"Nem toda resposta é um alívio. Algumas são correntes."— Manuscritos de Lume, o Primeiro Guardião
O caminho até Relynth era silencioso, mas não calmo. O tipo de silêncio que soa como um aviso. Os penhascos sussurravam com o vento, como se sopesassem cada passo que o trio dava pelas trilhas estreitas. A vegetação era rala, e as pedras pareciam olhos cravados no chão.
— Eu não gosto disso — murmurou Liora, segurando o punho da adaga com mais força do que o necessário. — O ar aqui é… denso.
Saen, como sempre, estava à frente, seu grimório flutuando ao lado.
— O Velho do Oco vive longe do mundo por um motivo. A verdade tende a afastar tudo — inclusive a razão.
Rayn não dizia nada.
Desde o confronto com o Eco, sentia uma inquietação crescente. O fragmento da máscara vibrava contra seu corpo como se tivesse febre. E em seus sonhos — mesmo acordado —, flashes de lugares que ele nunca havia visitado dançavam à sua frente: cidades cobertas de musgo, campos onde o céu queimava, e uma torre que girava em torno de si mesma no coração do nada.
Ele sabia que não eram apenas visões.
Eram lembranças de alguém. Ou de algo.
O caminho terminou numa ravina. Um buraco escancarado na terra, como a ferida de um mundo que já não sabia se curar.
— É aqui — disse Saen, apontando para uma escada entalhada nas paredes da pedra. — O Oco.
Rayn hesitou. Liora o encarou de lado.
— Você não precisa entrar sozinho.
— Eu sei — disse ele. — Mas talvez devesse.
— E talvez devesse parar de bancar o mártir — ela rebateu, séria. — Você é forte. Mas não é imune.
Rayn sorriu. Um daqueles sorrisos curtos, de gratidão contida.
— Vem comigo?
— Sempre.
Eles desceram juntos.
O Oco era uma caverna viva. As paredes pulsavam com uma luz âmbar, como se tivessem veias. A pedra não era só pedra — era osso, era tempo petrificado. E no centro dela, sentado sobre um trono feito de raízes secas e ossos de criaturas que não deveriam existir, estava ele.
O Velho do Oco.
Tinha olhos completamente brancos. Não cegos — vazios. Seu rosto era enrugado como pergaminho esquecido ao sol. Os cabelos longos, desgrenhados, pareciam se mover levemente, mesmo sem vento.
Ele não os olhou. Mas falou.
— Rayn. Filho da Semente Que Falhou. Filho do Vazio Que Insiste. Filho de Si Mesmo.
Rayn sentiu as palavras como farpas na alma.
— Você me conhece?
O Velho sorriu.
— Eu te vi nascer antes do tempo. E vi nascer a sombra que te acompanha. Vocês não são diferentes.
Liora recuou um passo. Saen estava imóvel, olhos fixos no ancião.
— O que você quer dizer com "filho da semente que falhou"? — perguntou Rayn.
— Você é um fragmento de algo maior, Rayn. Um eco de um ciclo quebrado. Um Guardião... que não deveria ter sobrevivido ao seu despertar.
Rayn fechou os punhos.
— Mas eu estou aqui.
— Está. E esse é o problema.
O Velho se levantou. Era mais alto do que parecia. Mais forte do que sua aparência indicava.
— O anel em seu dedo não é apenas uma herança. É um selo. Um encarceramento. Aqueles que criaram os Guardiões... criaram prisões. Mas você... você nasceu com a chave.
Silêncio.
A revelação caiu como pedra em água parada.
— Está dizendo que eu fui criado... para libertar algo? — Rayn sussurrou.
O Velho assentiu.
— Não algo. Alguém. A primeira memória. A origem do vazio. O Início que foi selado sob o pretexto do fim. Você, Rayn, é a cicatriz da primeira mentira.
Liora avançou, irritada.
— E por que está nos dizendo isso agora? Qual o propósito de carregar um segredo tão… monstruoso?
O Velho a encarou, e pela primeira vez, houve algo que parecia pena em seu olhar.
— Porque agora é tarde demais. A sombra já entrou em movimento. O que estava contido em Rayn já acordou. Vocês precisam decidir: conter... ou aceitar.
Saen respirou fundo.
— O fragmento. É parte da máscara que sela a Verdade, não é?
— Sim. A máscara de Kael. Mas não era dele. Foi feita para conter o que Kael viu — e não conseguiu suportar. Ele quebrou a máscara para que ninguém mais fosse ferido como ele.
Rayn tirou o fragmento da bolsa. Ele ardia. Como se soubesse que estava sendo exposto.
— E se eu... juntar os pedaços?
O Velho se aproximou. Tocou levemente o fragmento, e um calor quase insuportável percorreu a espinha de Rayn.
— Se juntar todos... verá o que Kael viu. O Início. E talvez... se torne o novo Fim.
O chão tremeu.
O Velho se virou bruscamente. As raízes nas paredes começaram a se retorcer. O ar ficou denso.
— Vocês trouxeram a sombra até aqui — disse ele, entre os dentes. — Vocês não têm mais tempo.
Um rugido abafado veio da entrada da caverna. Mas não era um rugido animal. Era um grito de dor — ou de fome.
Liora sacou a adaga. Saen ergueu o grimório. Rayn girou a espada nas mãos.
O Velho ergueu uma mão.
— Vão. Vocês precisam sair agora.
— E você?
— Eu já fui.
O trio correu pela escadaria, e atrás deles, a caverna começou a fechar como um pulmão morrendo.
Rayn foi o último a sair. E quando olhou para trás, viu os olhos brancos do Velho desaparecendo na escuridão.
E ouviu uma última frase:
"O mundo não teme o que você é. Ele teme o que você pode lembrar."
Do lado de fora, o céu já não era céu.
Era uma rachadura viva, como se o próprio tecido da realidade estivesse sendo rasgado. No horizonte, uma torre de sombra se formava lentamente, crescendo como uma espiral que tentava furar o próprio tempo.
Liora caiu de joelhos.
— Isso está saindo do controle.
Rayn olhou para o anel em seu dedo. Para o fragmento da máscara em sua mão.
— Não. Isso já não tem controle. Só escolhas.
Saen se aproximou.
— O próximo pedaço da máscara está em Val'Dereth. Uma cidade que vive presa entre dois tempos. Se ainda houver alguém lá… talvez saibam como unir os fragmentos sem perder a si mesmo.
— E se não souberem?
Rayn olhou para o céu rachado.
— Então aprenderemos. Ou cairemos tentando.
Liora se levantou.
— De novo, essa sua mania de carregar o peso do mundo. Se for cair, avisa, pra cairmos junto.
Ele sorriu. E pela primeira vez, mesmo com tudo desmoronando ao redor, havia propósito no sorriso.
E partiram.
Sem saber se estavam indo para salvar o mundo… ou para lembrar por que ele havia sido esquecido.