Destino

Deixe-me ver bem...É melhor recapitular os meus passos até o momento.

Eu estava revendo os arquivos de alguns dos meus colegas e conferindo as suas planilhas como de costume e redigindo uma pilha de relatórios de minha própria autoria, como acabei exagerando eu levei meu corpo até o limite da exaustão e acabei bem...morrendo.

Mas acabou que eu não recebi algum tipo de retaliação divina, pelo contrário acabei acordando em um outro mundo, mas não era um mundo qualquer, e sim um dominado pela magia, o que por si só era para ser algo surpreendente para qualquer um que estivesse em meu lugar nessa situação, desbravando por um lugar desconhecido, passando por altas aventuras, quem sabe encontrando o verdadeiro amor no final da jornada...Mas parece que eu acabei pulando algumas etapas e agora eu tenho que...MATAR UM DRAGÃO!

Isso é realmente algo surreal se dito para uma pessoa normal porém é exatamente a situação em que eu me encontro.

— Me desculpe Syphus-San...o que você acabou de dizer?

*Não se faça de sonsa humana, você entendeu muito bem o meu pedido, quero que você me mate.

 — Então realmente foi isso...

Ele realmente quer que eu o mate sem mais nem menos...

Por mais que tenhamos interagido é inacreditável o quão longe o rumo da conversa acabo ume levando, devo ter pulado muitas etapas ou não prestado atenção para que o tópico chegasse ao fim da vida de alguém.

Isso não me parece com algum tipo de piada de mau gosto, acredito que um dragão ainda mais um primordial não faria sequer esse tipo de brincadeira para começo de conversa.

 — Se me permite a ousadia de questioná-lo...mesmo já fazendo isso, apesar de estar sofrendo tem certeza que é isso que você realmente quer?

*Não me leve á mal, eu não me permitiria morrer tão facilmente por qualquer outro ser, ainda mais se tratando de uma humana, mas como não tenho muita escolha, será melhor morrer para uma potencial heroína de sua própria raça do que para qualquer outro.

 — Heroína da humanidade...falando desse jeito parece que você realmente me superestima... 

Falando desse jeito realmente soa como os novatos me viam lá na empresa, uma mulher capaz de realizar grandes feitos ou algo do tipo, que nada eu apenas fazia o que tinha que fazer e nada mais.

*Ou talvez você esteja se menosprezando, o que já era esperado ao seu respeito já que não tem noção de seu real potencial, já vivenciei muitos como você, mas aparentemente para humanos aprimorar seus talentos leva pelo menos um décimo de um século.

 — Nisso você pode estar certo. 

E de fato ele está, para humanos descobrirem um talento ou no caso o seu real potencial pode levar anos até que ele o descubra.

Antes de chegar ao meu cargo atual na empresa em que trabalhava assim como os novatos eu tive que começar de baixo, aprendendo tudo com calma até ter talento o suficiente para subir de cargo e chegar aonde eu estava.

*De qualquer forma sinto que estamos desviando do foco, devo admitir apesar de tola você é boa na lábia humana.

— Ehe~~ Mas com todo respeito agora é você quem está sendo tolo, você nem sequer me atacou ou ameaçou.

*Te atacar a faria mudar de ideia?

— Sem ofensas mas agora que sei sobre seu estado sinto que você apenas sucumbiria em vão se me atacasse, e se você realmente quisesse morrer já teria o feito não é mesmo.

*Grr...Você está correta nesse ponto.

Mesmo o ridicularizando de maneira indireta ele parece perceber o seu estado atual muito bem, ele reconhece que está enfraquecido e parcialmente vulnerável, mas eu não sou tola ao ponto de subestimá-lo, sendo um dragão ele sabe como se defender e dado o seu tipo "abissal" por assim dizer ele com certeza tem seus meios de se proteger, como fez ao deixar essa caverna completamente pútrida.

Ele realmente quer ir adiante com isso...só a ideia de matar um dragão é surreal, mas parece que assim como eu, quando coloca algo na cabeça e decide o fazer ele vai até o fim para conseguir...mas no meu caso raramente envolvia uma segunda pessoa.

 — Ainda assim...Mesmo se eu seguisse com essa ideia como alguém como eu poderia matá-lo? Acredito que mesmo desarmada eu não iria conseguir. 

*Não serão tão difícil, como pode ver nem sequer posso me movimentar como antes, estou hibernando por mais de três séculos nesse lugar e como pode ver mal consigo me mexer, mesmo assim sei de um jeito mais adequado.

 — Sabe?

 *Ainda tenho tempo para orientá-la mais uma vez. Em seu mundo já deve ter ouvido algum conceito similar. Resumindo todos os seres existem com base na mana, mesmo não podendo manifestá-la em uma magia simples por falta de entendimento de sua capacidade, todo mundo é oriundo dela, graças á isso todos os seres possuem uma origem.

— Origem?

*Como eu havia lhe dito antes eu sou o terceiro da minha linhagem, mesmo sem uma ligação direta com meus antecessores compartilhamos da mesma origem, possuo parte das suas memórias por consequência, cada indivíduo pode herdar algo da sua origem, mesmo que não tenha noção total de seus ancestrais.

Então é bem similar ao conceito de reencarnação, de fato em meu mundo existem religiões e assuntos que abordam esse tópico, é interessante saber que por aqui eles possuem essa mesma ideia, mas no sentido um pouco mais literal e menos filosófico.

Como foi dito ele acabou herdando alguns aspectos de seus antepassados por conta da sua origem, assimilando isso com alguns conceitos básicos e a informação que foi me dita agora há pouco...

— Então, se você morrer, ainda assim não seria...uma morte?

*Oh? Interessante que sua mente tenha levado á um ponto de vista mais simples, embora seja um conceito um pouco mais complexo que isso. O caso é que a origem é algo relativo para cada indivíduo, mas no que diz respeito á nós primordiais, se nós morrermos mesmo que a nossa origem seja destruída nossas almas ainda serão preservadas, de qualquer jeito em alguns séculos renasceríamos mas apenas com uma única informação, de que somos seres primordiais, nada mais. Acredito que o mais próximo que chegam aos primordiais no que diz respeito á esse conceito de origem são os lordes demônios, diferente de nós eles se recordam de seu passado.

Então de fato se trata de um outro conceito paralelo á reencarnação...não é algo completamente diferente!

— Mas sabe, eu morri em meu mundo, como é que eu ainda tenho memórias de lá renascendo aqui.

*Reencarnados de outro mundo são diferentes de reencarnados do nosso mundo, por não terem um vínculo com esse lugar suas memórias se mantém intactas por conta de suas almas, ainda não deve notar mas em breve a sua origem será refeita á do nosso mundo mas todo o seu conhecimento passado será preservado.

— Então mesmo se eu morrer aqui...eu ainda teria minhas memórias em uma outra vida.

*Eu não sei te responder isso, eu não sei de nenhum outro reencarnado que voltou a vida após alguns séculos retendo suas memórias, isso não era de meu interesse...

 Foi apenas uma pergunta de cogitação, não que eu queira ser uma cobaia, afinal de contas eu acabei de voltar! Não quero morrer outra vez caramba!

Mas aos poucos as informações vão fazendo sentido, pessoas de outro mundo retém suas memórias ao voltarem á vida nesse, mas os que renascem nesse mundo não, mas suas origens são preservadas em suas almas, alguns conseguem reter suas memórias de vidas passadas outros no entanto acabam perdendo sua essência mas se recordando de fragmentos mas isso não seria o mesmo conceito de reencarnação.

Seria o equivalente á...começar um novo save.

Seguindo exemplos de video-game, se eu começasse seguindo por um caminho que me levasse até o fim da minha história e terminasse o jogo seria uma coisa, mas se eu quiser começar tudo de novo de uma maneira diferente, eu ainda assim teria noção do que estaria fazendo, mas como o caminho seria completamente novo não seria a mesma coisa em alguns aspectos, ou tudo mudaria por completo com apenas uma única mudança de cenário ou poderia usar algumas informações passadas para saber o que fazer diante de uma situação difícil nesse novo caminho...Mas em qualquer uma das duas situações ainda assim não seria a mesma coisa.

*Por mais tola que você pareça, acho que você conseguiu ligar os pontos, sabe onde eu quero chegar com essa nossa conversa...

— Então você quer que eu destrua á sua origem?

*Sim, como sou um primordial eu não possuo conexões com meus antecessores então não preciso que minha origem seja preservada, contanto que ela seja destruída a minha alma ainda seria preservada, e provavelmente em cinco séculos eu voltaria á vida.

— Tem certeza...

*É a melhor opção, faça isso e minha forma física deixará de existir, achei que estava implícito que para algo entrar ou sair dessa caverna seria apenas com o fim da minha vida...ou você já deve ter percebido isso há algum tempo atrás.

Ele é bom em ler a minha mente, eu já cogitei confiar nessa informação, como não há saída e tudo por aqui foi corrompido ele com certeza seria a única possível saída desse lugar, esperava que me orientasse mas impor sua vida como uma condição para isso realmente é um preço muito alto, claro que ele o fez pensando em sua própria proteção então é compreensível.

— Mas espera, você não é tipo um guardião desse lugar? Se você repentinamente morresse o que aconteceria com esse lugar?

*Hmph, não se preocupe com isso, provavelmente estranhariam que eu desapareci, mas as coisas continuariam em sua normalidade. Sendo um dragão abissal foi até bom para eles que continuasse selado, pense na ironia, um dragão protetor de uma bela floresta com um poder completamente corrosivo e destruidor para todos á sua volta.

— ...

*Você ainda me parece insegura em relação ao meu pedido.

— Isso é óbvio...mas não é você quem está bem seguro da sua decisão? Poderia ao menos me dizer a real intenção desse pedido inusitado? Ainda mais para alguém como eu?

*Hmm...Talvez apenas...intuição eu suponho.

— Intuição?

*Mesmo diante de uma criatura tão formidável você não demonstrou medo, do contrário me mostrou que você possuí certa coragem, sem falar que qualquer um teria o feito sabendo da minha fama, mas você parece questionar ao máximo e ao que parece está procurando a maneira mais adequada e menos imprudente para prosseguir com essa situação.

— Acertou mais uma vez...

Sempre que tínhamos uma reunião na empresa sempre eram oferecidas duas ou mais propostas difíceis para se seguir, a responsabilidade de escolher alguma delas bem...caía sobre mim todas as vezes, o que posso fazer já que tinha uma boa oratória e capacidade de conduzir uma reunião de negócios.

Mesmo assim para que ninguém saísse deprimido por terem suas ideias rejeitadas eu sempre tentava chegar em um consenso apresentando ideias e conceitos que ambas tinham em comum para chegar á uma conclusão da qual todos estivessem satisfeitos.

Nesse caso matá-lo realmente seria a única opção?  

— Acho que você não mencionou o óbvio por saber que seria inútil...Eu não posso simplesmente curá-lo?

*Acredite eu já levei em conta a sua capacidade com o feitiço de cura, mesmo assim baseado em seu relato você mesma deve saber que se trataria de um esforço completamente inútil, se você não deu conta de purificar uma simples pedra quem dirá lidar com aquele que originou toda essa corrosão, provavelmente levaria mais de mil anos para você o fazer no estado em que está agora, seria como tentar secar um oceano com algum tipo de tecido.

 Claro eu poderia ter cogitado o meu poder de cura desde o começo dessa conversa, mas ele tem noção da minha insignificância, seria equivalente á tentar secar o gelo, para ele seria um esforço em vão, até porque eu mesma não tenho noção da minha real capacidade, se eu tivesse uma habilidade mais forte eu poderia o fazer agora mesmo de boa vontade, mas ainda assim...

*Ouça humana, podemos continuar nossa conversa por dias mas tudo levaria apenas á uma única conclusão, o fim dessa minha vida seria a única possível saída para nós dois...Você parece sensibilizada com essa ideia.

— Bem... é porque eu estou. Você é o primeiro...digamos ser que encontrei desde que voltei á vida, acabou me explicando muita coisa, sem falar que por mais que seu elemento seja do tipo corrosivo você não me parece um dragão ruim, em outra ocasião acho que poderíamos até mesmo ser...amigos talvez.

*Muh! Calada sua tola! Você não sabe nada do meu passado para proferir um elogio desses á mim...

Isso parece tê-lo atingido de alguma forma, ele até mesmo virou seu rosto para o lado, não é possível que isso acabou o envergonhando.

 *Hmph...Uma humana sendo amiga de um dragão, não poderia ouvir tolice maior, isso seria uma completa bobagem.

— Ehe~~ Lamento se te ofendi, não vou falar mais uma besteira como essa.

*Muh...quero dizer, eu não acharia ruim sabe...ter a sua consideração de amizade já faz 400 anos que não converso com ninguém então é um pouco solitário... MAS CLARO! isso seria apenas da sua parte, não que eu vá chamá-la de amiga ou algo do tipo.

Ele é do tipo tímido? Ou apenas confuso? Que espécie de comportamento tsundere é esse? 

— Bem, então vou considerá-lo um amigo... 

*Sério! *cof* Quer dizer, eu aceito de bom grado a sua amizade, sinta-se privilegiada por possuir tal laço com um primordial...

— Bem, então está decidido...mesmo assim torna isso tudo mais difícil ainda...Tem certeza que é o que realmente quer?

*Sim...deixemos essa trivialidade de lado por um instante, embora tenha me tocado a minha morte é o único jeito de me livrar das minhas feridas e da minha própria autodestruição. 

Droga...nem isso foi o suficiente para convencê-lo, ele parece ser um sujeito decente, sabe por mais que seja um dragão...Agora falando isso seria tolice um ser humano ser um amigo de uma criatura tão majestosa, mas ele ao menos não parece ser um cara mal, independente do que tenha feito em seu passado, pelo menos ele não me causou nenhum dano ou me repudiou.

*Vou desfazer a minha barreira por garantia, depois que você destruir a minha origem toda essa caverna vai se purificar, então não terá perigo de você ser atacada por algum monstro corrompido pelo meu miasma ou ser intoxicada por algo ainda mais perigoso, uma saída será revelada para você e essa caverna será exposta novamente.

— Entendo...

*Se aproxime...

Quando ele me pediu eu andei um pouco para frente, dessa vez com certo cuidado para não dar de cara com essa barreira, para a minha surpresa ela não estava mais lá, até mesmo a parte que estava sendo refletida desapareceu então fui até sua direção lentamente.

Conforme fui andando ele acabou se levantando ficando apenas sentado em duas patas diante de mim, ele realmente é muito grande.

*Hmm....HM!

Ele fechou seus olhos por alguns segundos e por alguns instantes ele revelou uma aura completamente brilhante por todo o seu corpo, toda ela se armazenou em uma esfera de tamanho médio, mais ou menos do meu tamanho, ela era brilhante e de cor roxa radiante, assim como a corrosão dessa caverna.

 *Presencie, a origem de um primordial.

— Ela é...brilhante.

*De fato ,nossa origem tende a se destacar quando manifestada, é ela quem molda quem nós somos, nosso corpo é apenas uma manifestação consciente, no final das contas tudo se resume à ela.

— Entendo... Mas e então, o que é que eu faço?

*Não pense que destruir uma origem é algo completamente fácil, demandaria um certo poder da sua parte, porém sou apenas uma exceção, nesse caso pense como se fosse rasgar uma folha de papel com as duas mãos, você não pode segurá-la como uma pedra mas faça isso de maneira simbólica e será o suficiente para destruí-la. Então não fique aí parada e faça-o agora!

Como se estivesse separando dois objetos, entendi...Mesmo assim é um pedido completamente surreal que está prestes a se realizar... 

A vida de alguém está em minhas mãos e no sentido literal, é bem diferente de quando algum dos meus amados calouros pediam a minha ajuda "minha vida está em suas mãos agora senpai" era mais ou menos algo assim que eu podia escutar quando eles pediam a minha ajuda, mas era apenas num sentido abstrato...

Ele realmente quer morrer desse jeito? Ele não parece do tipo de querer desistir da própria vida dessa maneira, ele realmente não tem nenhuma escolha.

— ... 

Continua...