— Há anos, quando a humanidade menos esperava, um portal misterioso nos trouxe até a cidade de Yggdrasil, a cidade que rodeia a Torre de Babel.
Droga, esqueci a TV ligada de novo. Melhor desligar isso. Que irritante... é sempre a mesma história de sempre. Todo mundo já sabe que estamos presos nessa porra de cidade, pra quê isso?
— Pronto, bem melhor.
Por que eles continuam passando essa propaganda? É sempre a mesma porcaria: humanidade presa numa cidade sem recursos, pessoas despertam habilidades fantásticas, surge um sistema de níveis, começam a subir os andares da torre enfrentando monstros atrás de recursos como argonautas, e as guildas se formam. Caralho, eles acham que um comercial vai aumentar o número de despertos? Eu vejo esse maldito comercial todos os dias desde criança, e ainda não despertei.
— Melhor ir trabalhar.
Cara, como eu odeio morar nessa favela. Ruas esburacadas pra todo lado, um puta cheiro de fumaça e lixo espalhado.
— Aí!
— Olha por onde anda, palhaço!
— Desculpe, senhor.
É que você é tão feio que eu pensei que fosse uma lixeira... Se eu tivesse dito isso, aposto que ele viria pra cima de mim. Será que eu venceria? Eu não sou tão fraco assim.
— Madame, cheguei.
— Ah, Loki, finalmente aprendeu a usar a porta dos fundos.
— Claro, eu não quero ser confundido com um dos seus clientes, madame.
— Ainda te matam por essa língua.
— Quero ver tentarem.
— Imbecil, vai logo limpar isso e vê se não demora!
— Certo.
Madame Jasmim é a dona desse bordel. Ela me paga pra limpar o lugar. Eu não sou o melhor nisso, mas tem pouca gente jovem disposta a trabalhar pra ela. Deve ter alguma crise de meia-idade — não tem ninguém com mais de 30 anos trabalhando aqui.
— Ei, Loki, já desistiu de esperar pra virar um desperto?
— Nunca é tarde pra desistir, mas nunca é o momento certo. Por quê a pergunta?
— Um rapaz forte como você seria de boa ajuda pra lidar com alguns clientes problemáticos. Além disso, você não é tão feio a ponto de estragar o ambiente com essa sua cara.
— Valeu pelo elogio, mas não tenho tanto interesse.
— Você desperdiça demais o seu tempo. Treinar o corpo todas as noites não vai te ajudar a despertar.
— E socar seus clientes vai?
— Vai, pelo menos pra se divertir.
— Até parece.
— Não minta pra mim, garoto. Você é igualzinho à sua mãe, com essa mania de esconder o lado podr...
— E diferente do seu pai, justo ao ponto de ser estúpido. Você me fala isso desde os meus 12 anos. Não cansa?
— Sinceramente? Não. De qualquer forma, se estiver interessado nesse trabalho a mais, apareça aqui às 16:00.
— Certo, Madame Jasmim.
E pensar que demoraria a manhã toda pra limpar aquele lugar... Agora já são 14:00 e eu nem almocei ainda.
— Ei, moleque de cabelo castanho!
Quem sussurrou isso? Quando me virei, lá estava ele: um velho conhecido meu.
— Oi, senhor tarado.
— Fale baixo! E já disse que não sou tarado. Eu não sabia que as meninas daquele lugar eram tão novas.
Esse caucasiano pálido, na casa dos 40, deu em cima de uma das garçonetes de um bar que eu costumo ir. Ele só não contava que ela era menor de idade. Eu livrei a barra dele naquele dia, e ele ficou me devendo essa.
— Anda, fala logo o que você quer.
— Você é um dos argonautas que sobem a torre, não é?
— Não exatamente. Por quê a pergunta?
— Digamos que eu tenho uma forma de pagar o favor que te devo.
— Que seria?
— Eu consigo te colocar na torre no Dia Nonos.
— Tá de sacanagem, né?
— Não estou.
O Dia Nonos... Quando entraram em Yggdrasil, muita coisa de fora veio junto, como o conceito de semana. Só que, com o tempo, ela passou a ser baseada na rotina dos argonautas: os dias primeiros, segundos e terceiros são de uso exclusivo dos ranks mais baixos, que precisam upar rápido — Pedra, Ferro e Cobre. Depois, durante os dias Quartos, Quintos, Sextos, Sétimos e Oitavos, está liberada a entrada dos ranks mais altos — Bronze, Prata, Ouro e superiores. Já o Dia Nonos é reservado pros líderes de guilda e as estrelas das guildas, que focam nos andares não finalizados pra liberar novos andares. Isso significa que os andares inferiores vão estar vazios e cheios de recursos e monstros fracos, perfeitos pra subir de nível.
— Tem certeza disso, senhor tarado?
— Pare de me chamar assim! Meu nome é Bernardo. E sim, estou falando sério.
— Então eu aceito.
— Ótimo. Me encontre amanhã na praça central, às 9:00.
— Certo.
Talvez minha chance de despertar finalmente tenha chegado.
Droga, quase não dormi ontem. Maldição.
— E aqui estamos, nessa maldita praça.
Tá bem melhor do que da última vez que eu vim aqui. Até que é reconfortante essa vibe tranquila daqui... Só esse memorial pros argonautas falecidos que quebra o clima.
— Onde será que tá aquele fudido...
— Ei, moleque!
Lá está ele.
— Qual o sentido de sussurrar se acenou pra mim, hein?
— Não enche. Aqui, pega.
— Então esse cartão de identificação de membro de guilda vai me fazer entrar lá?
— Sim. Você não é o primeiro que eu consigo fazer entrar na torre. A guilda desse cartão na verdade é falsa. Os guardas vão ver e entender que você é um dos meus clientes.
— Você trabalha com isso?
— Sim. Ei, faca legal. Onde conseguiu?
— Obrigado, era da minha mãe.
— Ela era uma argonauta?
— Não. Era de um cliente dela. Ele deu pra ela de presente. Ela disse que era pra eu ficar com ela.
— Com o que sua mãe trabalhava?
— Não é da sua conta.
— Tá bem. Vai logo. Aproveita que não tem nenhum argonauta de rank alto na entrada da torre.
— Só uma última coisa.
— O que, garoto?
— Não tinha nome melhor do que Guilda do Chá Preto pra uma guilda falsa?
— Ei! Não tem graça. Para de falar besteira e vai logo!
— Tá bem.
Eu sorri pra ele, mas esse, na realidade, vai ser o maior desafio da minha vida.