A Alma Trincada.

A alvorada chegou sem pressa sobre o Feudo Freimann, tingindo o céu com tons cinzentos e dourados. A neblina ainda repousava sobre os campos como um véu preguiçoso, e as folhas das árvores pendiam, pesadas de orvalho. O mundo parecia conter a respiração, como se aguardasse, em silêncio, por algo que ainda não ousava acontecer.

Dentro da mansão, a rotina começava como em qualquer outro dia — passos discretos dos criados pelos corredores, pratos sendo preparados, tapeçarias sendo sacudidas com cuidado. Mas havia algo diferente naquela manhã. Um frio invisível no ar, uma tensão que se infiltrava pelas frestas das janelas e parecia impregnar até mesmo as paredes. A luz que entrava pelas vidraças não aquecia. Os quadros pareciam mais escuros. E os sons ecoavam mais do que deveriam.

Na grande sala de refeições, todos estavam quase reunidos. Lucius e Maria conversavam em voz baixa com Albert e Elisabeth, os rostos sérios sob a luz mortiça da manhã. Vivian, ainda alheia à gravidade do mundo, empilhava pedaços de pão como se construísse castelos encantados. Nico, sempre inquieto, empunhava uma colher como se fosse uma espada heróica. Margareth tomava seu chá com lentidão calculada, enquanto Iria Talvek, ao seu lado, observava o ambiente com olhos atentos, como se avaliasse algo além da superfície — algo que só ela podia sentir.

Elian entrou por último. O silêncio não foi imediato, mas se espalhou lentamente, como um véu descendo sobre uma sala de velório. Seus olhos dourados estavam opacos, a pele pálida, a postura cansada. Belle o acompanhou com o olhar desde que ele cruzou a soleira da porta, sentindo no ar uma ausência que não sabia nomear. Mesmo ali, entre os seus, ele parecia distante, envolto por uma barreira que ninguém via, mas todos sentiam.

— Bom dia, Elian — disse Iria com um sorriso gentil, tentando suavizar o peso que pairava no ar.

Maria se inclinou levemente, os olhos cheios de uma preocupação que não conseguia esconder.

— Dormiu bem, meu filho? Está se sentindo melhor?

Elian assentiu devagar, sem olhar para ninguém. A voz saiu baixa, embargada, como um eco distante.

— Bom dia, mãe...

Era uma resposta automática. Vazia. Como quem repete algo aprendido, não sentido.

Belle o observava em silêncio. Algo apertou em seu peito.

Uma lembrança forte, quase dolorosa, irrompeu dentro dela — um dia recente de treinamento, sob o céu dourado de fim de tarde. Os dois estavam no campo ao lado da mansão de Margareth, cercados por pedras de treino e bonecos encantados.

Ela se via avançando com a espada envolta por pequenos arcos dourados, os músculos fortalecidos pelo Corpus Fulminis, que aumentava sua velocidade e força em surtos breves. Seus golpes cortavam o ar com precisão, obrigando Elian a se mover com agilidade e prever padrões de ataque. Ele não usava apenas a espada — apesar de ter alguma técnica — mas principalmente as artes arcanas.

Ela se lembrava do momento em que Elian invocou o Globus Ignis, a esfera de fogo denso em suas mãos girando rapidamente antes de ser lançada como um projétil ardente. Belle desviará no último instante, sentindo o calor raspar sua pele. Logo em seguida, ele ergueu uma muralha incandescente com o Murum Ignis, criando uma cortina de chamas que dificultava sua visão e obrigava-a a mudar de abordagem.

— Você está ficando melhor em distrações — ela disse, sorrindo, os olhos ardendo de excitação.

Elian respondeu apenas com um gesto das mãos, puxando o solo sob os pés dela com o Tumulus Terrae. Ela saltou com graça treinada, aterrissando em meio a um redemoinho criado por Flatus Venti, que soprou poeira e folhas ao redor dela.

Eles riram depois. Ofegantes, suados, sujos de terra, mas rindo. Porque era isso que eram. Dois jovens crescendo entre batalhas, treinando como se o mundo lá fora ainda pudesse ser salvo.

Mas agora…

Ela olhou para Elian sentado à mesa. O brilho em seus olhos não estava apenas apagado. Estava ausente. Como se aquela chama que antes ela via queimando com tanta intensidade tivesse se recolhido, ou sido apagada à força.

Como se ele não soubesse mais como ser Elian.

— Está mesmo tudo bem? — insistiu Iria, com suavidade.

Elian ergueu os olhos por um instante. Iria viu, ali dentro, algo que doía. Um silêncio que sangrava. Ele apenas assentiu e voltou ao prato, como se a comida fosse um dever a ser cumprido, não um consolo.

★★★

Mais tarde, Belle o encontrou no jardim, sob a antiga oliveira. O vento soprava leve, curvando os galhos com uma delicadeza que parecia respeitar o estado do menino ali sentado. Elian mantinha os joelhos junto ao peito, os braços apertados ao redor das pernas, os olhos fixos em um ponto qualquer entre as flores.

— Posso sentar? — perguntou Belle, com cuidado.

Ele não respondeu, mas moveu-se um pouco, criando espaço. Belle se sentou ao seu lado, espelhando a postura dele. O silêncio entre eles não era desconfortável. Era uma ponte. Um abrigo.

— Você gritou ontem — disse ela, baixinho. — Chamou por alguém. Luana.

Elian fechou os olhos com força. A imagem veio, nítida e cruel, como uma lâmina fria atravessando sua mente. Não era um sonho — era uma memória que insistia em sangrar.

Ele estava parado diante da porta entreaberta do quarto de Luana. A luz pálida do corredor mal iluminava o interior, mas o suficiente para revelar o corpo de Luana, pendendo do teto, uma corda enrolada no pescoço frágil. Os cabelos cor de ébano caíam como um véu silencioso sobre os ombros, e seus olhos — outrora vivos como estrelas cadentes — agora estavam abertos, opacos, fitando um vazio inalcançável.

O chão gelado sob seus pés descalços parecia puxá-lo para baixo, como se o mundo tentasse soterrá-lo junto àquela dor. O som de sua respiração ofegante preenchia o quarto, entrecortado pelo silêncio brutal que pairava no ar. Havia o cheiro de sabão barato misturado ao amargo das lágrimas recentes… e ao leve, mas inconfundível, odor metálico do sangue. Tudo ali — a luz apagada, os lençóis amarrotados, a quietude mórbida — estava gravado nele com uma nitidez cruel.

A mão dele, estendida, incapaz de tocá-la. A garganta contraída, sufocada por um grito que nunca foi solto. A impotência diante do que já estava feito. A culpa, a maldita culpa, roendo por dentro, murmurando que ele deveria ter percebido. Que ele deveria ter protegido. Que ele havia falhado.

A dor não estava no passado.

Ela estava ali.

Presente. Pulsante. Devastadora

Belle esperou.

— Quem é ela? — a voz de Belle era um sussurro, mas ressoou como um trovão na mente de Elian.

— Ninguém — respondeu ele, depressa demais. — Foi só um sonho. Esquece.

Ela o observou em silêncio. Os olhos dele estavam úmidos, perdidos em um ponto qualquer que não estava ali. Mas não era apenas tristeza o que carregavam — era o cansaço de quem lutava contra algo invisível por tempo demais. Como se cada piscada segurasse um mar prestes a romper.

Belle estendeu a mão com lentidão, hesitante, como se temesse quebrá-lo ao menor toque. Seus dedos roçaram os dele com delicadeza. Era um gesto pequeno — mas carregado de tudo que ela não sabia dizer.

A dor dele... ela não compreendia, mas sentia. Era como um lamento antigo, preso em rachaduras da alma. Um eco surdo pedindo socorro.

— Quer que eu vá embora? — perguntou, a voz quase inaudível, como se tivesse medo da resposta.

Elian não disse nada. Apenas apertou a mão dela. Não com força. Com urgência. Como se estivesse se afogando em silêncio e ela fosse a última coisa que o ancorava ali.

Um pedido mudo.

Não me deixa sozinho.

Belle sentiu a garganta apertar.

— Você não precisa dizer nada — murmurou, recostando-se um pouco mais perto. — Eu só quero... estar com você. Mesmo se for no silêncio.

E assim os dois permaneceram em silêncio. Unidos por uma dor que não precisava de palavras, e por um afeto que crescia na quietude de tudo que ainda não sabiam como enfrentar.

★★★

Na ala oeste da mansão Freimann, protegida por portas duplas reforçadas com runas de silêncio, encontrava-se o gabinete de Margareth — um aposento que cheirava a cera derretida, couro envelhecido e mana adormecida. As prateleiras arquearam sob o peso de grimórios esquecidos e tomos ancestrais, e as velas que ardiam no suporte de prata eram alimentadas por uma chama âmbar, mágica e silenciosa.

Margareth folheava páginas com dedos firmes, embora seu rosto deixasse escapar sinais do cansaço acumulado. No pergaminho diante dela, linhas vermelhas conectavam símbolos, datas e nomes esquecidos. Era um padrão que se repetia em diferentes eras, diferentes regiões. Sempre os mesmos elementos: três linhas verticais, um círculo espelhado e uma espiral no centro. O símbolo da Ordo Umbrae. Mas aquilo não era apenas um emblema de seita.

— Fragmentação... distorção... manipulação... — murmurou, enquanto desenhava as conexões com uma pena fina. — A alma retorcida. Mas ainda... presa.

Ela virou uma página de um grimório mais antigo, suas bordas gastas pelo tempo. Havia uma anotação na margem, em tinta desbotada, quase invisível: “A alma trincada não se funde. Apenas finge pertencer.”

Foi aí que sentiu o arrepio.

As palavras do grimório ecoaram como uma lembrança esquecida, despertando memórias que ela havia enterrado sob mil camadas de razão. Seu pensamento voltou — não por vontade, mas por instinto — para aquele dia, dez anos atrás.

O nascimento de Elian.

Ou melhor… o que veio depois.

Ela se lembrava vividamente do momento em que segurou o corpo da criança nos braços. Ele havia nascido sem vida. Nenhuma respiração. Nenhuma aura. Mas... então voltou. E foi quando ela o tocou pela primeira vez que sentiu algo que não conseguiu explicar: uma vibração estranha em sua essência, uma presença que não pertencia inteiramente àquele corpo. Na época, ela afastou a ideia. Atribuiu à exaustão, à emoção. Mas agora…

Agora fazia sentido.

Elian não era apenas talentoso. Não era apenas especial. Ele era um ponto fora da ordem natural. Uma alma ancorada. Uma existência deslocada.

— Então... você é mesmo um reencarnado — murmurou, sozinha.

O peso da dedução caiu sobre seus ombros com uma lentidão cruel. Como arcanista, ela sentia o dever de estudar, entender, registrar. Mas como avó... como poderia sequer admitir isso para si mesma sem que o medo lhe rasgasse o peito?

Seu menino. Seu Elian.

— O que fizeram com você...? — sussurrou, e sua voz falhou pela primeira vez em muito tempo.

Fechou o grimório com cuidado, como se temesse que as palavras escapassem e ferisse ainda mais o mundo. Encostou-se à cadeira, os olhos marejados. Uma centelha de raiva e proteção crescia dentro dela.

Não bastava a Ordo Umbrae corromper mana, raptar jovens ou manipular feras. Agora, estavam mexendo com o que havia de mais sagrado: a alma. E tinham feito isso com Elian. Uma criança.

Não. Seu neto.

Ela não permitiria que o quebrassem ainda mais.

★★★

Na floresta enegrecida, sob galhos retorcidos como ossos expostos, um acólito da Ordo Umbrae murmurava cânticos profanos. Sua voz era um sussurro seco, como folhas mortas sendo esmagadas, e cada palavra pronunciada parecia arrancar calor do ar ao redor. Diante dele, um espelho de obsidiana líquida tremia sobre uma pedra sacrificial coberta de runas sangradas. A superfície negra pulsava, e a imagem de Elian surgiu — frágil, jovem, mas com um brilho oculto que parecia desafiar a escuridão ao redor.

— O véu enfraquece... — sibilou o acólito, com os olhos esverdeados ardendo como brasas podres. — Mas o receptáculo ainda se agarra à sua centelha. Ainda resiste à ruína...

No coração subterrâneo da capital, oculto sob a corte onde se jogam máscaras de nobreza e honra, o duque Malrik Von D’Argonth observava a mesma cena projetada em um espelho talhado com fragmentos de ossos e cristal sombrio. O salão ao seu redor estava abafado, impregnado pelo cheiro doce de incenso corrompido e algo mais metálico — como sangue envelhecido. Atrás dele, vozes ecoavam: bajuladores e nobres tolos discutindo trivialidades e alianças.

Mas Malrik não os escutava.

Seus olhos estavam cravados na imagem do menino. E então, o canto de sua boca se curvou. Um sorriso sombrio e silencioso, de quem contempla a dor como arte.

— Quebrar o vaso seria fácil demais... — disse, com a voz baixa e venenosa, como um veneno escorrendo em veludo. — Mas deixá-lo trincar por dentro, lentamente, pedaço por pedaço... isso sim é elegante. A ruína mais bela é aquela que nasce do próprio coração.

Ele passou os dedos sobre o espelho, e a imagem tremeu, distorcida por sua vontade.

— Continuem. Que ele sonhe, que ele sangre, que ele grite... Mas que ninguém o ouça. Ainda não.

E o espelho se apagou, como se o próprio mundo se curvasse ao silêncio da destruição que se aproximava.

★★★

A noite caiu pesada como uma lápide sobre o quarto de Elian. A única luz vinha da chama vacilante de uma vela, lançando sombras tortas pelas paredes como mãos espectrais tentando alcançá-lo. O ar estava parado. Denso. Como se o mundo tivesse prendido a respiração.

Ele não conseguia dormir.

Não ousava fechar os olhos.

O espelho no canto do quarto — presente antigo de Belle — começou a vibrar. Primeiro com um leve tremor, quase imperceptível. Depois, com uma intensidade pulsante, como se algo do outro lado empurrasse, arranhasse, suplicasse por passagem.

E então ele viu.

Luana.

Vivian.

Mas não como lembrança. Não como as pessoas que ele amava. Estavam penduradas. Enforcadas. As cordas presas ao teto balançavam lentamente, num ritmo cruel e silencioso. Os olhos delas estavam abertos — mortos, vazios, partidos. O vestido de Vivian rasgado, manchado de sangue seco. Uma boneca caída no chão ao lado, com o rosto virado para a parede.

Elian não gritou.

O som da sua dor estava para além da voz. Seu corpo apenas cedeu. Caiu de joelhos com um baque seco, os dedos cravando o chão frio. As lágrimas desceram em silêncio, quentes e amargas, mas não traziam alívio. Apenas peso. Peso de um oceano interno se partindo.

Ele sentiu.

O cheiro da corda. O perfume antigo de Luana. A brisa fria que fazia os corpos balançarem.

E então elas desceram.

As cordas sumiram. As figuras caminharam até ele com passos lentos, mecânicos, como marionetes guiadas por algo invisível. Elian estremeceu, encolheu-se, mas não conseguiu fugir.

Luana se agachou.

Vivian também.

Elas o abraçaram.

Mas não era calor.

Era gelado. O tipo de toque que drena. Que aperta, não conforta. E então, ele ouviu.

— Rodrick... — sussurrou Luana, com a voz que misturava afeto e condenação.

Elian sufocou um soluço.

O rosto delas estava perto demais. E então veio o sorriso. Não era ternura. Não era perdão.

Era zombaria.

Cruel. Gelado. Escarnecedor.

Sorrisos que pertenciam a cadáveres manipulados por algo que odiava. Algo que queria vê-lo quebrar.

E ele quebrou.

— Me perdoem... — sussurrou, com os lábios trêmulos. — Luana... me perdoe… Vivian... eu… eu devia…

Sua voz se dissolveu.

As lágrimas não paravam. Seu peito doía como se algo estivesse tentando sair, ou entrar. Ele se abraçou, tremendo. E então ouviu um estalo baixo e seco.

O espelho trincou.

Uma rachadura tênue serpenteava pela superfície, como se algo do outro lado tivesse finalmente deixado uma marca.

E Elian tombou.

Não por cansaço do corpo, mas por exaustão da alma. Ele se deitou ali mesmo, no chão de pedra, os olhos inchados, os punhos fechados, o rosto molhado. As sombras da vela dançavam sobre seu corpo como espectros satisfeitos.

Ele dormiu.

Não em paz.

Mas em silêncio.

Um silêncio pesado. Podre. Um silêncio que parecia sussurrar que aquilo era apenas o começo. E que havia coisas muito piores ainda por vir.