Capítulo 62: Ecos do Futuro

O silêncio do amanhecer parecia uma cortina tênue escondendo o caos que havia ocorrido na noite anterior. A grama coberta de orvalho dançava suavemente com a brisa, como se o mundo tentasse retomar sua normalidade, ignorando que o céu fora rasgado, que o tempo oscilara, que uma entidade ancestral havia sido banida.

Ethan estava deitado sobre um campo devastado, as roupas rasgadas, a pele marcada por feridas profundas. O céu acima dele era de um azul limpo, mas havia algo errado. Muito errado.

Ele se levantou devagar, os músculos protestando com cada movimento. Ao seu redor, o terreno estava irreconhecível. Árvores carbonizadas, rochas flutuando a poucos centímetros do solo, animais petrificados em meio à fuga — como se o próprio tempo tivesse travado em determinados pontos.

— Você sobreviveu. — A voz suave e feminina soou próxima, e Ethan virou-se rapidamente.

A mulher encapuzada estava ali, parada sob a sombra de uma árvore que já não projetava sombra. Seus olhos dourados brilhavam por baixo do capuz, revelando preocupação misturada a algo mais profundo: tristeza.

— O que aconteceu? — Ethan perguntou, com a voz rouca.

Ela deu um passo à frente.

— Quando você usou o Desintegração de Três Eras, a fenda que abriu não foi apenas uma brecha. Você conectou este mundo diretamente ao fluxo do tempo entre as realidades. Parte de você... ainda está perdida lá.

Ethan franziu o cenho.

— Como assim?

Ela ergueu o braço e tocou sua testa com a ponta dos dedos. De repente, sua visão foi engolida por uma sequência de imagens desconexas.

Um exército de seres com armaduras feitas de cristal marchando por uma cidade que flutuava acima do oceano. Crianças com olhos vazios correndo em direção a um abismo. Um trono vazio feito de ossos flutuando no meio de uma tempestade cósmica. E, no centro de tudo, um reflexo dele mesmo... sorrindo. Mas não era ele.

— Isso... sou eu?

— Uma versão sua. Um fragmento. — respondeu a mulher. — Quando desafiou as leis que regem o tempo e a realidade, não só destruiu a barreira, mas também dividiu a sua existência. Há agora outras versões de você vagando por realidades alternativas. E uma delas está... corrompida.

Ethan cambaleou, segurando-se em um pedaço de pedra. Era muita coisa para processar.

— Por que só agora está me contando isso?

— Porque só agora você está pronto para aceitar. Antes, sua mente teria colapsado.

Ele respirou fundo, tentando encontrar algum ponto fixo no turbilhão de informações. Então encarou a mulher, firme.

— Quem é você?

Ela hesitou por um instante. Depois, puxou o capuz para trás.

Era como se o tempo parasse novamente. O rosto diante dele era ao mesmo tempo familiar e estranho. Cabelos longos de cor prateada, olhos de um dourado impossível, e uma cicatriz que cortava sua bochecha esquerda... igual à que Ethan carregava em sua alma.

— Meu nome é Elyss. E eu sou você. De outra linha temporal.

O mundo pareceu girar em torno de Ethan. Ele recuou um passo, desacreditado.

— Isso é impossível...

— Não mais. — Elyss cruzou os braços. — No meu mundo, você cedeu ao Caos. Eu sou o que restou depois que lutei contra mim mesmo e perdi. Agora, estou tentando impedir que isso aconteça de novo.

— Então... tudo isso... o Véu, a criatura, a ruptura...?

— Foi planejado. Por ele. Pelo "você" que abraçou o Caos. Ele quer fundir todas as versões de si mesmo para se tornar absoluto. Um Deus do Início e do Fim. E agora, você é a peça mais forte no tabuleiro.

O sangue de Ethan gelou. A luta que pensou ter vencido era apenas a abertura.

— O que eu faço?

Elyss estendeu uma mão, e um brilho azul surgiu em sua palma.

— Você precisa encontrar os outros Fragmentos. Há cinco no total. Alguns resistem. Outros já estão corrompidos. Mas se não reunir todos, sua alma se quebrará para sempre, e o "Deus-Ethan" tomará o controle completo.

A primeira jornada levaria Ethan até as Montanhas do Silêncio — um lugar proibido, que existia fora das leis do tempo, onde a realidade se dobrava em si mesma como um labirinto interminável. Era ali que o primeiro Fragmento havia sido localizado.

Elyss o acompanhava, mas mantinha distância emocional. Conversavam pouco durante os dias de viagem, e nas noites, ela desaparecia em meio ao nevoeiro, como se tivesse medo de ser vista.

Durante a travessia, Ethan percebeu os efeitos da distorção em todo o continente: cidades onde o tempo andava ao contrário, pessoas vivendo eternamente o mesmo minuto, bestas deformadas que gritavam palavras humanas... O mundo estava se desfazendo. E era culpa dele.

Ao chegarem à entrada das Montanhas do Silêncio, uma tempestade de cinzas os recebeu. O céu tornara-se vermelho escuro, como se sangrasse.

— A realidade aqui... não é estável — disse Elyss, olhando ao redor. — Nem tudo o que você verá será real. Mas tudo poderá te matar.

Ethan não respondeu. Já havia aceitado que cada passo dali em diante seria um desafio contra si mesmo.

Entraram.

A montanha não era feita de pedra comum. Parecia pulsar, como se fosse viva. Escadas que se estendiam para o infinito, portas que se abriam para o nada, vozes sussurrando nomes esquecidos. Ethan viu reflexos dele mesmo em espelhos partidos, cada um com cicatrizes diferentes, expressões distorcidas — algumas suplicando por ajuda, outras rindo maniacamente.

Foi então que o viram.

Sentado em uma pedra flutuante, estava o primeiro Fragmento. Usava a mesma roupa que Ethan usava no início de sua jornada, mas seu olhar estava vazio, e lágrimas escorriam de seus olhos.

— Finalmente... alguém veio... — murmurou ele, sem levantar a cabeça. — Eu pensei que ninguém lembraria de mim...

Ethan se aproximou.

— Você é... eu?

— Eu sou o que você abandonou. Suas dúvidas. Seus medos. Tudo que enterrou para continuar lutando. Mas eu não desapareci. Fiquei aqui. Esperando.

Elyss murmurou ao fundo:

— Se você não o aceitar, ele será absorvido por aquele que nos caça.

Ethan ajoelhou-se diante do Fragmento. Estendeu a mão.

— Você é parte de mim. Eu aceito.

O Fragmento sorriu, e seu corpo se dissolveu em luz, entrando no peito de Ethan. Um calor imenso tomou conta de seu corpo, como se uma cicatriz invisível tivesse sido fechada. Sua mente clareou. Algo que estava fora do lugar, finalmente se alinhava.

Mas, no instante seguinte, uma explosão de energia envolveu as montanhas. O chão tremeu. Uma sombra desceu do céu.

Elyss arregalou os olhos.

— Não pode ser...

Do alto da montanha, uma figura desceu. Usava uma capa negra com bordas douradas. A aura que emanava dele era sufocante. E ao tirar o capuz...

Ethan viu a si mesmo.

Mas os olhos daquela versão estavam vazios de qualquer emoção. Como se a humanidade tivesse sido arrancada dele.

— Vocês encontraram o primeiro. Parabéns. Mas não pensem que conseguirão reunir todos os Fragmentos antes de mim.

Era o Deus-Ethan.

Elyss sacou uma espada de energia, e Ethan ativou suas asas. Mas o outro Ethan apenas sorriu, e estalou os dedos.

O tempo parou.

Literalmente.

Tudo ao redor congelou, menos Ethan e Elyss.

— Lutem se quiserem. Mas cada golpe que me dão fortalece o elo entre nós. E em breve... não haverá mais diferença entre você... e eu.

Ele desapareceu, deixando apenas um sussurro no vento.

— Nos veremos no Fragmento seguinte... irmão.