Capítulo 24: Ilusão (2)

Mark permanecia imóvel, os olhos brancos como se sua mente estivesse aprisionada em outro lugar.

Dentro da ilusão, ele via uma silhueta emergindo da névoa densa e negra que o envolvia. A figura se aproximou lentamente, cada passo ecoando no vazio ao seu redor. Mark sentiu o ar ficar pesado, seu corpo rígido pelo medo.

A silhueta ergueu a mão direita e pousou-a em seu rosto. Um arrepio percorreu sua espinha.

— Você é como eles… — a voz murmurou, baixa e cortante — você é um monstro…

Mark tentou negar, mas sua voz saiu fraca, quebrada.

— N-não… não…

A névoa se moveu ao redor dele, assumindo novas formas. Pequenas sombras começaram a se formar, tomando a silhueta de duas pessoas: uma mulher de cabelos negros e um homem de cabelos brancos. O olhar do homem era duro, implacável.

— De novo isso? — a voz dele soou firme e impaciente — você precisa amadurecer. Já tem 12 anos. Não há mais desculpas.

Mark estremeceu. A cena parecia real demais. Então, viu algo ainda pior.

A névoa se dissipou um pouco mais, e quatro crianças surgiram diante dele, todas do seu tamanho. Duas meninas, dois meninos. Um deles riu e, com um brilho travesso nos olhos, disse:

— Tive uma ideia… Vamos irritar outra pessoa desta vez.

Eles desapareceram na névoa, rindo, como se nada importasse.

A paisagem mudou mais uma vez.

Agora, diante de Mark, uma enorme porta se erguia. Pesada. Sombria. Emanava uma pressão sufocante, como se fosse algo que jamais deveria ser aberto.

Seus olhos se arregalaram. Sua respiração ficou presa na garganta.

Ele conhecia aquela porta.

Ele sabia o que estava por trás dela.

"Não… não abra…"

Mas a porta começou a ranger.

A porta se abriu com um rangido lento, revelando um homem velho de aparência desgastada. Seu rosto estava abatido, os olhos vermelhos e fundos, e o cheiro forte de álcool pairava no ar.

Ele os encarou por um momento antes de falar, a voz arrastada e embriagada:

— O que diabos crianças estão fazendo aqui?

Houve um breve silêncio. Então, o menino que liderava o grupo pegou um ovo escondido e, sem hesitar, o lançou contra o rosto do homem.

O impacto fez o líquido escorrer lentamente por sua pele enrugada. Antes que ele pudesse reagir, as crianças explodiram em gargalhadas e saíram correndo.

Mark, ainda uma criança, corria ao lado dos amigos, o riso leve escapando de seus lábios. Era uma travessura qualquer, algo sem peso… ou assim parecia.

Mas o Mark adulto, que observava tudo aquilo de dentro da ilusão, não piscava. Seu olhar estava preso à cena, como se algo dentro dele já soubesse o que viria a seguir.

A névoa começou a se mover, distorcendo o cenário. A porta, antes imponente e pesada, se transformou diante dele, tornando-se uma simples porta de madeira.

Ela se abriu devagar, sem pressa, deixando escapar um silêncio opressor.

E então, ele viu.

O chão frio. O cheiro metálico no ar.

Os corpos de seus pais, caídos sem vida.

Na cena, seu eu infantil tremia, os joelhos dobrados, as lágrimas escorrendo sem parar.

O Mark adulto sentiu um nó apertar sua garganta. Aquele momento… aquela sensação sufocante…

Ele nunca conseguiu esquecer.

Mark sentiu o peito apertar, como se algo estivesse sendo esmagado dentro dele. Sua mão direita foi até o coração, tentando conter aquela dor sufocante.

A névoa se moveu mais uma vez, revelando seu eu infantil, encolhido em um canto escuro, chorando sem parar. 

A cena se desfez rapidamente e, em seu lugar, surgiu uma memória diferente: seu antigo grupo de amigos brincando juntos, rindo, como se nada tivesse acontecido.

Mas ele não estava com eles.

Mark viu a si mesmo vagando sozinho pelas ruas, o estômago vazio, a roupa suja e os olhos sempre atentos, buscando algo — qualquer coisa — para sobreviver.

A névoa se distorceu novamente, agora mostrando outra cena: ele imitando cada gesto, cada palavra daquele menino que antes liderava o grupo. O jeito de falar, o tom de voz, até os pequenos maneirismos.

Era como se estivesse tentando preencher um vazio. Como se, ao se tornar aquele menino, pudesse apagar tudo que perdeu.

A névoa continuou a girar, revelando suas mãos ágeis roubando comida, furtando objetos das pessoas que passavam. Seus passos silenciosos, seu olhar atento.

E então, a imagem mudou mais uma vez.

Diante dele, surgiu um jovem de cerca de 18 anos. Ele o encarava com um olhar afiado, carregado de algo entre desprezo e compaixão.

— Você parece uma sombra dele — disse o jovem, sem rodeios — sempre imitando, sempre tentando ser ele.

Mark congelou.

As palavras ecoaram dentro dele, atingindo algo profundo.

Ele não estava vivendo sua própria vida. Estava apenas repetindo os passos de outra pessoa, tentando reviver algo que já havia sido perdido há muito tempo.

A névoa começou a se dissipar, mas o peso daquelas palavras permaneceu.

Mark permaneceu imóvel, o olhar fixo na névoa que se retorcia diante dele. A silhueta se aproximava, sua voz cortante como uma lâmina.

— Você é um monstro por não salvá-los. Você não tem responsabilidade.

As palavras caíram sobre ele como um peso esmagador. Ele cerrou os punhos. 

A culpa corroía sua mente há anos. Se tivesse sido mais forte, mais rápido, mais esperto… talvez as coisas tivessem sido diferentes. Talvez seus pais ainda estivessem vivos. Talvez ele não tivesse passado fome.

A silhueta riu, fria.

— Você se enganou o tempo todo, Mark. Você se escondeu na sombra de outra pessoa, fingindo ser algo que nunca foi. Mas no fundo, você sabe… você não é ninguém.

As palavras o atingiram como um soco no estômago.

Ele abaixou a cabeça. Era verdade, não era? Ele tinha se moldado para ser como o outro garoto. 

Tinha copiado seus gestos, suas palavras, sua postura. No fundo, nunca havia sido Mark. Sempre fora um reflexo, uma sombra.

A silhueta avançou mais, agora quase tocando seu ombro.

— Você viveu assim porque era conveniente. Porque era mais fácil do que ser você mesmo.

Mark sentiu um nó na garganta. Ele sempre fugira. Fugira da dor, fugira da fome, fugira da verdade.

Mas algo dentro dele se revoltou.

Lentamente, ele ergueu o olhar.

— Não — murmurou, sua voz ganhando força — eu não sou um monstro.

A silhueta inclinou a cabeça, como se estivesse curiosa.

Mark respirou fundo. Pela primeira vez, olhou para dentro de si mesmo sem medo do que encontraria.

— Eu não sou uma sombra — disse, sua voz mais firme — eu passei tempo demais tentando ser outra pessoa, tempo demais tentando apagar quem eu realmente sou.

As palavras saíam naturalmente, como se estivessem presas dentro dele há anos.

— Eu perdi pessoas que amava. Eu me arrependi de muitas coisas. Mas isso não significa que eu tenha que viver me escondendo.

A névoa ao redor dele tremeu. A silhueta hesitou.

— Você não tem coragem de seguir em frente.

Mark sorriu, mas não era um sorriso de arrogância. Era um sorriso de compreensão.

— Eu tenho sim. Porque, pela primeira vez, eu estou escolhendo ser eu mesmo.

Ele ergueu a mão. Um vento forte soprou, dissipando a névoa. A silhueta gritou, se desmanchando no ar.

As mãos de névoa tentaram agarrá-lo, puxá-lo de volta para a escuridão, mas Mark avançou. Ele segurou a silhueta pelo pescoço e a ergueu. 

Dessa vez, não havia hesitação.

A sombra riu, debochada.

— Seus amigos… até para eles você mente. Você nunca vai conseguir.

Mark suspirou. Diferente de antes, não era um suspiro de derrota, mas de alívio. Ele olhou para a sombra nos olhos e disse, com firmeza:

— Talvez você esteja certo. Talvez eu nunca consiga fazer tudo sozinho. Mas… quem disse que eu preciso?

A silhueta tremeu, como se não esperasse essa resposta.

— Eu passei minha vida fugindo — continuou Mark — tentando ser alguém que não sou. Fingindo que estava no controle, quando, na verdade, eu só estava perdido. Mas agora…

Ele soltou a sombra, deixando-a cair. A névoa ao redor se remexeu como se estivesse desesperada.

— Agora eu entendo.

Mark olhou para suas próprias mãos. Durante anos, ele tinha vivido como uma sombra, tentando se moldar às expectativas dos outros. Mas, no fim, ele não era um reflexo. Ele era real.

Ele respirou fundo, fechando os olhos por um instante. Quando os abriu novamente, toda a névoa ao redor começou a se dissipar.

— Eu não sou uma sombra. Eu sou eu.

A silhueta gritou, se desfazendo no ar. A escuridão ao redor se rasgou como um papel sendo queimado, revelando uma luz forte.

Mark sentiu o vento bater contra o rosto. Ele estava de volta.

Ele se levantou, olhando para frente. Ainda havia batalhas para lutar. Ainda havia pessoas esperando por ele.

E, dessa vez, ele não carregaria o peso de ser outra pessoa.

Ele caminharia em sua própria luz.

Mark olhou para a direita, ofegante, e avistou Igris tentando despertar os outros ainda presos na ilusão. O som ao redor era abafado, como se o tempo estivesse hesitando, e a névoa lentamente se dispersava.

No chão, perto de seus pés, estava sua adaga. Ele a pegou com firmeza, o olhar agora endurecido. Caminhou até Igris com passos decididos.

Igris, ao vê-lo se aproximar com a expressão séria e centrada, arregalou os olhos por um instante.

— Que bom que você conseguiu… — disse, tentando abrir os braços para um abraço aliviado.

Mark desviou bruscamente, fazendo Igris quase perder o equilíbrio.

— Nem tenta — murmurou, seco, mas com um leve toque de ironia que só um amigo perceberia — Onde está o Layos?

Igris se recompôs e apontou para a torre viva — a enorme árvore de galhos negros que se erguia ao longe, como se quisesse tocar o céu.

— Lá. Ele está enfrentando tudo sozinho.

Mark rangeu os dentes.

— Vocês são malucos por deixar ele sozinho naquela coisa!

Sem perder tempo, ele disparou. O solo tremeu sob seus pés enquanto corria, deixando um rastro marcado de terra e energia.

No caminho, viu uma das criaturas — a mesma raça do monstro que havia tirado a vida de Takeshi —, mas Mark não hesitou. Saltou por cima com agilidade feroz, os olhos fixos no topo da árvore.

Igris, observando de longe, soltou um suspiro e murmurou com um pequeno sorriso:

— É… pelo menos ele está de volta.

Ele então puxou suas correntes, preparando-se para libertar os outros ainda presos na ilusão.

Enquanto isso, Mark se aproximava da árvore colossal.O vento era pesado, carregado de dor e lembranças.

E então ele viu: Layos estava lá, em pé, com a espada em mão.

Mark apertou o cabo da adaga e falou, firme para si mesmo:

— Você não vai mais enfrentar tudo sozinho, idiota…

E deu mais um passo.

Layos arregalou os olhos, surpreso, mas logo um sorriso satisfeito surgiu em seu rosto.

— Que bom que você está aqui.

Mark apenas assentiu, mantendo o olhar firme. Mas não havia tempo para longas conversas. Ambos voltaram a atenção para a árvore gigante.

No centro dela, algo começou a se revelar: um coração de aparência estranha, angular, como um cristal negro pulsante, batendo de forma irregular.

Mark ergueu sua adaga, girando-a nos dedos antes de apontá-la para o coração. Um leve sorriso surgiu em seu rosto.

— Parece que vamos precisar ir até o nosso limite.

Uma névoa azul-clara envolveu sua lâmina e começou a se espalhar por suas pernas, aumentando sua velocidade. Layos apertou o punho e a espada, sentindo um brilho amarelo tremeluzir em seu braço.

Sem hesitar, os dois avançaram juntos.

A árvore reagiu. Um vento pesado, carregado de névoa negra, explodiu ao redor deles, tentando envolvê-los. O ar estava denso, como se algo quisesse agarrá-los e arrastá-los de volta à ilusão.

Mas eles não pararam.

A névoa os tocou, mas passou direto, sem efeito.

Layos, sem perder tempo, se adiantou e cravou o punho direito no tronco com força total. Um impacto ressoou no ar.

A árvore tremeu violentamente, como se tivesse sentido a dor do golpe. Rasgos começaram a se abrir ao redor do coração, e a escuridão dentro dela parecia recuar, como se tivesse percebido que, dessa vez, não poderia vencê-los tão facilmente.

Mark não hesitou. Com um impulso feroz, ele correu e saltou no ar, girando sua adaga com precisão. A lâmina cortou profundamente o tronco da árvore, abrindo um enorme rasgo. O coração dentro dela pulsou violentamente, como se sentisse o golpe, e a árvore inteira estremeceu.

Por um momento, parecia que apenas ele e Layos estavam ali. Mas então, sob o brilho das estrelas e o sol que ainda se esvaía no horizonte, surgiu um reforço inesperado.

O homem de cabelos azul-esverdeado apareceu à frente, desta vez acompanhado por quarenta guerreiros. Cada um deles carregava expressões diferentes — medo, nervosismo, tristeza — mas, acima de tudo, havia determinação em seus olhos. Eles estavam ali para lutar, mesmo sabendo do risco.

O homem de cabelos azul-esverdeado parecia diferente. Havia algo em seu olhar, uma nova confiança, como se tivesse encontrado algo que antes lhe faltava.

A árvore, sentindo a ameaça crescente, reagiu. Ela liberou mais uma vez sua névoa negra, densa e sufocante, tentando engolir todos em sua escuridão.

Mas agora, não havia mais hesitação.

O homem avançou sem medo, liderando os soldados. Mark e Layos o seguiram de perto, cada um carregando a sua própria chama de determinação.

Mark canalizou sua névoa azul para a adaga, que brilhou intensamente antes de ser cravada com força contra o tronco. Layos, reunindo toda a sua força, golpeou com a espada, fazendo o impacto reverberar pela árvore como um trovão.

O homem, observando a luta, ergueu a mão. Uma flor vermelha brotou em sua palma, vibrando com um poder oculto. Então, com um movimento firme, ele esmagou a flor, liberando um líquido azul e laranja que se espalhou pelo tronco.

O impacto foi devastador.

A árvore inteira começou a tremer descontroladamente, como se estivesse agonizando. Gritos ecoaram dentro dela, e rachaduras começaram a se espalhar por todo o tronco.

Então, no centro, algo se rompeu.

O coração, finalmente exposto, pulsava freneticamente, como se tentasse escapar. Sua superfície reluzia, refletindo as luzes ao redor, e seu brilho oscilava entre a vida e a destruição iminente.

E naquele momento, todos sabiam o que precisava ser feito.

Era hora de acabar com aquilo de uma vez por todas.