Capítulo 18 - Budista

A ideologia que carrego, em minha essência, é a amoralidade. Não me prendo aos grilhões que a moralidade impõe, com suas noções rígidas de certo e errado, porque percebo que essas distinções são construções humanas, frágeis e limitadas. Quando olho para o mundo, vejo apenas uma trama de ações e reações, sem a necessidade de classificá-las como boas ou más. O que é certo para um pode ser errado para outro, e assim, nos perdemos em nossas próprias definições, esquecendo que, no grande esquema da existência, essas categorias parecem quase irrelevantes.

Em minha visão, a amoralidade não é um estado de indiferença ou maldade, mas de liberdade. É a aceitação de que a vida não precisa seguir as normas que criamos para ela. E talvez, ao abraçar essa perspectiva, encontremos uma verdade mais profunda, uma compreensão mais pura da existência. Não há julgamento, apenas ser. E nessa ausência de juízos, talvez se revele o real significado da vida, algo que vai além do que conseguimos compreender com nossas mentes limitadas.

O mundo, em sua essência crua, começava a se manifestar em uma manhã qualquer. As primeiras luzes do dia se infiltravam pela janela, e eu me encontrava mais uma vez imerso naquele ciclo de horas que se seguiam uma após a outra, como peças de um quebra-cabeça que jamais terminava de se completar. O café na mesa, a fumaça subindo suavemente, os livros que pareciam sussurrar em silêncio, como se o próprio ar fosse impregnado de histórias esperando para ser contadas. A vida, de uma forma quase imperceptível, continuava a desenrolar-se diante de mim. Ou talvez eu fosse o único que estivesse realmente percebendo o que acontecia. Afinal, somos todos personagens no vasto palco da existência, e há sempre um papel que se desempenha, mesmo que nem sempre saibamos qual.

Caminhei até a porta da frente, sentindo o ar fresco e úmido que vinha da rua. Cada passo, simples, quase sem significado, parecia ressoar no vazio ao meu redor, como se eu estivesse começando a entender o peso que cada movimento carregava. Não era apenas o peso do corpo que se deslocava, mas o peso da própria existência. Cada movimento meu, como o de todos, parecia se alinhar com o de outros milhares de corpos e almas que, por algum motivo, ainda estavam tentando encontrar algo – algo que talvez nem soubessem o que era. Eu sentia isso em cada respiração, na forma como meus pés tocavam o chão, como se o peso da vida fosse distribuído entre todos nós, indistintamente.

No caminho até a biblioteca, algo aconteceu. A rotina, que até então parecia ser a única coisa certa naquele dia, foi quebrada. Em um instante, o mundo se abriu diante de mim de uma maneira tão crua e sem perdão que quase me fez perder o fôlego. Olhei para cima, e o vi: um homem. Ele estava ali, à beira do prédio. Olhos vazios, corpo tenso, e, em um movimento quase mecânico, ele saltou. O som do impacto foi abafado pela distância, mas o resultado era claro, a carne, os ossos, vísceras, o sangue se espalhava pela calçada de maneira grotesca, um espetáculo de desespero e resignação. Eu parei, como se tivesse sido petrificado. O que se estendia diante de mim não era apenas uma cena trágica, mas um símbolo de tudo o que ele havia sido. O sangue no chão não era apenas um fluido vermelho, não era só a substância que nutria seu corpo. Não, era tudo o que ele era. O sangue era seu ser, sua existência condensada e finalmente liberada, indo embora de uma vez. Era a despedida final, não de uma pessoa, mas da vida dela, jogada ao vento, dissolvida no concreto, dissolvida no esquecimento.

Eu fiquei ali, observando. E, ao olhar para aquela mancha no chão, eu senti, de alguma forma, a leveza e a fragilidade de toda a vida humana. Como se, ao ver o sangue espalhado, eu também estivesse olhando para o fim de algo maior. Cada vida que passa, cada momento de dor, de arrependimento, de decisões mal feitas, tudo isso se dissolve no fim, sem resposta, sem redenção, como o sangue que se escorreu pela calçada, se esvaindo lentamente. Mas, ao mesmo tempo, não havia tristeza em mim. Havia apenas uma quietude, uma aceitação do que era. Porque, no final, o homem não era diferente de uma folha caída, um rio que se perde no mar, algo que se dissolve na vastidão do mundo e do tempo.

Com um suspiro longo, continuei meu caminho. Eu não precisava entender tudo. Eu não precisava sentir compaixão, nem pesar. O que acontecia ao meu redor, fosse vida ou morte, já fazia parte de algo maior que transcendia a minha própria percepção. Cada pessoa, cada ser que se esvai no mundo era como uma folha levada pelo vento, e, assim como as folhas, as vidas se dissipam. O sangue que restou ali foi apenas a última lembrança, um reflexo do que alguém foi, do que alguém deixou de ser.

Cheguei à biblioteca, e o mundo da morte se dissipou, substituído pelas sombras e pelo cheiro dos livros. A atmosfera estava carregada, quase densa, como se o ar tivesse acumulado as ideias e as histórias das gerações que ali haviam passado. Eu me aproximei da mesa, e com um gesto mecânico, abri o livro mais próximo. Não havia pressa. Não havia pressa em nada. Cada página virada era um lembrete de que o tempo, em sua forma mais pura, não se importa com o que fazemos ou deixamos de fazer. Ele apenas segue. E eu, como todos, era apenas um pequeno fragmento do seu interminável fluxo.

Comecei a ler, mas, como sempre acontece, as palavras se misturaram com os meus pensamentos. Eu não precisava buscar mais respostas. Eu não precisava saber a razão de cada coisa, de cada vida. O que eu sabia, sem dúvida, era que a verdade não estava ali, nas páginas dos livros, ou nas conversas de outros. A verdade estava naquilo que se omitia, no que não se dizia, no que se deixava escapar. O homem que havia se suicidado, o sangue que ele havia deixado para trás, eram apenas a confirmação do que eu já sabia: que o sentido da vida é uma ilusão, que a única verdade imutável é o desaparecimento. Tudo, eventualmente, se dissolve. O sangue é apenas um reflexo disso. Ele, e todas as coisas que um dia nos definiram, vão embora. E nada resta, exceto a quietude.

Eu virei mais uma página. O calor da xícara de café já tinha desaparecido. O silêncio da biblioteca parecia preencher o espaço, e eu, como sempre, estava imerso nele. Sem pressa. Sem a necessidade de entender. Porque, no fim, entender seria apenas mais uma forma de ilusão. A verdade não se encontra em explicações. Ela está na aceitação do vazio que somos.