Ecos de um Império perdido

“O sol nunca se põe no Impérium Solaris”

Houve um tempo em que a humanidade julgou ter dominado tudo no universo.

O Impérium Solaris estendia-se como uma tapeçaria dourada entre as estrelas, cada fio tecido pela arrogância e pelo gênio humano. Das cidades orbitais ás fortalezas nas luas gasosas, dos planetas terra formados ás armas capazes de distorcer e rasgar o próprio universo, os homens haviam se erguido como deuses que um dia temeram, e com o projeto ExoCorp, a velhice não os atingiam, seus corpos eram mais fortes e sua longevidade não mais conhecia o fim.

Kairós cresceu nesse mundo – não apenas como testemunha, mas como herdeiro do povo que moldava galáxias. Ele só conheceu a humildade das civilizações primitivas por textos e relatos. Para ele, o Impérium era o pico da evolução humana, onde tudo era possível, onde não havia limites.

Ele lembrava-se das marchas triunfais sob arcos de prata, das exibições de poder onde cruzadores de batalha cobriam os céus, das bibliotecas onde as histórias se escreviam a cada batida de coração. Era uma era dourada..., mas também uma lembrança de algo que já não mais existe, apenas ruinas.

O Impérium era muito mais do que uma nação – era um império cósmico, uma máquina de guerra invencível, com tecnologias que desaviavam o impossível. Ele havia esmagado impérios muito mais velhos que ele e roubado suas tecnologias, alienígenas como os Orkos Traxianos, Drakos, e até mesmo os Volerianos, uma raça imortal e antiga, também muito poderosa. A guerra contra os alienígenas, travada por centenas de gerações, parecia um jogo lento e cansativo de xadrez, onde cada movimento determinava o destino de um sistema solar. O Impérium no fim da guerra já vencida, pronto pra finalizar as últimas forças além humanas. Seus exércitos estavam desgastados, mas prontos para esmagar os últimos vestígios de resistência.

A glória e sorte do Império porém acabou, tudo desmoronou quando a maior estrela Helionda explodiu, apagando os sistemas agrícolas mais ricos da humanidade, a maré virou definitivamente. Os planetas de produção de alimentos essenciais para a sobrevivência da vasta rede imperial, desapareceram como se nunca tivessem existido, uma catástrofe que nem mesmo as tecnologias da dobra espacial podiam evitar. A fome se espalhou pelas linhas de frente, afetando todos os setores Impérium.

A guerra civil começou. Com os recursos escassos e as facções internas divididas, a luta pelo controle dos poucos recursos restantes se intensificou. O Impérium, que fora um monólito de poder, estava fragmentado. Aqueles que haviam lutado ao lado de Kairós agora se viam voltando armas um contra os outros. E em meio à desolação, Kairós viu o que restava do Impérium Solais: Foi uma nação que caiu não em batalha, mas de exaustão.

Entre as ruinas, Anax Prime permanecia: um vasto complexo enterrado na crosta terrestre, blindado contra bombas e tempo. Era o último refúgio de um Império que havia dado tudo para conquistar as estrelas, mas que agora se via derrotado pelo próprio peso de sua ambição. O Imperador Orion Solaris partiu embarcado em uma nave-arca junto dos seus soldados mais próximos e aliados, levando consigo os últimos resquícios de recursos do antes vivo coração do Impérium.

Aqui, nesse tumulo de conhecimento, Kairós e seus quatro companheiros travam sua última batalha – Não contra um inimigo visível, mas contra a própria extinção.

A confecção do seu último projeto, O capsula eclipse, um chip capaz de suportar todo o conhecimento do antigo Império, uma semente para que sua história não caia na vastidão do vazio e seja esquecida entre as ruinas.

--------------- Kairós ----------

A vida em Anax Prime era uma respiração mecânica constante — o som dos sistemas antigos tentando sobreviver mais um dia. Era como viver dentro de um corpo moribundo que se recusava a morrer.

Éramos cinco, e a cada ciclo, um de nós se apagava como as luzes da torre principal.

O primeiro era Lannis Kaedros, o Observador do Infinito.

Lannis sempre parecia estar em outro lugar. Passava horas diante das telas azuis do terminal central, absorvendo dados de mundos que talvez nem existissem mais. A cada arquivo antigo que recuperava, parecia se perder um pouco mais no passado.

— “O Impérium… cometeu o mesmo erro que os deuses antigos. Cresceu demais. E se esqueceu do chão sob os próprios pés.”

Tinha aquela voz arrastada, meio entediada, mas havia fogo escondido nos olhos.

Lannis nunca desistiu. Quando a comida começou a acabar, ele foi o primeiro a se exilar. Disse que precisava de silêncio para pensar, mas sabíamos a verdade. Morreu sozinho, em um dos módulos de observação, encarando as estrelas até o último segundo.

Maia Solis era o oposto.

Enquanto Lannis observava o universo morrer, Maia gritava para ele continuar girando. Nós a chamávamos de Guardião da Chama — não por poesia, mas porque ela literalmente fazia a base funcionar. Quando os cabos derretiam, era ela quem arrancava com os dentes os fios da máquina e fazia aquilo girar de novo.

— “Essa droga de gerador ainda me deve uma noite inteira de sono. Não vou morrer antes de cobrar.”

Ela cuspia essas frases enquanto mergulhava os braços em painéis ferventes. Às vezes cantava canções de marcha do antigo império — baixo, rouco, quase raivoso.

Foi ela quem segurou a base por tempo suficiente para finalizarmos o chip. E foi ela quem caiu com ele. A explosão do núcleo secundário a transformou em cinzas antes que pudéssemos gritar seu nome.

Depois disso, os corredores ficaram um pouco mais escuros. Permaneceram assim.

Aelin Varro, o Arquiteto da Eternidade, era a mente. E, às vezes, parecia o único que ainda acreditava que havia sentido em tudo.

Mesmo quando tossia sangue no console, ainda trabalhava no corpo do chip.

— “O universo não vai esperar que terminemos o trabalho. Por isso devemos correr.”

Tinha aquele olhar calmo de quem já sabia como tudo terminaria, mas se recusava a desviar o olhar. Eu o admirava. Todos nós o admirávamos.

Na última noite, ele me chamou. Suas mãos tremiam, os olhos marejados de febre.

— “Se tudo falhar, coloque o chip no gerador principal. Ele precisa estar vivo pra humanidade não ser esquecida.”

Fiquei ao lado dele até o fim. Ele morreu como viveu: projetando o amanhã, mesmo com os pulmões em colapso.

E então havia Hadrian Volk, o Escudo Inquebrantável.

Era o último a dormir, o primeiro a acordar. Dividia sua ração mesmo quando não havia o que dividir.

— “Não luto pelas estrelas, Kairós. Luto por vocês.”

Nunca vi alguém com tanta força. Mas a força também tem um preço.

Hadrian começou a definhar. Recusava comida, dizendo que os outros precisavam mais. E mesmo quando mal conseguia ficar de pé, ainda vigiava a porta como se fôssemos soldados num posto avançado.

Morreu em silêncio, numa das madrugadas eternas de Anax Prime. Quando acordei, encontrei sua armadura dobrada e o corpo coberto com a velha bandeira do Impérium.

O silêncio de Anax Prime pesava como concreto sobre meus ombros. Com Hadrian morto, só restava eu. O último a resistir. E mesmo assim, por dentro, eu já me sentia enterrado. Cada corredor vazio, cada sombra naquele túmulo de metal, me lembrava dos rostos que se foram. Mas entre os escombros e o eco das memórias, restava uma única fagulha que ainda queimava — o chip.

Depois que Hadrian partiu, algo dentro de mim quebrou. A dor não veio como um grito, mas como um sussurro persistente. Não havia mais tempo para luto. Não havia mais ninguém. O chip era tudo. Pequeno, inofensivo à primeira vista..., mas carregava o legado de tudo o que fomos. Não era só tecnologia — era memória. Era resistência. Era o fio que poderia costurar o fim a um novo começo. Mas ele ainda estava incompleto. Inútil. Morto.

Eu me recusei a deixá-lo assim.

Passei semanas cavando conhecimento nos cantos escuros dos servidores antigos, desmontando o que restava das instalações, improvisando ferramentas com peças de sucata e metal enferrujado. Minhas mãos, feridas e calejadas, mal obedeciam. A fome era constante, latejante. Os suprimentos tinham acabado. Só me restava o trabalho — e a dor. Mas eu não podia parar. Cada segundo contava. Cada batida do meu coração ecoava como um aviso: ou termina, ou morre.

O tempo também estava contra mim. O reator de Anax Prime falhou dias depois da morte de Maia, e sem ela para consertá-lo, a estação caiu em escuridão. Apenas a sala de pesquisa ainda respirava, sustentada por uma bateria reserva — fraca, mas suficiente para manter a esperança acesa.

Com o reator perdido, acoplar o chip a uma fonte externa tornou-se inviável. Eu precisava de algo mais... algo que não envelhecesse, não quebrasse, que resistisse ao tempo e ao esquecimento. Algo vivo.

Foi aí que compreendi.

O recipiente seria eu.

Eu seria o cofre. A cápsula. A última testemunha. O último guardião.

E então, olhando para o chip, com os dedos manchados de óleo seco e sangue, falei — não para mim, mas para eles.

— “Me perdoem... todos vocês. Eu falhei em proteger, em salvar, em cumprir a promessa. Fui fraco. Mas assim como vocês deram seus corpos... eu também darei o meu. Este projeto vai viver. E eu vou com ele. Pra lembrar de cada nome, cada sacrifício... até o fim."

Eu envolvi o chip com uma camada de biomaterial sintético que encontrei nas profundezas da ala médica — um resíduo de pesquisas antigas de autorregeneração tecidual. Combinado com meu próprio sangue e uma estrutura nanocristalina, ele seria absorvido gradualmente pelo meu corpo, fundindo-se ao meu sistema nervoso e circulatório. Não seria só um implante. Seria parte de mim.

Preparei o centro do meu peito com álcool isopropílico e uma lâmina esterilizada por um braseiro improvisado. A pele cedeu com resistência, e a dor veio como uma onda fria, aguda, profunda. Mas eu não podia vacilar. Com pinças enferrujadas, cavei até a fáscia, afastando as fibras do peitoral maior até que vi o osso esterno nu, pulsando sob a pressão interna do meu próprio coração. Era ali. O santuário daquilo que sobrou de todos nós.

Segurei o chip envolto no biocomposto e pressionei contra o centro do esterno. O material se ativou ao contato com o calor corporal e começou a se fundir à carne com um chiado baixo e um calor latejante. Meus músculos se contraíram, os nervos explodiram em choques desordenados, e minha visão embaçou.

— “Resiste, Kairós... resiste.”

Foi nesse momento que a dor ultrapassou a carne. Algo despertou.

Uma presença — fria, ordenada, antiga.

“Iniciando protocolo de integração neural. Compatibilidade genética... confirmada. Identidade reconhecida: Kairós, O Guardião do Projeto Eclipse.”

Minha mente tremeu. Senti algo escavando por trás dos meus olhos, navegando pelas memórias como dedos invisíveis virando páginas. Vi os rostos de Lannis, Maia, Aelin... Hadrian.

— “O que... o que é isso?!”

“Você solicitou preservação de dados, sobrevivente. Estou aqui para garantir que a história não morra com você. Eu sou NyxCore. Inteligência de Arquivamento Neural. E a partir de agora... nós somos um.”

Caí de joelhos. O chip ardia dentro de mim como se um segundo coração batesse em descompasso. Minhas mãos tremiam. Respiração irregular. Mas algo estava mudando. Imagens, dados, registros... começaram a fluir pela minha mente, intercalados com sensações, pensamentos antigos, memórias reorganizadas.

“Dor detectada. Administrando impulsos analgésicos autônomos. Cicatrização iniciada.”

A dor começou a ceder lentamente. O biocomposto endureceu, criando uma fina crosta metálica em meu peito, como uma cicatriz viva. Improvisei um curativo com tiras de tecido e o pouco antibiótico restante, enfaixando o peito com cuidado, os dedos ainda trêmulos.

A sala estava escura. Quieta. Mas dentro de mim, algo sussurrava — constante, atento.

“Missão: preservar. Resistir. Testemunhar.”

Não havia mais comida. Não havia mais luz. Mas eu ainda tinha pernas. E agora, tinha NyxCore, que apelidei de Nyx.

Deixei o laboratório e vaguei pelos corredores de Anax Prime.

Não sabia para onde ir. Meu corpo ainda ardia, e minha mente oscilava entre o colapso e a lucidez.

As estruturas da antiga base eram cascas ocres de ferro corroído e memórias que insistiam em doer. Cada passo era uma lembrança. Cada corredor, um funeral.

"Status do operador: estável. Condição física: severamente comprometida. Níveis nutricionais: abaixo do mínimo de sobrevivência. Ativando protocolo suplementar de manutenção metabólica."

— “O que isso quer dizer, Nyx?”

"Desde a assimilação, sua bioatividade foi parcialmente desacelerada para preservar as funções vitais. Processos metabólicos foram otimizados. Você está, em termos precisos, em uma condição de subsistência mínima automatizada."

— “Você tá... me mantendo vivo?”

"Correto. O chip Eclipse possui rotinas de sustentação integradas. Você não está se alimentando. Está sendo mantido. Contudo, isso não é sustentável por tempo indefinido. A deterioração celular já começou."

— “Entendi. Então eu não estou vivendo... só não morri ainda.”

Silêncio.

A IA, talvez por não ter sido programada para consolar, manteve-se quieta.

Continuei andando. O chão rangia sob meus pés, o metal frio quase tão frio quanto meu corpo. As luzes de emergência da base oscilavam como se estivessem tão cansadas quanto eu.

A dor no peito permanecia constante. O local da implantação ainda latejava, como se meu corpo rejeitasse a decisão. Como se parte de mim soubesse que já havia cruzado uma linha.

“Anomalia energética detectada. 341 metros à frente. Origem: não registrada. Nível de ameaça: desconhecido. Padrões incompatíveis com qualquer tecnologia do Impérium Solaris.”

— “Você consegue rastrear?”

"Já estou rastreando. Há uma curvatura no tecido espaço-temporal. Flutuação gravitacional compatível com rupturas dimensionais espontâneas. Suspeita de portal instável."

Caminhei, guiado por aquele pressentimento — ou talvez só por desespero disfarçado de esperança. As paredes começaram a vibrar levemente. Os cabos nos corredores tremiam como se temessem o que viria.

No antigo hangar, a luz me cegou por um momento.

Era um portal. Não como os que conhecíamos. Aquilo não fora construído — fora gerado. Uma ferida no espaço, pulsante e viva, como um olho aberto no vazio.

— “Você já viu algo assim antes?”

"Negativo. Esse fenômeno não possui precedentes registrados. Recomenda-se não prosseguir."

— “Claro. E ficar aqui até virar pó é uma alternativa melhor?”

"Estatisticamente, qualquer ação neste ponto é equivalente. Taxa de sobrevivência estimada: abaixo de 6%. Iniciando gravação final. Diretiva: preservar memória do operador Kairós até último bit funcional."

Eu ri. Ou tossi. Talvez os dois. A garganta seca nem sabia mais a diferença.

— “Se for pra acabar, então que seja tentando. Mas se for outra chance... que ela leve comigo o que restou da gente.”

Toquei a superfície. O tecido entre mundos pulsava sob meus dedos.

NyxCore processou silenciosamente, até sua voz ressoar uma última vez antes da travessia:

"Seja qual for a variável, eu permanecerei. Boa sorte, operador Kairós."

E então, eu atravessei.