Parte 1 – Vozes entre Paredes
O inverno continuava afiado. Rion parecia congelada no tempo. As ruas da cidade baixa dormiam sob neblina constante, e os lampiões crepitavam com fogo fraco. O orfanato Hyeonhwa retomara uma frágil normalidade após o ataque dos Urhak, mas nada estava
como antes.
Shin, agora com oito anos e meio, caminhava entre crianças órfãs como uma sombra. As mãos feridas, os olhos escuros, a alma ferida. Dormia menos. Meditava mais. Seus sonhos estavam repletos de marés violentas, ondas negras e rios de sangue.
『Nova missão ativa: Obter técnica perdida da Família Abyrae – Maré Demoníaca.』
『Localização estimada: Subsolo da Cidade de Rion. Ruínas da antiga Biblioteca Central, alas restritas.』
『Recompensa: Liberação do primeiro estágio da Técnica da Maré Demoníaca.』
Shin sabia o que isso significava. A Família Abyrae, uma das leais ao culto demoníaco, era conhecida por sua afinidade absoluta com a água espiritual. A Maré Demoníaca não era apenas uma técnica ofensiva — era um estilo de cultivo baseado em pressão, fluidez, paciência e sufocamento.
Uma combinação perfeita com o vazio.
Mas a cidade não facilitava. A entrada para a antiga Biblioteca havia sido lacrada após a queda do culto. Diziam que parte dos arquivos subterrâneos pertencia a estudiosos demoníacos, e que o lugar estava amaldiçoado.
Perfeito.
Era lá que ele devia ir.
Durante sete noites, Shin vasculhou os mapas mentais oferecidos pelo sistema.
A Biblioteca de Rion possuía três níveis:
• O superior, usado por estudiosos e monges (hoje convertido em armazém).
• O médio, onde ficavam escritórios administrativos e artefatos simples.
• E o inferior — a ala selada. Escura. Enterrada sob o solo como uma cicatriz.
O acesso ao subsolo havia sido fechado por ordens da Aliança após a guerra, e os registros haviam sido queimados. Mas o sistema do Vazio lembrava. Seus circuitos antigos, conectados à linhagem Noctros, ainda sabiam o caminho.
Na oitava noite, Shin escapou do orfanato com um pedaço de corda, uma lâmina curva de ferro que ele mesmo afiara, e um pequeno frasco de Qi condensado — um presente furtado de um dos monges.
A entrada ficava atrás do templo do Lótus, sob uma escadaria quebrada. Lá, entre pedras e raízes, um círculo de selos apagados escondia uma alavanca. Com esforço, Shin tocou o selo com uma gota de sangue.
『Reconhecimento de assinatura: parcial. Autorização concedida.』
O chão tremeu. Um estalo. E então… silêncio.
O portão se abriu.
O ar ali embaixo era espesso. Denso. Cheirava a papel queimado, lama velha e metal oxidado. As paredes estavam cobertas por runas pálidas que pulsavam fracamente com Qi residual. Shin sentia os ecos de vozes. Estudiosos mortos. Guardiões esquecidos. Espiões que nunca voltaram.
A escadaria descia em espiral por quatro níveis. O sistema alertava: a técnica da Maré Demoníaca estaria no último — mas selada.
Na metade do caminho, encontrou seu primeiro obstáculo.
Um santuário antigo — uma câmara redonda com colunas quebradas e estátuas sem rosto. Ao centro, um pilar com marcas de água. E sobre ele…
Um velho.
Cego. Sentado de pernas cruzadas. Pele azulada. Olhos brancos.
— Vazio… — sussurrou. — Então, finalmente, retornaste.
Shin parou. O homem não parecia respirar. Mas sua presença era real — e ameaçadora.
Qi antigo, estagnado como pântano, se espalhava pela sala.
— Quem és tu? — perguntou Shin.
— Um eco — respondeu o velho. — Guardião do selo. Último leitor da Maré.
Silêncio.
— Provas-te digno ou morres aqui.
O sistema emitiu um aviso:
『Presença espiritual de alta instabilidade detectada. Recomenda-se evasão ou uso de Técnicas de Distração.』
Mas Shin ficou.
— Lute comigo — disse o velho. — Não com armas. Mas com fluxo.
E então tudo tremeu.
A água brotou do chão. Das paredes. Dos poros da sala. Um campo ilusório se formou
— uma simulação ancestral criada por um cultivador espiritual do último estágio da Família Abyrae. O velho não existia mais. Agora, era a Maré em si.
Shin seria testado.