença. Cada palavra que eu dizia era uma faca no silêncio, mas eu sabia que palavras, sozinhas, não seriam suficientes. Não contra eles. Não contra criaturas que existiam para dominar, para consumir, para humilhar. Eles me olhavam com algo que oscilava entre o desprezo e o tédio, mas isso não importava.

Nada importava, exceto sair dali.

Eu não era mais uma pessoa no sentido humano da palavra. A moralidade já havia sido descartada há muito tempo, um luxo que não podia ser carregado aqui. Eu era apenas uma ferramenta, uma engrenagem quebrada no mecanismo desse lugar, disposta a usar qualquer parte do sistema para me libertar. E, neste momento, tudo ao meu redor era arma. Tudo era um recurso.

Asmodeus se aproximou mais, seu chicote enrolado em seu punho, o rosto desprovido de qualquer emoção que não fosse desprezo. 

— Você não tem poder aqui. Seu sangue é fraco, sua mente, frágil. Acha que suas palavras podem nos atingir? Patético. 

Belphegor bocejou, recostando-se numa rocha coberta de óleo. 

— Termina logo com isso, irmão. Esses mortais não sabem quando desistir. 

— Não há desistência para quem não tem escolha, — murmurei, cuspindo sangue. Minha voz estava fraca, mas minha mente, clara. Eles estavam certos de sua vitória, e isso os tornava descuidados.

Olhei ao redor, buscando algo – qualquer coisa. O chão, ainda escorregadio com o óleo grotesco, os corpos amontoados de Sodoma e Gomorra, as lanças negras empunhadas pelos guardiões, a presença opressiva de Asmodeus. Minha mente corria. Tudo isso era uma equação, e eu só precisava encontrar a variável que faltava.

Esse pensamento se fixou em mim como uma fagulha de esperança – ou loucura.

Com as correntes ainda apertando meu corpo, movi meus olhos para o que restava ao meu redor. Um dos corpos caídos estava próximo o suficiente para que eu o alcançasse com dificuldade. Sua carne brilhava com aquela substância oleosa. Se eu conseguisse fazer isso funcionar...

— O que você está olhando? — Asmodeus perguntou, inclinando-se. Seu tom era de escárnio, mas havia algo mais ali. Curiosidade. 

Curiosidade era algo perigoso. Para eles. 

— Estou olhando para o que vocês não percebem, — respondi, minha voz um sussurro carregado de significado. — Estou olhando para a chave para sair daqui. 

Antes que ele pudesse reagir, forcei meu braço, ignorando a dor lancinante das correntes que rasgavam mais fundo. Meus dedos encontraram a carne oleosa do corpo ao meu lado, e com um puxão desesperado, arranquei um pedaço do tecido viscoso. Não havia tempo para hesitação. Eu precisava agir rápido, ou morrer tentando.

— O que pensa que está fazendo? — Belphegor perguntou, sua voz carregada de desinteresse forçado. Mas ele começou a se mover, percebendo que algo estava errado. 

Eu puxei uma das correntes com todas as minhas forças, forçando-a contra a carne do meu próprio braço. O atrito gerou uma fagulha – pequena, mas suficiente. O óleo no pedaço que eu segurava começou a pegar fogo, e o calor se espalhou rapidamente. Era como jogar fogo em um campo de gás.

O óleo escorrendo dos corpos ao redor começou a pegar fogo também, a explosão foi quase instantânea. Um calor sufocante tomou o ar, seguido pelo som de gritos – não só dos corpos caídos, mas também dos próprios demônios. Eles não esperavam isso. Eles não esperavam que eu usasse o próprio círculo contra eles.

Belphegor rugiu, agora realmente irritado, enquanto as chamas começavam a lambê-lo. Ele tentou dissipá-las com um gesto preguiçoso, mas o óleo era implacável, prendendo-se a ele como uma sombra viva. Asmodeus cambaleou para trás, o chicote ainda em mãos, mas sem usá-lo. 

— Seu... miserável! — ele gritou, a voz reverberando em fúria pura. 

As correntes em meu corpo começaram a se soltar enquanto o calor derretia os elos que me prendiam. Eu rolei para longe, cada movimento enviando ondas de dor pelo meu corpo, mas também uma sensação de vitória. Eu havia transformado o próprio terreno deles em uma arma. Meu corpo borbulhava, rasgando meu próprio tecido, mas aquela era a unica forma de sair vivo daquela situação. Eu não conseguiria enganar eles.