O Vazio ainda estava lá.
Mas agora, no meio de sua infinita escuridão, uma presença se erguia, instável, mas persistente. A tênue luz do Elo Duplo brilhou como uma estrela distante, lutando para não ser apagada pela vastidão que a cercava. Ethan se sentia flutuando, como uma memória esquecida, vagando sem direção entre fragmentos de tempo e espaço.
Mas o eco das palavras de Lior reverberava em sua mente.
— "Você precisa se lembrar."
Não havia dor, nem medo, apenas uma estranha sensação de que estava incompleto. De que, por algum motivo, ele estava em algum lugar errado. Algo havia mudado, e não era apenas o mundo ao seu redor. Era ele mesmo.
Ele olhou para suas mãos. As linhas de sua pele estavam quase invisíveis, como se fossem feitas de luz em vez de carne. No entanto, quando olhou mais de perto, as linhas começaram a se formar. Ele sentiu uma leveza que era ao mesmo tempo confortável e inquietante. Como se tivesse se separado de algo.
O Elo Duplo no centro de seu peito estava quente, pulsante. Mas não com a mesma intensidade de antes. Ele sentia que estava fragmentado, como se parte dele tivesse sido arrancada. E uma sensação crescente de que essa parte estava fora de seu alcance, perdida em algum lugar que ele não podia alcançar.
Então ele se lembrou.
A última coisa que fez foi selar Kael. Mas o verdadeiro preço, ele percebeu agora, não havia sido a destruição de um deus. O verdadeiro preço fora o de abrir o Véu. E o que se esconde por trás desse Véu era algo que nem mesmo o Primórdio poderia controlar.
O que ele havia libertado.
A entidade.
Aquela força que, até então, apenas sussurrava no fundo de sua mente, como uma sombra sem forma. Agora, ela estava crescendo. Começando a tomar forma.
Ireth e Elira chegaram ao velho templo do norte em silêncio. O vento cortava o ar gelado, e as montanhas estavam silenciosas como se o próprio mundo estivesse segurando a respiração.
Dentro do templo, as paredes de pedra estavam cobertas de runas antigas. Linhas, círculos e formas geométricas, todas vibrando com uma energia mútua. Aquele era um lugar sagrado, esquecido pelos mortais, mas profundamente conectado ao fluxo das memórias.
Lior, o garoto, estava em pé diante de um altar. Ele havia segurado a esfera metálica, e agora a segurava com firmeza nas mãos, como se estivesse tentando se lembrar de algo.
Ireth se aproximou dele, sentindo a pressão no ar. Algo estava prestes a acontecer.
— Lior. — Ela chamou suavemente. — É hora de você cumprir o papel que foi dado a você. O papel de ser a chave.
O menino virou a cabeça, seus olhos cor de âmbar brilhando intensamente, como se fosse uma chama presa em um corpo humano. Ele não parecia mais uma criança comum. Ele parecia… diferente. Como se sua essência estivesse em sintonia com algo além do tempo.
— Eu sei o que devo fazer. — A voz de Lior estava calma, mas sua presença parecia carregar um peso que não era normal para alguém de sua idade. — Eu sou a chave, não a solução.
Ireth franziu o cenho. Aquelas palavras eram inquietantes. Uma chave sem solução?
Antes que ela pudesse perguntar mais, o altar começou a vibrar, e as runas no chão começaram a brilhar com uma luz suave, mas crescente. Lior olhou para a esfera nas mãos, e as runas começaram a se conectar, como fios invisíveis entrelaçando a essência da realidade.
Então, o tempo pareceu parar.
A realidade começou a desmoronar ao redor deles. As paredes de pedra, o templo e até as montanhas ao redor começaram a derreter. Não como se estivesse sendo destruído fisicamente, mas como se estivesse se desfazendo da memória do universo. As pedras se tornaram pó, o vento desapareceu e as estrelas no céu desapareceram.
Era como se a realidade estivesse esquecendo que existia.
— Lior! O que você fez?! — gritou Ireth, seu pânico crescendo enquanto tentava manter os pés firmes no chão.
Mas o menino apenas sorriu.
— Eu não fiz nada. Eu apenas fui. — Ele levantou a esfera para o céu, e de sua forma surgiu uma onda de energia que começou a se espalhar como um buraco negro. Ele estava chamando o vazio.
Ireth tentou se mover, mas o tempo começou a dobrar. Tudo à sua volta parecia estar se distorcendo. As ruínas do templo se tornaram nuvens de nada. Ela sentiu sua mente sendo puxada para um lugar muito distante, uma região onde a lógica não existia.
Foi aí que ela percebeu.
Ele não estava tentando abrir o Véu. Ele estava tentando impedir que o Véu fosse fechado.
E essa consciência chegou tarde demais.
O vazio consumiu tudo.
No Vazio, Ethan já não sentia a dor da separação. Ele estava vivo de novo. Não fisicamente, mas sua essência — algo ainda pulsando dentro dele. Ele se esticava no espaço vazio, tentando se reconstruir, tentando encontrar algo.
A essência do Elo Duplo começou a se reagrupar, mas ainda fragmentada. Ele não tinha controle total sobre si mesmo, mas podia sentir. Ele sentia as ondas de energia que atravessavam a realidade, as vibrações do mundo e da memória.
Então, ele percebeu. Havia algo novo agora. Algo diferente.
O vazio não estava mais vazio. Havia algo além do que ele imaginava.
E algo estava vindo em sua direção.
Uma presença. Estranha, como uma sombra que se estica, mas ao mesmo tempo, algo familiar.
— Ethan… — a voz ecoou em sua mente. Não era a voz da entidade, mas uma voz que ele conhecia. — Você me deu isso. Agora, vem buscar.
Ethan ficou em silêncio.
A conexão estava ali. A lembrança.
Ireth.
Ela estava lá, mesmo no fim das memórias. A luz de sua lembrança estava perto. Ele apenas precisava se lembrar de como se mover para alcançá-la.
Mas a sombra que se aproximava já estava o observando.
— Você não vai sair. — A voz distorcida da entidade disse, como se estivesse esperando por isso. Você abriu a porta. Agora, ela nunca mais se fechará.
Ethan não respondeu. Ele não tinha tempo para palavras.
O Elo Duplo bradou em seu peito, começando a recompor sua forma, e com isso, uma energia imensa explodiu, quebrando o silêncio do Vazio e criando uma fissura no espaço-tempo.
Ele estava indo… indo para onde lembrava.
Na terra, a distorção já havia chegado. A realidade estava se despedaçando mais rapidamente. O campo de batalha era agora uma terra dilacerada, onde as memórias eram arrancadas a cada segundo.
Ireth olhou para Lior, seu coração batendo forte. O garoto já não estava mais ali. A essência dele havia sido consumida pelo vazio. Ele havia sido usado, manipulado para abrir o Véu. E agora, ele estava perdido na corrente do esquecimento.
Ela não tinha mais tempo. O Elo Duplo estava se aproximando, e com ele, o fim do mundo.
— Precisamos de Ethan agora! — ela gritou, desesperada.
Mas ninguém podia ouvi-la.
O vazio já havia tomado conta. E era impossível voltar atrás.
A dor começou a se espalhar por seu corpo. O templo não era mais um abrigo seguro, mas um espaço em colapso. O chão tremia, as paredes se desfaziam em um turbilhão de luz e sombra. A verdade estava clara agora: eles estavam perdendo. E ela sabia que se Ethan não chegasse, o ciclo do caos se completaria.
O que restava era uma luta desesperada para manter a sanidade.
Ela olhou para as ruínas ao seu redor, tentando se agarrar a qualquer fragmento de realidade que ainda restava. As estrelas desapareciam do céu como se a própria memória do mundo fosse apagada. O véu, que ela temia tanto, estava se rasgando diante dela, mas o buraco no céu parecia imenso, como se ele quisesse engolir tudo.
Então, uma luz fraca brilhou do alto.
Era o Eco.
E com ele, a promessa de que o fim, ao contrário do que todos pensavam, não viria sem uma luta.
O Eco estava crescendo. Uma última chance. Talvez ainda houvesse tempo.