O Legado da Bruxa da Alma

O estudo de Margareth, um santuário de conhecimento e segredos, estava banhado pela luz suave das velas. O ar, geralmente impregnado com o cheiro de pergaminhos antigos e ervas secas, agora carregava uma tensão palpável. Elian estava sentado à frente de sua bisavó, os olhos dourados fixos nela, enquanto Lucius e Belle permaneciam em silêncio, testemunhas daquele momento que prometia desvendar um passado há muito tempo velado.

Margareth, com sua postura imponente, mas com uma suavidade incomum em seu olhar, começou a falar. Sua voz, normalmente firme e autoritária, assumiu um tom melancólico, como se cada palavra fosse um eco de uma dor antiga.

— Elian, meu querido… há verdades que o tempo tenta apagar, mas que o destino insiste em trazer à tona. Verdades sobre mim, sobre nossa linhagem, e sobre o reino que você agora conhece. Eu fui, um dia, a Arquiduquesa Lindemberg. Governei terras vastas, acumulei poder e influência que rivalizavam com o próprio trono. Mas a história, como você a conhece, é apenas uma parte da verdade.

Ela fez uma pausa, seus olhos se perdendo em memórias distantes. — Meu marido, Amon Lindemberg, era um homem bom, um arcanista talentoso e um líder justo. Nós tínhamos um filho, que mais tarde se tornaria o pai de Lucius. Nossa família crescia, nosso poder se consolidava, e isso… isso gerou medo. E inveja. O antigo Rei, Valerius II, temia a ascensão da Casa Lindemberg. Ele via em nosso crescimento uma ameaça ao seu próprio poder, à sua linhagem. E, como reis fracos costumam fazer, ele buscou aliados para sua conspiração.

Os olhos de Margareth endureceram, uma chama fria acendendo em suas profundezas. — Ele se uniu a um dos duques mais poderosos do reino, um homem que já desejava minha queda, que cobiçava minhas terras e meu prestígio. Juntos, eles tramaram. Não uma guerra aberta, não um desafio direto, mas uma conspiração nas sombras. E o alvo… foi Amon.

Elian sentiu um arrepio. A história de sua bisavó, que ele sempre conhecera como a sábia e poderosa Anciã Margareth, estava se revelando muito mais sombria do que ele jamais imaginara. Belle apertou a mão de Lucius, sentindo a tensão no ar.

— Amon foi assassinado — Margareth continuou, sua voz embargada pela dor que ainda persistia. — Não em batalha, não em um duelo honroso. Mas em uma emboscada covarde, orquestrada por aqueles que deveriam proteger o reino. Eu só descobri a verdade anos depois, durante a guerra contra o Reino de Alafia. A guerra revelou muitas coisas, Elian. As sombras que se escondiam por trás da fachada de lealdade, a podridão que corroía o coração da corte. Foi então que eu soube que a morte de Amon não foi um acidente, mas um ato deliberado do Rei Valerius II e de seus cúmplices.

Lucius, que já conhecia parte da história, mas nunca com tantos detalhes, sentiu a raiva borbulhar em seu peito. A dor de sua avó era palpável, e a injustiça, gritante. Elian, por sua vez, estava em choque. A imagem da avó, sempre tão controlada e poderosa, agora se misturava com a de uma mulher ferida, traída, mas que, de alguma forma, havia encontrado forças para continuar.

— A inveja e o medo são venenos poderosos, Elian — Margareth concluiu esta parte de sua história, seus olhos fixos nos dele. — Eu, uma mulher de origem plebeia, havia ascendido a Arquiduquesa, acumulando mais terras e influência do que o próprio Rei. Isso era imperdoável para eles. E foi por isso que eles tentaram me destruir. Mas eles subestimaram a força de uma mulher que havia perdido tudo, e que havia jurado vingança. Eles subestimaram a Bruxa da Alma.

O silêncio preencheu o estudo, pesado com o peso da história. Elian sentiu que estava prestes a mergulhar em um passado que não era apenas o de sua bisavó, mas que, de alguma forma, estava intrinsecamente ligado ao seu próprio destino. A revelação da conspiração e da morte de Amon Lindemberg era apenas o começo.

★★★

A revelação da conspiração e da morte de Amon Lindemberg acendeu uma chama fria e implacável nos olhos de Margareth. A dor, antes um fardo silencioso, transformou-se em uma determinação férrea. Ela havia esperado, planejado, e agora, a hora da retribuição havia chegado. O Conde Ramon Von Amsterdam, o duque que se unira ao Rei Valerius II na trama contra Amon, seria o primeiro a pagar.

Margareth não agiu sozinha. Ela convocou seu exército particular, uma força formidável que ela havia cultivado ao longo dos anos, leal apenas a ela. Dez arcanistas de nível Tempestade, onze espadachins arcanos também de nível Tempestade, e trezentos soldados comuns, sem artes arcanas, mas treinados para a guerra, marcharam sob o manto da noite em direção à fortaleza dos Von Amsterdam. Não era uma guerra, mas uma execução. Uma demonstração de poder e de justiça, à sua maneira.

Ao chegarem aos portões da fortaleza, a resistência foi mínima. Os guardas, pegos de surpresa, foram rapidamente subjugados pela força avassaladora do exército de Margareth. A Arquiduquesa, no entanto, não estava interessada em pilhagem ou em uma vitória fácil. Seus olhos estavam fixos em um único objetivo: a família Von Amsterdam.

O Conde Ramon Von Amsterdam, um homem corpulento e arrogante, foi encontrado em seu salão principal, cercado por sua esposa, Amabila, e seus dois filhos, Alex, de dezesseis anos, e Marcelle, de quatorze. O pânico estava estampado em seus rostos, uma mistura de incredulidade e terror ao verem Margareth, a mulher que eles pensavam ter destruído, de pé diante deles, seus olhos brilhando com uma intensidade gélida.

— Conde Ramon — a voz de Margareth ressoou pelo salão, fria como o inverno. — Você semeou a traição e a morte. Agora, colherá a tempestade.

Ela não deu tempo para respostas. Com um gesto de sua mão, as artes arcanas de fogo irromperam. Chamas dançaram e se contorceram, não de forma descontrolada, mas com uma precisão cirúrgica, envolvendo os guardas restantes e selando as saídas. O calor era insuportável, o ar crepitava com a energia arcana, e o cheiro de carne queimada começou a se espalhar. Mas Margareth não estava satisfeita apenas com o fogo. Sua arte divergente de gelo, uma manifestação gélida de sua fúria, irrompeu em seguida. Estacas de gelo afiadas como lâminas brotaram do chão, perfurando armaduras e corpos, congelando o sangue nas veias. O salão, antes opulento, transformou-se em um inferno de chamas e uma paisagem de gelo, um testemunho da dualidade de seu poder.

Amabila e os filhos, Alex e Marcelle, tentaram fugir, mas foram interceptados pelos espadachins arcanos de Margareth. Não houve piedade. A vingança de Margareth era completa, abrangendo todos os que haviam se beneficiado da conspiração. Alex, o filho mais velho, tentou resistir, empunhando uma espada, mas foi rapidamente dominado. Marcelle, a menina, chorava, seus olhos arregalados de terror, mas nem mesmo sua inocência foi capaz de deter a fúria da Arquiduquesa.

Quando chegou a vez do Conde Ramon, Margareth se aproximou, seus passos ecoando no silêncio que se seguiu ao massacre. O Conde estava prostrado, seus olhos implorando por misericórdia, mas Margareth não via um homem, via o fantasma de Amon, a traição, a dor de anos de luto. Foi então que ela invocou a arte proibida, a Manipulação da Alma. Uma aura escura e pulsante envolveu sua mão, e ela a estendeu em direção ao Conde. Ele gritou, um som gutural e aterrorizante, enquanto sua essência vital era drenada, sua alma sendo rasgada de seu corpo, não para ser destruída, mas para ser moldada, para ser usada como um aviso, um testemunho eterno de sua transgressão. O corpo do Conde Ramon se contorceu, seus olhos se reviraram, e ele caiu no chão, uma casca vazia, sem vida, sem alma. Era por isso que ela era conhecida como a Bruxa da Alma, um título que ela carregava com a frieza de quem sabe o preço do poder e da vingança.

O exército de Margareth, silencioso e eficiente, garantiu que não houvesse sobreviventes. A fortaleza dos Von Amsterdam foi reduzida a cinzas e gelo, um monumento à sua fúria. A vingança estava completa, mas a dor da perda de Amon permanecia, uma cicatriz profunda em sua alma. Ela havia provado seu poder, sua determinação, mas o custo havia sido imenso. E a verdade sobre o Rei Valerius II ainda precisava ser revelada.

★★★

A notícia da aniquilação da Casa Von Amsterdam se espalhou como um incêndio, não apenas pelo reino, mas também pelos corredores do poder. O Rei Valerius II, em sua arrogância, acreditava que Margareth seria facilmente subjugada, que sua fúria seria contida. Ele estava enganado. A destruição dos Von Amsterdam foi um terremoto político, uma demonstração inegável da força e da determinação de Margareth. O Conselho Arcano, antes hesitante em agir contra o Rei, agora via a necessidade de uma intervenção.

Foi nesse cenário de caos e revelações que o Príncipe Theron, filho do Rei Valerius II e herdeiro do trono, emergiu como uma figura central. Theron, ao contrário de seu pai, era um homem de princípios, um arcanista talentoso e um líder perspicaz. Ele havia observado a tirania e a corrupção de seu pai com crescente desgosto, e a brutalidade da conspiração contra Amon Lindemberg e a subsequente vingança de Margareth foram o catalisador que ele precisava. Ele sabia que o reino não poderia sobreviver sob o reinado de seu pai, e que a verdade, por mais dolorosa que fosse, precisava vir à tona.

Theron, com o apoio de facções leais do Conselho Arcano e de nobres que também estavam cansados da tirania do Rei, agiu rapidamente. Ele expôs toda a trama: a conspiração para assassinar Amon Lindemberg, a aliança com o Conde Ramon Von Amsterdam, e a tentativa de assassinato de Margareth. As provas eram irrefutáveis, os testemunhos, esmagadores. O reino estava em choque. O Rei Valerius II, antes intocável, foi deposto, seu poder desfeito, sua autoridade, aniquilada.

Margareth, que havia retornado à sua fortaleza após a vingança contra os Von Amsterdam, foi convocada para testemunhar a queda do Rei. Ela estava lá, seus olhos frios e impassíveis, enquanto Valerius II era arrastado para a praça pública, diante de uma multidão sedenta por justiça. O Príncipe Theron, em um ato de pragmatismo e reconhecimento da dívida do reino para com Margareth, cedeu a ela o direito de decidir o destino de seu pai. Ele sabia que a justiça de Margareth seria implacável, e que o Rei merecia cada grama de seu sofrimento.

Margareth se aproximou do Rei deposto, que estava acorrentado, seus olhos cheios de terror. Ele implorou, chorou, mas suas palavras não encontraram eco no coração de Margareth. Ela havia esperado por este momento por anos, e a dor de Amon, a dor de sua própria traição, exigia um preço. Ela não usou fogo, nem gelo, nem mesmo a Manipulação da Alma para matá-lo rapidamente. Ela escolheu a tortura, uma tortura lenta e excruciante, que refletia a agonia que ela e Amon haviam suportado.

Ela começou com a Força Vital do Rei. Não para drená-la completamente, mas para distorcê-la, para fazê-lo sentir cada fibra de seu ser se contorcendo, cada nervo em chamas. Ela usou pequenas agulhas de mana, invisíveis a olho nu, para perfurar seus pontos de energia, causando dores lancinantes que o faziam gritar. Ela manipulou seus sentidos, fazendo-o reviver os momentos mais sombrios de sua vida, os rostos de suas vítimas, os sussurros de sua própria consciência culpada. Ela o fez sentir o frio da traição, o calor da fúria, a dor da perda, tudo amplificado mil vezes. Seus gritos ecoavam pela praça, um som que jamais seria esquecido por aqueles que o ouviram. Horas se passaram, e o Rei Valerius II, antes um tirano poderoso, era agora uma casca quebrada, sua mente e corpo destruídos pela agonia. Quando Margareth finalmente o permitiu morrer, foi um alívio, não apenas para ele, mas para todos que testemunharam a cena. A justiça, à sua maneira brutal, havia sido feita.

Mesmo após a revelação da trama e a execução do Rei, o Conselho Arcano, ainda temeroso do poder de Margareth e da arte proibida que ela dominava, decidiu rebaixá-la. Seu título de Arquiduquesa Lindemberg foi revogado, e ela foi designada como Arquimaga Lindemberg. Era um reconhecimento de seu poder e de sua contribuição para a queda do tirano, mas também uma forma de controlá-la, de limitar sua influência. O medo da Bruxa da Alma era grande demais para ser ignorado. Margareth aceitou o rebaixamento com a mesma frieza com que havia executado sua vingança. Ela havia alcançado seu objetivo principal: a justiça para Amon. O título era apenas um detalhe. Seu poder, sua influência, sua determinação… nada disso havia sido diminuído. Apenas transformado. E o legado da Bruxa da Alma estava apenas começando a ser escrito.

★★★

O silêncio no estudo de Margareth era agora mais profundo, preenchido não apenas pela ausência de som, mas pelo peso da história que acabara de ser revelada. Elian, Lucius e Belle processavam as palavras de Margareth, cada um à sua maneira. Para Elian, a revelação foi um turbilhão de emoções. A bisavó que ele conhecia, a Anciã sábia e gentil, era também uma figura de poder implacável, uma mulher que havia desafiado reis e executado vinganças brutais. A história de Amon Lindemberg, a conspiração, a destruição dos Von Amsterdam, a tortura do Rei Valerius II… tudo isso pintava um quadro de um passado muito mais sombrio e complexo do que ele jamais imaginara.

Ele sentiu uma mistura de choque e admiração. Choque pela brutalidade dos eventos, admiração pela força e resiliência de Margareth. A história dela ressoava com algo dentro dele, algo que ele não conseguia nomear, mas que o conectava a essa linhagem de poder e dor. A Bruxa da Alma. O título, antes uma curiosidade, agora carregava um peso, uma aura de respeito e temor. Ele percebeu que a sabedoria e a influência de Margareth não vinham apenas de sua idade ou de seu conhecimento arcano, mas de um passado forjado no fogo da traição e da vingança.

Lucius, por sua vez, observava Elian com atenção. Ele sabia que essa revelação seria um divisor de águas para seu filho. A linhagem Freimann, que sempre se orgulhou de sua honra e retidão, tinha em suas raízes uma história de violência e justiça brutal. Mas Lucius também sabia que a verdade, por mais dura que fosse, era necessária. Elian precisava entender a profundidade da escuridão que eles enfrentavam, e a capacidade de sua própria família de lutar contra ela, mesmo que isso significasse cruzar linhas que outros não ousariam.

Belle, que havia permanecido em silêncio durante a maior parte da narrativa, sentiu um arrepio. A história de Margareth era um lembrete sombrio dos perigos que espreitavam no mundo, e da força que seria necessária para enfrentá-los. Ela olhou para Elian, seus olhos âmbar encontrando os dourados dele. Ela viu a confusão, mas também uma nova determinação, uma faísca de compreensão que acendia em seu olhar. A história de Margareth não o havia quebrado; havia o fortalecido.

— Eu… eu não sabia — Elian finalmente disse, sua voz rouca. — Vovó Margareth… isso é… é muito.

Margareth assentiu, seus olhos fixos nele. — É a verdade, Elian. Uma verdade que foi escondida, mas que moldou quem somos. Parte de seu legado, parte de quem você é, está enraizado nessa história. A linhagem Lindemberg não é apenas de poder arcano, mas de resiliência, de justiça, e de uma vontade inabalável de proteger o que é nosso.

O impacto histórico do legado de Margareth era imenso. Sua queda e rebaixamento foram um marco na história do reino, um aviso para aqueles que ousassem desafiar o trono, mas também um testemunho da coragem de uma mulher que se recusou a ser silenciada. A história oficial pode ter tentado apagar ou esconder parte de seu legado, mas a verdade, como um rio subterrâneo, sempre encontra seu caminho. E agora, essa verdade estava fluindo para Elian, conectando-o a uma herança de poder e propósito que ia muito além de sua própria vida.

Elian sentiu o peso da responsabilidade. A Ordo Umbrae, a manipulação da alma, as almas de outros universos… tudo isso se encaixava em um quebra-cabeça maior, um quebra-cabeça que sua bisavó havia começado a montar décadas atrás. Ele não era apenas um arcanista talentoso; ele era parte de algo maior, um elo em uma corrente de eventos que se estendia por gerações. A Bruxa da Alma havia revelado seu passado, e ao fazê-lo, havia acendido uma nova chama no coração de Elian, uma chama de compreensão e determinação. Ele sabia que o caminho à frente seria perigoso, mas ele não estaria sozinho. Ele tinha sua família, seu poder, e agora, a verdade. E com a verdade, ele estava pronto para enfrentar qualquer sombra que ousasse se erguer em seu caminho. O legado de Margareth não era um fardo; era um escudo, uma espada, e um guia para o futuro.