Queime no Inferno

"Sei não," murmurei, baixando minha cabeça para parecer tímida e inocente. Era uma atuação que eu havia aperfeiçoado ao longo dos anos, e eu era muito boa nisso. "Eu chamei por alguém, mas ninguém respondeu."

Mesmo com a cabeça baixa, eu ainda podia ver através dos olhos de Ganância enquanto o homem urso me encarava, julgando cada uma das minhas reações.

Eu podia ver seus olhos se estreitando enquanto eu encolhia os ombros, tentando me fazer ainda menor.

"Marie," ele finalmente chamou após um momento tenso. "Leve a garota. Ela virá conosco depois que eu falar com Christopher."

Demorei muito tempo para perceber que o 'Christopher' de quem ele falava era na verdade Pai.

Ganância brevemente voltou sua atenção para os vinte e poucos homens e mulheres esperando no meu gramado da frente. Os homens estavam todos vestidos com o mesmo uniforme que o urso e a serpente, mas as mulheres espalhadas estavam vestidas como se ainda estivessem nos anos 1800.

Uma mulher magra se adiantou até ficar no pé dos dois degraus de madeira que levavam à varanda. Presumi que essa fosse Marie, mas ela estava fazendo o possível para ser invisível. Seu cabelo castanho-rato estava preso num coque apertado e parecia não conseguir decidir entre ser castanho ou dourado.

Seu vestido estava pendurado em seu corpo e eu podia ver que seu olho direito estava inchado, um belo hematoma roxo já totalmente visível.

Duas coisas me atingiram naquele momento, a primeira foi que o urso e Pai eram farinha do mesmo saco, e a segunda foi a serpente me empurrando escada abaixo em direção a Marie.

Nós duas caímos no chão ao mesmo tempo, e eu mordi meu lábio para não gritar ao sentir meu antebraço quebrando.

Esse era o problema com ossos. Se você os quebrou muitas vezes, fica mais fácil quebrá-los no futuro.

"Você está bem?" perguntou Marie, sua voz não passando de um sussurro. Balancei a cabeça enquanto a sentia se levantando apressadamente. Com toda gentileza, ela me ajudou a levantar e me colocou sob sua proteção como se tentasse me proteger.

Por causa do empurrão, minha conexão com Ganância tinha se perdido, e eu fiquei no escuro, tanto literal quanto figurativamente.

"Você precisa ficar quieta. Explicarei as regras depois, mas você não pode falar quando os homens estiverem por perto," ela continuou sussurrando no meu ouvido, suas palavras quase impossíveis de entender.

Apertando Teddy ainda mais contra meu peito, balancei a cabeça. Parecia que o urso tinha as mesmas regras que Pai tinha. Acho que água procura seu próprio nível mesmo.

"Você tem um osso saindo do seu braço, Pequena Estrela," observou Inveja. Ele soava quase indiferente sobre isso, como se tivesse acabado de perceber que o céu era azul, mas eu podia sentir pura raiva fluindo dele.

"É interessante, não é?" murmurou Orgulho, mas eu sabia que ele estava falando com Inveja e não comigo. Não era a primeira vez que ele tinha visto um osso saindo do meu braço. Nós aprendemos a ignorar isso. Iria se curar depois de um tempo.

"Você pensaria que por nossa própria natureza, não poderíamos sentir ira, e ainda assim, quanto mais tempo você fica perto dela, todo tipo de novas emoções aparecem do nada," continuou Orgulho e eu podia sentir uma mão acariciando o topo da minha cabeça como se tentasse me confortar.

"Meh," grunhiu Inveja, e eu podia ver uma sombra sem rosto na minha cabeça, dando de ombros. "Pelo menos sabemos que não será mais chato."

"E admita, você está com inveja porque estivemos aqui por 12 anos, e você ficou preso em casa," riu Ganância.

Normalmente, as vozes não falavam tanto, e eu não sabia se era porque eu tinha assinado o contrato, então eles tinham mais energia, ou se estavam tentando me impedir de surtar.

De qualquer forma, era bom ser incluída.

"Hattie," rosnou o urso. Levantei minha cabeça em sua direção geral, mas eu não tinha ideia de onde ele realmente estava. Orgulho não tinha decidido compartilhar sua visão comigo, e eu estava às cegas. "Seu Pai está morto," ele continuou, sua voz tão monótona quanto a de Inveja.

Caindo de joelhos, ignorando a dor, inclinei minha cabeça para trás e gritei o mais alto que pude, deixando minhas lágrimas caírem dos meus olhos. "Pai!" gritei como se o som da minha voz pudesse ressuscitá-lo dos mortos. "Não! Pai! Você não pode me deixar!"

Senti os braços de Marie me envolvendo pelo lado enquanto ela tentava acalmar meu 'tormento interior'.

A verdade é que eu realmente deveria ter seguido carreira de atriz. Eu era muito boa nisso.

O som retumbante de passos pesados soou nos degraus enquanto eles protestavam contra o peso de quem estava descendo. O som parou bem na minha frente, mas eu continuei chamando pelo homem que eu tinha matado.

"Cala a boca," rosnou o urso, me dando um tapa que me fez cair ainda mais no abraço de Marie. "Você vai atrair os zumbis até nós. Não conseguimos encontrar seus irmãos. Tem comida guardada na casa?"

Suas palavras saíam curtas e rápidas enquanto eu enterrava minha bochecha dolorida em Teddy. Eu precisava lembrar que ele era canhoto.

"Tem um pouco no porão," murmurei.

"Porão?" perguntou o urso, e eu podia ouvir a confusão em sua voz. As casas aqui inundavam demais para alguém ter um porão, mas eu sempre amei a ideia de ter um.

"O vão embaixo da casa," murmurei suavemente. "Tem uma escada na cozinha que leva até lá embaixo."

O homem apenas grunhiu enquanto ainda mais passos soavam ao meu redor, entrando na minha casa e pegando tudo que queriam.

Mas tudo bem. Eu não queria nada daquele lugar. Eu tinha minhas vozes e tinha Teddy.

Todo o resto podia queimar no inferno que eu não me importava.