Na periferia da cidade muriana de Rion, onde o frio mordia até os ossos e a neblina parecia nunca dispersar, o orfanato Hyeonhwa permanecia esquecido. Era uma construção baixa, de madeira velha e pedra rachada, com cheiro de bolor e gritos abafados pelas paredes finas. Ali dentro, cerca de cinquenta crianças dormiam, comiam,
choravam — e esperavam. Esperavam por uma adoção que nunca vinha. Esperavam pela próxima refeição. Ou, como Shin, esperavam por algo maior.
A rotina era cruelmente simples: trabalho, trabalho, silêncio. Os monges da ordem local, do ramo secular da Seita das Correntes Claras, eram burocratas da fé — frios, pragmáticos, e indiferentes. Eles recebiam doações em troca de “salvar” crianças indesejadas, mas pouco faziam além de alimentá-las mal, obrigá-las a limpar e manter os registros da ordem.
Noctros Shin, agora com oito anos e três meses, já começava a se acostumar com o peso de duas almas: a da criança que ele era, frágil e humana, e a do guerreiro que tinha sido, Jin, herdeiro do Vazio Negro, selado no esquecimento e tragado pelo tempo.
Durante o dia, lavava o chão, carregava água, raspava musgo das paredes. À noite, meditava. O Sistema do Vazio se revelava lentamente, com visões fragmentadas, treinos simulados e sussurros de técnicas esquecidas.
Mas algo naquele inverno parecia errado. Os monges cochichavam entre si. Visitantes começavam a aparecer à noite — homens encapuzados, com olhos secos e olhares famintos. As doações diminuíram, a comida escasseou. E então vieram os primeiros sinais de que o mundo lá fora, cruel como era, estava ainda pior do que parecia.
Na madrugada do décimo terceiro dia do mês das sombras, o orfanato foi cercado por um grupo de homens armados. Não cultivadores. Não soldados da Aliança Murim.
Eram os Urhak: um grupo de bandidos exilados, formados por ex-cultivadores
renegados, mercenários e carniceiros. Tinham ouvido rumores de que a cidade de Rion estava abandonando os investimentos em seus orfanatos e aproveitaram a oportunidade.
— Crianças crescem e viram recursos. Alguém sempre compra. — dissera o líder deles, Jarak, um homem com metade do rosto queimado e um Qi podre como um cadáver.
Jarak tinha sido um cultivador de Segunda Classe antes de ser selado por crimes de canibalismo espiritual. Agora, usava uma lâmina torta, escura, chamada Serpente Quebrada — uma arma que murmurava quando sedenta.
Eles arrombaram os portões com facilidade. Os monges não resistiram — a maioria fugiu, alguns se ajoelharam e imploraram por clemência. Jarak ordenou que todos fossem acorrentados e levados para um galpão. As crianças, assustadas, foram separadas por idade e vendidas ali mesmo para atravessadores do submundo.
Shin estava no dormitório quando os primeiros gritos começaram.
Acordou com a voz do sistema.
『Alerta: Perigo detectado. Cultivadores hostis em 200 metros. Status atual: Inviável para combate direto. Recomenda-se fuga ou ocultação.』
Mas Shin não era mais apenas uma criança. Nem apenas um cultivador iniciante. Ele era uma fagulha do vazio — e o vazio jamais se curva ao medo.
Escondeu-se sob as tábuas do assoalho, onde tinha cavado uma cova secreta dias antes.
Ali guardava pequenos ossos, talos de ervas, carvão — itens que usava em suas meditações e simulações de treino. Ao entrar no esconderijo, respirou fundo.
『Deseja ativar o modo de combate mental?』
Sim.
O tempo desacelerou. Na mente de Shin, os rostos dos Urhak surgiram — borrados, mas reconhecíveis. A interface do sistema permitia ver seus pontos fracos: Jarak tinha meridianos danificados e um ponto cego no flanco esquerdo. Dois outros tinham Qi
instável, o que os tornava vulneráveis a manipulação do fluxo interno.
Mas ainda assim… ele era uma criança. Um golpe direto não funcionaria.
Ele precisaria de estratégia. E silêncio.
Na madrugada seguinte, Shin emergiu.
A primeira técnica foi passiva: Olhar do Vazio (nível 1). Ele usou-a para causar
desconforto em dois dos bandidos que estavam dormindo no corredor. Eles acordaram suando, com alucinações de olhos os observando. Um deles fugiu. O outro atacou seus próprios companheiros, achando estar sendo traído.
Shin então ativou Passos do Vazio (nível 0). Ainda incompleto, mas suficiente para esgueirar-se entre sombras sem emitir som algum.
Chegou à despensa, onde encontrou uma das crianças menores: Mira, de cinco anos, chorando, presa a correntes. Shin não falou. Apenas olhou. A menina o reconheceu. Sempre o observava em silêncio. Seus olhos diziam: “Confio em ti.”
Com esforço e uso de uma pequena técnica espiritual chamada Fenda Interior — que pressionava levemente o Qi sobre o metal —, quebrou a corrente. Pegou a menina nos braços e sumiu na escuridão.