Quando os Espelhos Trincam.

O sol ainda não havia alcançado o zênite quando o cavaleiro surgiu além dos portões do Palácio Solar. Sua montaria arfava, coberta de suor e poeira, as pernas trêmulas de exaustão. O mensageiro trazia nas costas o estandarte da Casa Von Stein, rasgado e chamuscado, como se o caminho até ali tivesse sido cravado por fogo e aço. Os guardas do portão avançaram, mas ao verem o selo duplo de Lucius Freimann e Albert Von Stein, abriram passagem sem hesitar.

Na Torre do Trono, entre colunas de mármore e vitrais que filtravam a luz do meio-dia em dourado suave, o rei Theron Malkut segurava o pergaminho recém-chegado. Seus olhos, frios e calculistas, deslizavam pelas linhas com paciência e gravidade. As palavras escritas falavam de desaparecimentos. Rituais antigos. Nomes esquecidos voltando a ecoar.

E, acima de tudo, falavam dela.

Margareth Lindemberg.

A Bruxa da Alma.

Theron fechou o pergaminho com lentidão. Seus dedos tamborilaram levemente sobre o braço da poltrona azul de veludo real. O silêncio permaneceu por longos minutos, como se o rei estivesse dialogando com os próprios pensamentos. Então, sua voz cortou o ar, direcionada ao arauto à sua espera:

— Reúna o Conselho Arcano.

E convoque a Alta Nobreza.

Não importa onde estejam.

Eles se sentarão à mesa... queiram ou não.

Três dias depois – Grande Salão de Espelhos

O tempo parecia mover-se de forma distinta dentro do Salão de Espelhos. No alto, a cúpula abobadada refletia a luz mágica em fragmentos giratórios, como cacos de uma realidade em suspensão. As cadeiras ao redor da vasta mesa circular estavam ocupadas — mas nenhum dos presentes parecia disposto a sentar-se em paz.

Ali, estavam reunidos os grandes nomes do reino. Arcanistas da Torre Branca enfrentavam com os olhos os representantes da Nobreza de Sangue-Puro, como predadores forçados a dividir o mesmo covil.

No centro elevado, o rei Theron Malkut, vestindo sua armadura cerimonial azul e prata, observava cada gesto, cada expressão.

Entre os convidados, destacavam-se:

Duque Malrik D’Argonth, cabelos prateados como neve velha, olhos tão cinzentos quanto túmulos esquecidos, e um sorriso que jamais aquecia o rosto.

Marquesa Ilyra Voss, da Torre Branca, portadora do Círculo de Essência, cujas vestes douradas brilhavam como runas vivas. Seus olhos de topázio pareciam julgar tudo em silêncio.

Conde Varek Von Luthien, jovem, impetuoso, o sangue-puro arrogante com sede de glória.

Arqui-Mestre Neriah, historiador arcano, com rugas esculpidas por décadas de conflito intelectual — e memórias antigas envolvendo Margareth.

Theron ergueu-se do trono, e o murmúrio cessou.

— Recebemos um relatório direto do Feudo Freimann. A ameaça da Ordo Umbrae é real. Está se movendo. E exige resposta unificada.

Um riso abafado ecoou, arrastado e cheio de desdém. Malrik recostou-se na cadeira, cruzando os dedos com elegância:

— A Ordo... mais uma vez? — murmurou, o sorriso sombrio cortando o rosto. — Sempre que a magia sai do controle, evocam o nome de alguma seita esquecida.

Um arcanista da Torre respondeu de pronto, a voz carregada de ironia:

— E ainda assim vocês não hesitam em usar tais artes quando lhes convém. Muitos nobres de Sangue-Puro empunham feitiços herdados que mal compreendem. E ainda se sentem no direito de julgar quem os estuda com afinco.

Varek retrucou com veemência:

— Cuidado com o tom, arcanista. Não confundam tradição com ignorância. O sangue nobre carrega poder que vocês jamais entenderão.

— Poder sem entendimento é apenas ignorância glorificada — respondeu Ilyra, sem mover um músculo.

Um marquês mais velho esmurrou a mesa:

— Insolência! Estamos aqui para proteger o reino, não para escutar sermões acadêmicos!

— Talvez se escutassem mais — rebateu um segundo arcanista — não precisariam de rituais proibidos para proteger suas terras decadentes.

Foi então que a mana no ar tremeu.

As velas tremularam violentamente. Uma vibração súbita percorreu o mármore sob os pés dos presentes. No espelho lateral, um brilho sutil se acendeu, como uma rachadura na realidade — como se algo do outro lado estivesse prestes a atravessar.

Um nobre se levantou bruscamente, mas antes que pudesse agir, o rei golpeou o solo com seu bastão de prata.

— Chega! — bradou. — Se desejam se matar, que o façam longe deste salão. Aqui... todos respondem a mim.

A oscilação cessou. O brilho desvaneceu. Um silêncio constrangido caiu sobre a mesa.

Ilyra tomou a palavra, voz firme:

— Isso não é instabilidade. É corrupção deliberada da mana. Um feudo inteiro foi comprometido. Não por acidente.

— Não será culpa da tal Margareth? — provocou Varek. — Ainda deixam a “Bruxa da Alma” ensinar crianças?

O Arqui-Mestre Neriah levantou o olhar, hesitante.

— Por mais que me custe admitir... Margareth alertou sobre esse desequilíbrio há décadas. Seu exílio foi uma perda para o Conselho. Talvez... um erro.

Malrik sorriu, lento como veneno:

— Um erro? Não é curioso que ela tenha desaparecido, e agora tudo isso retorne? Coincidências perfeitas, que brilham como... destino.

Mas uma voz suave e gélida cortou o salão.

— Ela nunca desapareceu.

Era um arcanista de cabelos grisalhos, amarrados num coque. Seus olhos cravavam Malrik como punhais.

— Margareth sempre esteve em sua mansão, nos territórios dos Freimann. Escolheu o exílio, sim, mas jamais abandonou o reino. Trabalhou em silêncio... enquanto outros apenas assistiam à escuridão crescer.

Theron ergueu a mão, pedindo silêncio.

— Margareth não será julgada aqui. Não pelos erros do passado. Mas pelos atos que escolher agora. Ela estará sob minha proteção direta.

As vozes se elevaram, protestos contidos pela autoridade inflexível do rei.

★★★

Quando o Conselho propôs lançar um selo de contenção mágica sobre o Feudo Freimann, os nobres reagiram como feras acuadas.

— Selos? Isso é punir todos por medo! — gritou Varek.

Malrik, sempre imperturbável, ergueu o queixo e sorriu.

— Talvez devêssemos olhar com mais atenção para o foco da anomalia. A criança Freimann... parece singular demais, não acham?

Os olhos se voltaram para ele.

— Anomalia? — questionou o arcanista grisalho. — Como o senhor sabe disso, duque? A menos que saiba mais do que compartilhou...

O silêncio que se seguiu foi como gelo sob vidro.

— Apenas uma impressão — respondeu Malrik, a voz arrastada. — As correntes da mana... dançam em torno daquele menino. Mesmo os cegos podem sentir.

— Impressões não bastam para julgar uma criança — disse Ilyra, erguendo-se. — Ou vamos começar a caçar todos os que não se encaixam na sua visão do que é “ordem”?

Malrik apenas sorriu, indulgente, saboreando o conflito.

— Elian Freimann está sob a tutela de Margareth, de Iria Talvek, e da própria Torre Branca — afirmou Ilyra. — Não será tocado por nenhum de vocês.

Theron então declarou:

— Enviarei um emissário. Neutro. Aprovado por ambas as partes.

E ele não tocará na criança... sem minha ordem.

★★★

A reunião chegava ao fim. Os nobres dispersavam-se em murmúrios, cada um com sua própria versão da verdade.

Mais tarde, em seus aposentos privados, Theron encontrou um envelope sobre a mesa. Lacre de cera negra. Nenhum brasão conhecido.

Dentro, um único papel.

Desenhado em sangue seco, um símbolo:

Uma serpente em espiral.

Três linhas verticais atravessando-a.

Theron ficou imóvel, o frio percorrendo-lhe a espinha como um sussurro de morte.

Eles já estão dentro.

★★★

A noite caiu sobre a mansão Freimann como um manto pesado e sufocante. O céu, límpido, não oferecia consolo — havia algo de errado no ar, uma inquietação que nem mesmo o silêncio conseguia esconder. As estrelas, antes brilhantes, pareciam opacas e distantes, como se observassem o mundo com desconfiança.

Dentro do quarto de Elian, o silêncio era quase absoluto.

Quase.

Ele se revirava sob os lençóis úmidos de suor. O corpo pequeno tremia em espasmos sutis, e sua respiração vinha curta, irregular. A expressão, que durante o sono costumava ser serena, agora se torcia em tensão. Sob as pálpebras cerradas, um brilho esverdeado e pulsante escapava, como se houvesse algo aceso por trás de seus olhos.

O sonho não era dele.

Ele sabia disso desde o começo.

Não havia controle, não havia lógica. Era como ser lançado em um rio em fúria — não comandava a direção, apenas era arrastado, afundando.

Um corredor estreito surgia diante dele. Escuro. Feito de pedra úmida e antiga. O ar ali tinha cheiro de sangue envelhecido e incenso queimado. No fim do corredor, uma porta de madeira escura se abriu sozinha com um rangido longo e agudo.

Além dela, uma figura feminina o aguardava.

Estava de costas, os cabelos negros e longos caindo até a cintura. Entre as mechas, enroscava-se uma cobra de escamas cinzentas, os olhos vermelhos como brasas vivas. A criatura não parecia ameaçadora — não no começo. A mulher falava com alguém, embora Elian não conseguisse ver quem.

— Ele vai se lembrar... — disse ela, com uma voz serena, como se cada palavra tivesse sido pensada durante anos.

— O que foi fragmentado... nunca deixou de existir.

Elian tentou gritar, chamar, perguntar — mas sua boca não se movia. A garganta estava presa, as palavras engolidas por algo maior do que ele.

A cobra virou-se primeiro. Seus olhos vermelhos o encontraram e algo dentro de Elian quebrou. Foi como cair em si e cair para fora ao mesmo tempo. O peito apertou-se, como se fosse puxado para uma dor que ele já havia sentido… mas não lembrava de onde.

E então a mulher virou o rosto. Suave. Quase maternal.

— Rodrick... — disse ela, e seu tom era o de quem chama um irmão perdido. — Me ouve, por favor...

E então o chão cedeu.

A realidade se partiu como vidro sob os pés. A escuridão o engoliu inteira e brutal.

E ele acordou.

Gritando.

— LUANA!

Sentou-se na cama num salto, os olhos arregalados, o coração disparado em agonia. O corpo tremia, o suor encharcava a camisa fina, e seus braços não obedeciam.

Somente quando o torpor passou, percebeu uma presença.

Belle estava ajoelhada ao lado da cama, os cabelos presos em uma trança frouxa, os olhos arregalados de susto.

— Elian?! — a voz dela era um sussurro tenso. — Você... você estava chorando. Eu ouvi você gritando. Quem é Luana?

Elian a olhou como quem vê algo ao mesmo tempo distante e íntimo. A boca se abriu, mas nenhuma resposta saiu. Um nome o atravessava como uma lâmina, mas ele não conseguia tocá-lo de verdade. Era como um sussurro esquecido nos corredores da alma.

Silêncio.

Por alguns segundos, apenas o som de sua respiração ofegante.

Então, com um gesto quase automático, ele passou a mão pelo rosto, desviando o olhar.

— Só um sonho — disse por fim, a voz rouca, ainda fraturada pela emoção. — Não é nada. Eu… tô bem.

Belle não respondeu. Apenas o observou. Em seus olhos, havia uma dúvida que ela não ousava expressar. Mas ele sabia.

Ela não acreditou.

E talvez nem ele.