Capítulo 97: Guaraná – A Semente dos Deuses
O pó vermelho-tijolo se dissolveu na água, transformando o líquido em um âmbar translúcido. Noah mexeu devagar, observando a espuma cremosa se formar na superfície, enquanto um aroma terroso e ligeiramente adocicado subia até suas narinas. Era um cheiro que lembrava floresta úmida, terra molhada após a chuva e algo mais profundo, quase sagrado. Ele ergueu a cuia e tomou o primeiro gole. O sabor era intenso: amargo no início, com um final frutado que ecoava na língua como um segredo ancestral.
O guaraná não era apenas uma bebida. Era uma viagem no tempo.
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### **A Lenda que Nasceu do Olho de um Deus**
Antes de ser um energético global, o guaraná (*Paullinia cupana*) era um mito vivo para os Sateré-Mawé, povo indígena da Amazônia que o chamava de *"warana"* — "o início de todo saber".
A lenda contava que, há muito tempo, o deus *Jurupari* matou uma criança querida da tribo. Consolados por *Tupã*, os guerreiros enterraram seus olhos na floresta. De um deles nasceu uma planta trepadeira, cujos frutos negros brilhavam como pupilas humanas envoltas em uma casca vermelha. Quando os indígenas provaram as sementes, receberam clareza, força e resistência.
— *"O guaraná é a criança que virou sabedoria"*, sua avó costumava dizer, quando preparava o pó em rituais domésticos.
Essa história ecoava na mente de Noah enquanto ele moía as sementes torradas, um processo que exigia paciência. O guaraná de verdade não vinha em latas industrializadas — era uma cerimônia.
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### **Da Floresta para o Mundo: A Jornada Histórica do Guaraná**
O guaraná foi "descoberto" pelos colonizadores no século XVIII, quando missionários jesuítas observaram que os indígenas conseguiam caçar por dias sem fadiga após consumi-lo. Mas sua domesticação foi um desafio:
#### **O Segredo dos Sateré-Mawé**
- Apenas eles sabiam preparar as sementes da forma correta: colhidas maduras, lavadas, torradas em fogo baixo por dias e depois moídas com água em um cilindro de pedra, formando os *bastões de guaraná*.
- Esse método preservava a *guaraína* (uma cafeína natural quatro vezes mais concentrada que a do café) e os taninos responsáveis pelo amargor característico.
No século XIX, o guaraná cruzou o Atlântico como curiosidade científica. Louis Pasteur ficou fascinado por suas propriedades, e médicos europeus receitavam-no para "esgotamento nervoso". Mas foi no Brasil que ele se tornou um fenômeno cultural:
- **Na Belle Époque carioca**, farmácias vendiam *"xarope de guaraná dos indígenas"* para dores de cabeça e fraqueza sexual.
- **Nos anos 1920**, a família Andrade (de Maués, AM) criou o primeiro refrigerante de guaraná do mundo, usando receita indígena.
- **Nos anos 1980**, o Brasil descobriu o *guaraná em pó* como estimulante natural para motoristas e estudantes.
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### **O Ritual do Guaraná Verdadeiro**
Noah seguiu os passos tradicionais que aprendera em uma viagem a Maués:
1. **A Colheita**: Os frutos são colhidos manualmente, já que a planta é uma trepadeira delicada.
2. **A Fermentação**: As sementes são deixadas em água por até 48h para separar a polpa.
3. **A Torra**: Lentamente, em fogo de lenha, até ficarem quebradiças.
4. **A Moagem**: Tradicionalmente feita com *ripa* (língua de pirarucu seca) para pilar as sementes.
O resultado foi um pó compactado em um bastão, que ele ralou na cuia com água. A espuma branca que se formou — chamada *"cabeça do guaraná"* — era sinal de qualidade.
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### **Guaraná na Cozinha: Muito Além do Refri**
Enquanto a maioria associa guaraná ao refrigerante, suas aplicações culinárias são vastas:
#### **Doces**
- **Paçoca de guaraná**: Mistura de farinha de mandioca, amendoim e pó de guaraná (um energético ancestral).
- **Chocolate indígena**: Sementes moídas com cacau e mel.
#### **Bebidas**
- **Tarubá**: Fermentado de guaraná feito pelos Munduruku, com gosto ácido e efervescente.
- **Capeta**: Coquetel amazonense com guaraná, cachaça, gengibre e mel.
#### **Salgados**
- **Tucupi com guaraná**: O caldo de mandioca brava ganha profundidade com um toque do pó.
- **Tempero para peixes**: Misturado com sal grosso e pimenta murupi.
Noah experimentou uma receita simples: bolinhos de macaxeira com guaraná ralado na massa. Ao morder, sentiu primeiro o crocante, depois o doce-terroso da raiz, e por fim a onda de energia que subia pela nuca.
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### **Ciência vs. Sabedoria Tradicional**
Estudos recentes revelam por que o guaraná era tão reverenciado:
| **Propriedade** | **Efeito** |
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| **Cafeína + catequinas** | Estimula sem causar taquicardia (ao contrário do café) |
| **Teobromina** | Melhora o humor (mesmo composto do chocolate) |
| **Taninos** | Protegem o estômago e regulam o intestino |
| **Antioxidantes (procianidinas)** | Combatem o envelhecimento precoce |
Pesquisadores da UNICAMP descobriram que idosos que consomem guaraná regularmente têm memória 20% mais afiada. Já os Sateré-Mawé sempre souberam: *"Guaraná não é para ficar acordado, é para ficar presente"*.
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### **O Paradoxo do Guaraná Moderno**
Enquanto Noah bebia sua cuia, refletiu sobre a ironia:
- **Na Amazônia**, o guaraná artesanal sustenta comunidades, mas luta contra as versões industrializadas (que usam apenas 2% de extrato real).
- **No mundo**, ele virou ingrediente de energéticos cheios de açúcar, distantes de suas raízes.
Um projeto inovador em Maués tenta mudar isso: os *"Guardiões do Guaraná"*, grupo de jovens indígenas, vendem o pó 100% puro via internet, com rastreamento da colheita.
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### **Um Segredo na Xícara**
Ao final do capítulo, Noah preparou uma segunda cuia, desta vez adicionando um segredo aprendido com um velho Sateré-Mawé: uma pitada de pó de *cacau selvagem*. O resultado foi uma explosão de sabores — o amargor do guaraná dançando com o doce do cacau, como a floresta e o rio se encontrando.
Ele olhou para o bastão que sobrara, envolto em folhas de bananeira. Aquilo não era um ingrediente, era um convite. *"Volte para a floresta"*, parecia dizer. E talvez um dia ele o fizesse.
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**Curiosidades Finais**
- O maior produtor mundial de guaraná é o Brasil (especificamente a Bahia, que cultiva 70% do comercializado).
- Na Colômbia, o guaraná é usado em rituais de pajelança para "clarear a visão".
- Durante a 2ª Guerra, soldados brasileiros levavam tabletes de guaraná para as frentes de batalha.