Ecos do Passado e a Sombra Crescente

O ar na biblioteca da mansão Freimann estava denso com a gravidade das revelações. Margareth, com sua postura imponente e olhos perspicazes, estava diante de Lucius e Iria, que a ouviam com uma mistura de apreensão e fascínio. A mesa central estava coberta por pergaminhos antigos, mapas e diagramas que Iria havia meticulosamente compilado, mas era a voz de Margareth que preenchia o espaço, tecendo uma narrativa que se estendia por séculos.

— A Ordo Umbrae não é uma seita nascida do descontentamento recente, como muitos acreditam — Margareth começou, sua voz baixa, mas carregada de autoridade. — Ela é um eco. Uma sombra que se manifesta ciclicamente, sempre que o véu entre os mundos se afina, sempre que a ignorância ou a arrogância dos arcanistas permite uma brecha. Eu vi os padrões em minha juventude, em ensinamentos que eram considerados proibidos. A manipulação da alma, a corrupção da mana… são as mesmas assinaturas.

Ela gesticulou para um dos pergaminhos, onde símbolos arcanos distorcidos se repetiam. — Os métodos são os mesmos. A filosofia, a mesma. Eles buscam não apenas corromper este mundo, mas usar o Nexo Arcano para algo muito maior. Para rasgar o véu, para trazer entidades de outros planos, para… o Retorno.

Lucius ouvia, sua mente processando as palavras de sua avó. A confirmação de suas próprias suspeitas, nascidas daquele grimório perturbador, era assustadora. Ele sentiu o peso do livro em sua bolsa, a verdade que ele continha, uma verdade que ele ainda não ousava compartilhar. A alma de Elian. A possibilidade de seu filho ser uma dessas almas de outro universo, um “retornado” como o livro descrevia, era um fardo que ele carregava sozinho.

— Se o que você diz é verdade, avó — Lucius interveio, sua voz grave —, então a ameaça é muito mais antiga e profunda do que imaginávamos. O Barão Von Valerius… ele era apenas um peão. Ou uma vítima.

Iria assentiu, seus olhos fixos nos diagramas. — Os padrões de mana corrompida que encontramos no feudo Valerius são idênticos aos que detectamos aqui na mansão. E os rituais descritos nos livros… eles falam de drenar a Força Vital para enfraquecer as barreiras dimensionais. O Nexo Arcano sob a mansão Freimann é um ponto de convergência natural, um alvo perfeito para eles.

Margareth olhou para Lucius, seus olhos encontrando os dele. — E o que você encontrou, meu filho? Sei que não foi apenas um Barão desaparecido.

Lucius hesitou por um instante. A tentação de compartilhar o que o livro revelava sobre Elian era imensa, mas o medo de como essa informação seria recebida, o medo de como isso mudaria a percepção de todos sobre seu filho, o conteve. Ele decidiu manter essa parte para si, por enquanto. Era um segredo que ele precisava entender antes de expor Elian a ele.

— Encontrei evidências de que a Ordo Umbrae está operando em uma escala muito maior do que imaginávamos — Lucius respondeu, desviando o olhar para os pergaminhos. — Os livros que trouxemos detalham rituais de manipulação da alma e de corrupção de mana que são alarmantes. Eles estão usando a energia vital para seus propósitos. E o desaparecimento do Barão Theron Von Valerius… foi apenas uma demonstração de seu poder. Eles não hesitam em eliminar quem quer que se torne um obstáculo.

Margareth assentiu, uma expressão sombria em seu rosto. — Então, a ameaça é iminente. Precisamos intensificar o treinamento de Elian e Belle. Eles serão a nossa primeira linha de defesa.

Lucius concordou, mas sua mente estava em outro lugar. Ele olhou para o livro em sua bolsa, sentindo o peso da verdade que ele continha. Se Elian era, de fato, uma alma de outro universo, um “retornado”, então a Ordo Umbrae poderia estar buscando algo muito mais grandioso e aterrorizante do que a simples corrupção de mana. Eles poderiam estar buscando Elian. Ou talvez, o que ele representava. A pergunta pairava em sua mente, sem resposta, enquanto a conversa continuava ao seu redor. O que mais… essa Ordo busca desenterrar? E o que isso significaria para seu filho? Ele precisava de mais tempo, mais respostas, antes de revelar a verdade que poderia abalar os alicerces de seu mundo e a vida de seu filho. Era um fardo pesado, mas ele o carregaria sozinho, se fosse preciso, para proteger Elian.

★★★

Com a sombra da Ordo Umbrae pairando cada vez mais densa sobre o reino, o treinamento de Elian e Belle se intensificou. Não era mais uma questão de aprimoramento pessoal, mas de sobrevivência. Margareth, com seu conhecimento recém-desenterrado, e Lucius, com a apreensão crescente sobre o destino de seu filho, supervisionavam cada sessão, exigindo o máximo de seus jovens arcanistas.

Nos campos de treinamento da mansão, sob um céu que parecia refletir a tensão crescente, Elian e Albert estavam imersos em uma aula particular sobre artes divergentes de raio. Albert, apesar de ser um espadachim arcano, possuía um domínio impressionante sobre o elemento raio, uma habilidade que ele havia aprimorado ao longo de anos de combate e estudo. Ele observava Elian com uma intensidade que beirava a fascinação, reconhecendo no jovem um potencial bruto que raramente via.

— O raio não é apenas uma manifestação do fogo, Elian — Albert explicava, enquanto um pequeno arco elétrico crepitava entre seus dedos. — É a fúria concentrada do céu, a energia que rasga a terra. Sua Fulmínea da Ira Ígnea é única, uma fusão de fogo, terra e ar. Mas para dominar o raio divergente, você precisa entender a essência da velocidade, da precisão. Não é sobre força bruta, mas sobre canalizar a energia de forma eficiente.

Elian assentia, seus olhos dourados fixos nos movimentos de Albert. Ele tentava replicar a fluidez, a quase imperceptibilidade com que Albert manipulava a energia. Elian ergueu a mão, e um raio azul, a cor característica de sua Fulmínea da Ira Ígnea, começou a crepitar entre seus dedos. Não era um raio comum; ele parecia ter uma densidade maior, uma promessa de impacto que ia além da simples descarga elétrica. Ele visualizava a energia subindo do chão, misturando-se com o fogo em seu núcleo e o ar ao seu redor, formando um vórtice de poder.

— Sinta a terra, Elian — Albert instruiu. — Ela é sua base. O fogo, sua vontade. O ar, sua velocidade. E o raio… o raio é a manifestação perfeita dessa união. Não o force. Deixe-o fluir.

Elian fechou os olhos, concentrando-se. Ele sentiu a vibração do solo sob seus pés, a pulsação do fogo em seu peito, o sussurro do vento em seus ouvidos. Quando abriu os olhos novamente, o raio azul em sua mão havia se intensificado, tornando-se mais denso, mais vibrante. Ele o lançou contra um alvo de pedra, e o impacto foi devastador. A pedra não apenas rachou; ela explodiu em fragmentos, e uma marca azulada, como uma cicatriz de energia, ficou gravada no chão.

— Excelente! — Albert exclamou, um sorriso raro surgindo em seus lábios. — Você está aprendendo rápido. Agora, vamos tentar com movimento. A velocidade é sua aliada.

Enquanto isso, em outra parte do campo, Belle treinava com uma intensidade feroz. Sua espada, um prolongamento de seu próprio corpo, cortava o ar com precisão letal. Ela não era uma arcanista que se escondia atrás de feitiços; ela era uma espadachim arcana, e sua arte arcana era uma extensão de sua lâmina. Margareth observava, seus olhos perspicazes avaliando cada movimento, cada golpe.

— Lembre-se, Belle — Margareth instruiu, sua voz firme. — Seu Corpus Fulminis não é apenas um aprimoramento. É uma fusão. Seus raios amarelos são a manifestação de sua vontade, a eletricidade que corre em suas veias. Use-os para amplificar sua velocidade, para tornar seus golpes mais rápidos, mais devastadores.

Belle assentiu, seus cabelos vermelhos voando com a força de seus movimentos. Ela invocou sua arte, e suas espadas, antes de aço comum, começaram a crepitar com uma energia amarela vibrante. Não era apenas um brilho; eram raios dançando ao longo das lâminas, transformando-as em condutores de pura energia. Ela avançou contra uma série de manequins de treinamento, seus movimentos fluidos e rápidos, quase um borrão. Cada golpe era acompanhado por um estalo elétrico, e os manequins, feitos de madeira reforçada, eram rasgados e queimados, suas superfícies carbonizadas pela intensidade dos raios.

Ela combinava seus ataques com rajadas de fogo, lançando chamas que envolviam os manequins antes de desferir o golpe final com suas espadas eletrificadas. Era uma dança de destruição, uma sinfonia de chamas e raios amarelos que demonstrava seu domínio sobre suas artes. Sua velocidade era impressionante, seus movimentos tão rápidos que era difícil acompanhar a olho nu. Ela era a personificação da fúria do fogo e da velocidade do raio, uma força imparável.

— Muito bem, Belle! — Margareth elogiou, um raro sorriso de aprovação em seu rosto. — Você está se tornando uma força a ser reconhecida. A Ordo Umbrae não terá chance contra você.

Elian e Belle, exaustos, mas com uma determinação renovada, se encontraram no centro do campo. O ar ainda cheirava a ozônio e fumaça, testemunhas de seu treinamento intenso. Eles sabiam que a ameaça era real, que o confronto era inevitável. Mas, com cada raio azul que Elian conjurava e cada golpe eletrificado que Belle desferia, eles se sentiam mais preparados, mais fortes. A sombra da Ordo Umbrae estava crescendo, mas a luz de sua determinação brilhava ainda mais forte.

★★★

No silêncio de seu estudo, após o jantar, Margareth estava sentada diante da lareira, o fogo dançando em seus olhos. A mansão estava em paz, os sons do treinamento haviam cessado, e apenas o crepitar da madeira na lareira quebrava a quietude. Ela segurava uma pequena estatueta de jade, fria ao toque, que representava um antigo símbolo de poder arcano. Sua mente, no entanto, estava longe dali, vagando pelos corredores empoeirados de sua própria história.

As palavras de Lucius sobre a Ordo Umbrae, a manipulação da alma, o Nexo Arcano… tudo isso a havia levado de volta a um tempo que ela pensava ter enterrado. Um tempo em que ela, uma jovem e ambiciosa arcanista, ousou desafiar as convenções e explorar os limites do conhecimento arcano. Ela havia sido uma Arquiduquesa, detentora de um poder e prestígio imensos, governando as terras de Lindemberg com uma mão firme e uma mente brilhante. Mas a sede por conhecimento, a busca por entender as artes mais profundas e perigosas, a levou a um caminho que poucos ousavam trilhar.

Ela se lembrou dos sussurros, dos olhares de desconfiança, das acusações veladas. A Manipulação da Alma, uma arte que prometia controle sobre a própria essência da vida, era vista com terror e repulsa pelo Conselho Arcano. Não importava que suas intenções fossem puras, que ela buscasse apenas entender, não corromper. O medo era uma força poderosa, e o desconhecido, um inimigo ainda maior. Ela havia sido rebaixada, seu título de Arquiduquesa Lindemberg substituído pelo de Arquimaga Lindemberg, um reconhecimento de seu poder, mas também uma marca de sua transgressão. E o apelido, “Bruxa da Alma”, ecoava em sua mente, um lembrete constante do preço que pagou por sua curiosidade.

— Eu dancei na beira do abismo — ela sussurrou para as chamas, as palavras ecoando as que havia dito a si mesma na biblioteca. — E quase caí.

Mas ela não havia caído. Ela havia se afastado, compreendendo os perigos, mas nunca esquecendo o conhecimento que havia adquirido. E agora, esse conhecimento, que a havia condenado no passado, poderia ser a chave para a salvação. A Ordo Umbrae estava usando as mesmas artes, os mesmos princípios que ela havia estudado. Eles estavam buscando o “Retorno”, a transposição de essências, a manipulação de almas de outros universos. E Elian… Elian era a prova viva de que essa teoria não era apenas uma lenda.

Ela olhou para a estatueta de jade, seus olhos fixos no símbolo. Era um fardo pesado, carregar esse conhecimento, essa história. Mas, ao mesmo tempo, era uma responsabilidade. Ela havia sido rebaixada, sim, mas nunca havia perdido sua Força de Vontade, sua determinação. E agora, com a ameaça da Ordo Umbrae se tornando cada vez mais real, ela sabia que era hora de usar tudo o que havia aprendido, tudo o que a havia tornado a “Bruxa da Alma”, para proteger aqueles que amava.

Um pensamento se formou em sua mente, claro e inabalável. Ela precisava contar a Elian. Não apenas sobre a Ordo Umbrae, mas sobre sua própria história, sobre o porquê de ela ser chamada de Bruxa da Alma, sobre a verdade por trás de seu rebaixamento. Ele precisava entender a profundidade da ameaça, e talvez, ao conhecer o passado dela, ele pudesse encontrar força para enfrentar seu próprio futuro incerto. Era um risco, sim, mas um risco que ela estava disposta a correr. O tempo estava se esgotando, e os segredos não podiam mais ser guardados. A verdade, por mais dolorosa que fosse, era a única arma que eles tinham contra a escuridão que se aproximava.

Ela se levantou, a estatueta de jade ainda em sua mão, e caminhou até a janela. A lua cheia banhava a mansão em uma luz prateada, e Margareth sentiu uma nova determinação. O passado estava se chocando com o presente, e ela, a Bruxa da Alma, estava pronta para a batalha.