O convite para Genebra já não era prioridade.
Naquela manhã, recebi um envelope pardo sem identificação, deixado discretamente sobre a minha mesa na sede da UNESCO. Dentro, havia três documentos. Dois deles eram cópias de contratos de apoio humanitário. O terceiro… era uma denúncia.
“Projetos de apoio psicológico em zonas de guerra estão sendo superfaturados. O nome de Isabel Guarda aparece como conselheira-chefe. Verifiquem as assinaturas.”
Senti o estômago revirar.
Assinaturas falsificadas. Usaram meu nome.
Fui direto à coordenadora do setor financeiro. Ela me olhou com cautela.
— Achas que foste envolvida em algo?
— Tenho certeza.
Ela pegou os documentos, reconheceu o formato.
— Isso passa pela mão de Thierry. Um dos nossos diretores de operações.
— Preciso falar com ele. Oficialmente.
— Tens certeza que queres abrir isso?
— Absoluta.
Naquela noite, em casa, Lara percebeu minha tensão.
— Mãe… o que aconteceu?
— Pode ser que estejam tentando me derrubar. Ou usar meu nome como escudo.
— Por que fariam isso?
— Porque me tornei visível. E porque há dinheiro envolvido.
Ela ficou em silêncio.
— Precisas de ajuda?
— Preciso que confies em mim. Mesmo que eu caia.
Dois dias depois, recebi outra visita inesperada. Uma mulher elegante, de pouco mais de 60 anos, esperava por mim no saguão do prédio.
— Isabel Guarda? Sou Helena Faria. Amiga íntima da tua mãe. De antes de tudo. Preciso te contar algo… sobre ela.
Senti o mundo girar.
— Pode entrar.
Subimos. Sentamos.
— Tua mãe, Teresa… antes de te ter, esteve envolvida num grupo de mulheres que ajudava outras a fugir de relacionamentos abusivos. Era uma rede clandestina, muito antes das leis de hoje.
— Nunca me contou isso.
— Nem poderia. Um dos maridos dessas mulheres a perseguiu. Jurou vingança. Anos depois… ele reapareceu. E foi por isso que tua mãe se afastou da própria família por um tempo. Para te proteger.
Senti um nó na garganta.
— Estás a dizer que minha mãe viveu escondida?
— Viveu vigilante. Por ti. E por elas.
Ela me entregou uma caixa com cartas antigas. Entre elas, uma carta inacabada com meu nome.
“Se algum dia fores como eu — e sei que serás — escolhe não calar quando quiserem te apagar. A verdade… às vezes é o único abrigo.”
Na manhã seguinte, protocolei oficialmente a denúncia. Thierry foi afastado temporariamente. Um inquérito seria aberto.
Mas eu já sabia.
Meu nome sairia nos jornais. Talvez até fosse desacreditada.
Jonas me ligou.
— Precisas de mim?
— Preciso da tua calma.
— Então estou contigo. Mesmo que de longe.
Júlia, ao saber da história da minha mãe, ficou em choque.
— E tu achas que essa rede de mulheres ainda existe?
— Não sei. Mas se existir… quero encontrar.
Na última cena do dia, sentei com Lara na varanda.
— Mãe… tu sabias que herdar uma história às vezes é mais pesado do que escrevê-la?
— Sei. Mas também sei que é só assim que a gente transforma o que nos feriu.
Ela pegou minha mão.
— Então vamos transformar. Juntas.
E ali, pela primeira vez em semanas, não pensei em ir. Nem em ficar.
Pensei apenas em resistir.