CAPÍTULO 20
O hospital se ergue diante de mim com sua fachada de vidro e aço, refletindo a luz do entardecer. Respiro fundo antes de atravessar as portas automáticas, sentindo a lufada de ar frio que me recebe ao entrar. Não importa quantas vezes eu tenha visitado um hospital, a sensação é sempre a mesma: um choque entre o clínico e o humano, entre a fragilidade da vida e a necessidade de preservá-la.
O cheiro de desinfetante me envolve imediatamente, misturado ao murmúrio constante de conversas em voz baixa e ao eco de passos que ressoam pelos corredores. Tudo neste lugar me lembra que é aqui onde as pessoas lutam contra doenças, recebem notícias que mudam suas vidas e, em alguns casos, dão as boas-vindas a uma nova vida.
Hoje estou aqui por essa última razão.
Sigo as placas até a área de ginecologia. No caminho, passo por uma mãe que tenta acalmar o filho enquanto o segura no colo. O menino brinca com um bichinho de pelúcia surrado, sua pequena mão agarrada com força ao tecido. Mais adiante, um casal de idosos caminha lentamente, apoiando-se um no outro. A vida em todas as suas fases acontece dentro destas paredes.
Chego à sala de espera e procuro o lugar mais afastado para poder ficar tranquila e me afundar nos meus pensamentos. Me acomodo com cuidado, sentindo o peso da incerteza sobre os ombros. Ao meu redor, mulheres com barrigas arredondadas conversam em voz baixa, algumas acompanhadas pelos parceiros, outras por familiares ou amigas. Me surpreende o contraste entre seus rostos iluminados pela emoção e meu próprio reflexo na tela do celular: uma mulher sozinha, com o futuro escrito numa linha borrada.
Minhas mãos repousam sobre meu abdômen, ainda plano, ainda sem sinais visíveis da vida que cresce dentro de mim. Mas eu sei que ela está lá. Soube desde o momento em que Walter disse isso com absoluta certeza. Fecho os olhos por um instante e me permito imaginar. Daqui a alguns meses, como será minha vida? Onde estarei quando minha filha nascer? Terei um lar pronto para ela? As perguntas pairam na minha mente, mas antes que se transformem em ansiedade, uma enfermeira sai da consulta e me chama.
— Senhora Hu, a Dra. Chen está esperando por você.
Me levanto e sigo a enfermeira por um corredor estreito e bem iluminado. As paredes estão decoradas com quadros de paisagens serenas, como se tentassem suavizar a tensão natural que se respira num hospital. Quando entro na sala, a Dra. Chen me recebe com seu sorriso caloroso de sempre.
— Yifei, quanto tempo! Está tudo bem? — diz, estendendo a mão.
Retribuo o cumprimento, sentindo um leve alívio ao vê-la. A Dra. Chen foi quem esteve ao meu lado quando perdi meu filho. Agora, voltar a ela para dizer que sua previsão estava errada e que tenho uma nova vida no meu ventre me faz sentir eufórica.
— Está tudo indo bem — respondo enquanto me sento.
— Hoje tem consulta de rotina? — pergunta olhando para a tela do computador. Quando confirma que fui eu quem solicitou o atendimento, me olha, surpresa — O que aconteceu?
Hesito um instante antes de responder. O QUE ACONTECEU? Como explicar a essa mulher, da ciência, que estou aqui porque um vidente me disse que estou grávida e quero confirmar?
— Nada de grave… eu acho — Minha voz soa mais inquieta do que eu esperava.
A Dra. Chen assente com compreensão.
— Teve dores abdominais? Sangramento intenso?
Fico olhando para ela em silêncio enquanto deduzo, pelas perguntas, que ela acredita que voltei ao hospital porque minha menstruação mudou. Em parte, ela tem razão, mas não é por dor ou sangramento intenso — é porque não veio.
— Sei que vai parecer estranho — começo a explicar suavemente —, mas acho que estou grávida.
Ela me olha em silêncio, como se não tivesse ouvido o que acabei de dizer. Compreendo sua surpresa porque foi ela quem me disse que eu não poderia engravidar novamente. E não disse isso levianamente, não. Ela me fez mais de dez exames e estudos para confirmar o diagnóstico. Supostamente, eu não poderia ser mãe nesta vida. Agora, Walter diz que Deus me oferecerá uma menina e que ela será minha salvação.
Observo a confusão em seu rosto. Sei que ela quer me dizer que é impossível eu estar grávida. Talvez queira me encaminhar a um psicólogo para tratar o transtorno mental que, supostamente, tenho. No entanto, preciso insistir para que ela me faça uma ultrassonografia.
— Imagino, pela sua expressão, que não acredita em mim. Eu entendo, mas preciso que confie em mim.
— Os resultados que tivemos foram conclusivos — insiste, segura de que tudo o que acredito é mentira ou alucinação.
— Quantas vezes vim visitá-la nos últimos três anos? — pergunto, tentando fazer com que meu raciocínio soe mais claro, firme.
— Segundo seu prontuário, esta é a segunda vez — responde, após revisar meus dados na tela.
— Em alguma ocasião eu disse que estava grávida? — insisto, tentando fazê-la refletir.
A médica fixa o olhar no computador e lê meu extenso histórico em silêncio. Depois, respira fundo e começa a me fazer as mesmas perguntas que ouvi da primeira vez que engravidei.
— Data da sua última menstruação?
— Faz aproximadamente um mês.
— Sintomas recentes? Tonturas, enjoos, fadiga? — continua perguntando enquanto digita o novo relatório.
— Um pouco de cansaço e sensibilidade nos seios, mas nada além disso.
— Já tomou alguma vitamina pré-natal até agora?
— Não, mas estou disposta a seguir qualquer recomendação.
A Dra. Chen sorri e anota algo em seu tablet.
— Certo, então vamos fazer uma ultrassonografia para confirmar suas suspeitas.
“Para confirmar as palavras de Walter”, penso.
Ela me guia até uma maca no outro lado da sala.
— Deite-se e levante a blusa.
Faço isso, sentindo uma leve ansiedade quando ela espalha o gel frio sobre meu abdômen.
— Pode ser um pouco estranho — avisa antes de pressionar o transdutor contra minha pele.
Na tela preta aparecem ondas borradas no início. Alguns ajustes depois, e então... lá está.
Um pequeno ponto na imensidão da imagem.
— Yifei... — diz surpresa ao ver um pequeno ponto dentro de mim —. É... É...
— Um milagre de Deus — respondo com os olhos banhados em lágrimas.
Aqui está minha menina, minha tábua de salvação, meu futuro.
— Tem aproximadamente quatro semanas — prossegue Chen sem tirar os olhos do meu pequeno prodígio.
Meus lábios se entreabrem, mas não encontro palavras. Só consigo olhar para a tela, fascinada, incapaz de desviar os olhos daquela minúscula prova de vida.
É real.
Não é só uma ideia, uma possibilidade.
É minha filha.
O ar se prende na minha garganta, e antes que eu perceba, lágrimas quentes escorrem pelas minhas bochechas. Cubro a boca com a mão, tentando controlar a emoção que me domina. Chen sorri com compreensão.
— Parabéns, você vai ser mãe. Mas precisa entender que, depois do que aconteceu anteriormente, teremos que acompanhar toda a gestação com muito cuidado. Não podemos negligenciar nada — comenta enquanto desliga o aparelho e limpa o gel do meu abdômen.
— Claro — respondo olhando para a imagem congelada da minha pequena.
— Evite café e alimentos processados. Descanse o suficiente e pratique exercícios moderados. Também vou receitar vitaminas pré-natais para garantir que seu bebê receba todos os nutrientes necessários — informa, entregando-me uma folha com as orientações.
Pego a lista com as mãos trêmulas.
— Obrigada, Dra. Chen.
— Tem alguma dúvida ou preocupação?
Levanto o olhar para ela.
— Ainda não consigo assimilar tudo isso — digo com franqueza.
Chen se inclina levemente em minha direção.
— Eu também não — diz antes de soltar uma gargalhada,
E eu me junto à risada, porque não só começo a acreditar em milagres, mas também na felicidade do meu futuro.
CAPÍTULO 21
O aroma de café e pão recém-assado impregna o ambiente assim que cruzo a porta da cafeteria. O som abafado das conversas se mistura ao tilintar das colherinhas contra a porcelana, criando uma atmosfera acolhedora e quente. Não é a primeira vez que encontro a Na aqui. É o lugar onde compartilhamos vitórias, fracassos, risos e lágrimas. Mas hoje, pela primeira vez, sinto que estou prestes a dar uma guinada irreversível na minha vida.
A vejo sentada junto à janela, com sua jaqueta bege perfeitamente ajustada e o cabelo preso em um rabo de cavalo alto. Está olhando o celular, mas assim que me vê, larga o aparelho sobre a mesa e levanta uma sobrancelha, me avaliando com o olhar.
— Aqui estou — diz assim que me aproximo —. Sou toda ouvidos.
Sorrio de qualquer forma enquanto tiro o cachecol e me sento à sua frente. O toque suave do cachecol de lã me lembra que o inverno está no auge, mas dentro de mim arde algo que não tem nada a ver com o frio.
A garçonete se aproxima com um sorriso profissional e anota meu pedido. Não estou com muita fome, mas preciso de um café. Peço um com leite e, enquanto a moça se afasta, sinto a intensidade do olhar de Na sobre mim. É como se ela já soubesse que o que estou prestes a dizer vai mudar tudo.
— O que aconteceu? — pergunta sem rodeios, cruzando os braços sobre a mesa —. Você sumiu nos últimos dois dias e, conhecendo você, isso só pode significar que algo grande aconteceu.
Respiro fundo e solto o ar lentamente antes de falar. O som da minha própria respiração me lembra que estou viva, que isso não é um sonho, mas uma decisão que tomei com plena consciência.
— Estive ocupada, Na. Pode imaginar os pensamentos que estou tendo neste momento. — Ela assente, compreensiva — Em primeiro lugar, quero te contar que marquei uma consulta com um advogado e fui até ele.
— Que advogado?
— Wang Kai — digo, e as palavras saem da minha boca com uma firmeza que me surpreende.
Na arregala os olhos e bate com a palma da mão na mesa, fazendo as colherinhas tilintarem nas xícaras.
— Não brinca comigo! — exclama, e sua voz é tão alta que várias pessoas olham em nossa direção. Ela não se importa; nunca se importou com o que os outros pensam —. Sério? Já tomou a decisão? Como foi a visita? Ele te devorou com os olhos? Porque dizem que ele é tão feroz que intimida com um único olhar — acrescenta abaixando um pouco a voz, mas sem perder a intensidade que é sua marca registrada.
— Sim, sim, foi melhor do que eu esperava e não, ele não me devorou com os olhos, mas é verdade que o olhar dele é muito intenso e teve momentos em que me senti um pouco intimidada — respondo, lembrando enquanto falo.
Na se recosta na cadeira e solta um longo suspiro, como se um peso tivesse acabado de sair de seus ombros. Seus dedos tamborilam na mesa, num ritmo nervoso que revela sua agitação interior.
— Enquanto ele for capaz de te ajudar a conseguir o divórcio, por mim pode ter cara de dragão milenar se quiser — diz, me olhando com uma mistura de orgulho e preocupação.
A garçonete retorna com meu café e aproveito a pausa para mexê-lo lentamente, observando o redemoinho que se forma na xícara. Me sinto estranha, como se ao dizer tudo em voz alta, tudo se tornasse ainda mais real. O aroma do café me envolve, mas não consegue acalmar a inquietação que carrego por dentro.
— Ele está preparando toda a documentação necessária para que minha separação seja definitiva e rápida — contínuo, tomando um gole —. Enquanto isso, sigo com a imagem de esposa devota para que Ge não suspeite das minhas intenções.
Na assente lentamente, os olhos fixos em mim como se estivesse tentando decifrar algo no meu rosto.
— Faz sentido — diz finalmente —. Outra coisa: o que vai fazer com a empresa?
Mexo a colher na xícara, observando o reflexo da luz na superfície do café. A empresa foi minha vida por anos, mas agora sinto que é apenas parte de um passado que quero deixar para trás.
— Vou deixá-la nas mãos da Mei Ling — respondo, e Na me olha incrédula.
— Sério? Vai confiar tudo à Mei Ling? — pergunta, com um tom de surpresa e ceticismo misturados.
— É a única pessoa em quem confio para isso — afirmo com segurança —. Está ao meu lado há anos, conhece cada canto da empresa e sabe como lidar com tudo.
Na tamborila os dedos sobre a mesa antes de assentir com resignação.
— Bom, se você confia nela, então tudo bem — conclui, mas seu olhar ainda reflete certa dúvida —. Embora fugir de tudo por um tempo seja uma boa ideia, ainda não concordo com você sair da China.
Fico em silêncio por um momento, observando o vai e vem das pessoas na cafeteria. Lá fora, as pessoas caminham apressadas, protegidas contra o frio da tarde, sem imaginar o furacão de pensamentos que atravessa minha mente neste instante.
— É o melhor, Na. Preciso de distância. Não quero que Ge tenha a chance de me encontrar — digo, e minhas palavras soam mais frias do que eu pretendia.
Ela estala a língua com frustração, mas não discute. Em vez disso, se inclina para frente, apoiando os cotovelos na mesa e me olhando com aquela intensidade que sempre me faz sentir que ela pode enxergar através de mim.
— E já pensou pra onde vai? — pergunta como se fosse anotar.
Balanço a cabeça.
— Ainda não. Mas sei que, quando chegar o momento, vou saber.
Na estreita os olhos e se inclina ainda mais, como se estivesse tentando decifrar um enigma.
— Tem mais alguma coisa, não é? — diz, e seu olhar se dirige ao meu ventre —. Você não parou de tocar a barriga desde que chegou.
Um sorriso cansado se forma nos meus lábios. Não consigo evitar; Na sempre foi perceptiva demais.
— Fui ver a Dra. Chen — confesso, e minha voz é quase um sussurro.
Na abre a boca, mas não diz nada. Seu olhar se suaviza e, por um instante, vejo algo parecido com ternura em seus olhos.
— Você viu seu bebê — murmura, e suas palavras são tão suaves que quase se perdem no burburinho da cafeteria.
Assinto lentamente, sentindo o nó na garganta aumentar.
— Sim — digo, e minha voz treme levemente.
Na se inclina mais, apoiando o cotovelo na mesa e o queixo na mão. Sua expressão é uma mistura de curiosidade e emoção.
— E como foi? — pergunta, e sua voz é tão baixa que mal a escuto.
Engulo em seco e desvio o olhar para a janela. Lá fora, o céu está cinza, mas na minha mente vejo a imagem da ultrassonografia, aquele pequeno ponto na tela que mudou tudo.
— Não sei — respondo finalmente —. Foi... inesperado. Fiz a ultrassonografia e lá estava. Um pequeno ponto na tela. Tem apenas quatro semanas, mas já está lá.
Na sorri, mas seus olhos estão cheios de emoção.
— É incrível — diz, e sua voz é tão suave que quase não a escuto.
Dou de ombros com fingida indiferença, mas ela não se deixa enganar.
— Você está com medo — afirma, e suas palavras são um golpe direto no coração.
— Muito — confesso, e minha voz é apenas um sussurro.
Na estende a mão sobre a mesa e aperta a minha com suavidade. Seu toque é quente e reconfortante, como sempre foi.
— Você não vai estar sozinha, Yifei — diz, e suas palavras são um bálsamo para minha alma —. Você tem sua filha, tem a mim.
As palavras de Na me confortam mais do que gostaria de admitir. Aperto sua mão em sinal de agradecimento e, pela primeira vez em muito tempo, sinto que tenho um apoio verdadeiro e incondicional.
O resto da conversa flui com mais naturalidade. Falamos dos detalhes do divórcio, dos bens que tenho em comum com Hu Ge e de como pretendo sair da China assim que tudo estiver resolvido. Também conto que Wang Kai tem sido mais do que eficiente com o processo e que, de alguma forma, falar com ele me fez sentir mais segura. Na me lança um olhar desconfiado quando o menciono, mas não comenta nada a respeito.
Quando saímos da cafeteria, o fim da tarde já começa a escurecer e uma brisa fria arrepia minha pele. Nos despedimos com um abraço demorado, e enquanto caminho pelas ruas da cidade, sinto que, apesar de tudo, estou no caminho certo.
CAPÍTULO 22
Me olho no espelho e a mulher que me encara de volta não é a mesma que fui há alguns meses. O vestido preto de seda desliza sobre minha pele com a precisão de uma segunda camada, ajustando-se a cada curva com uma elegância deliberada. Tem um decote pronunciado e as costas nuas, sensual sem ser provocante. Meu cabelo cai em ondas suaves sobre os ombros, emoldurando meu rosto com um ar de sofisticação que fazia tempo que eu não reconhecia. Pego um pincel fino e contorno meus lábios com precisão, preenchendo-os com um vermelho intenso que destaca contra minha pele. Depois delineio os olhos, alongando o traço com um leve puxado que adiciona um toque felino ao meu olhar. Paro por um instante e me observo.
Quando Hu Ge me mandou a mensagem, dizendo que queria me levar para jantar porque havia me negligenciado muito, soube que não era um gesto de amor. Não era uma tentativa genuína de consertar nada. Era sua maneira de se assegurar de que eu ainda estava no meu lugar. Mas eu não estou mais no lugar dele. Coloco os brincos de pérola e me olho uma última vez no espelho. Não faço isso por ele. Não faço para impressioná-lo. Esta noite é para mim. Caminho até o closet e pego minha bolsa preta de grife. Sinto o peso do documento dentro. O acordo de divórcio está ali, esperando seu momento. Não sei se esta será a noite certa, mas algo dentro de mim diz que sim. Levo comigo como quem carrega um ás na manga.
O encontro na entrada, encostado no batente com sua postura relaxada de sempre, aquela que costumava me fazer pensar que ele tinha tudo sob controle. Embora seu olhar percorra meu corpo com uma mistura de admiração e surpresa, como se não lembrasse da última vez que me viu assim.
— Você está deslumbrante — diz.
Retribuo com um sorriso cortês.
— Obrigada.
Ele me oferece o braço, mas não o aceito. Esse tipo de contato já não significa nada para mim. Me adianto até a porta sem olhar para trás. Lá fora, me surpreendo ao ver nosso carro na entrada. Onde mesmo ele havia dito que não estava? Um sorriso amplo aparece nos meus lábios ao lembrar da conversa e de como me senti no instante em que ele ficou sem saída.
Hoje quero deixá-lo entre a cruz e a espada novamente…
Ele abre a porta do carro para mim, mas não com a delicadeza de quando nos conhecemos. Não há uma mão protetora no teto para evitar que eu bata a cabeça, nem um olhar preocupado. É um gesto automático, vazio de significado.
O trajeto transcorre em silêncio. Ele não tenta puxar conversa e eu não lhe dou motivos para isso. O restaurante para onde me leva é um dos mais exclusivos da cidade. Luzes suaves, cristais reluzentes, decoração elegante. Tudo pensado para que os casais acreditem ter entrado em um refúgio privado, longe do barulho do mundo. Que ironia.
Somos conduzidos até uma mesa em um canto reservado, longe dos demais clientes. Ele sempre preferiu a discrição. Não por mim, mas por ele mesmo. Porque estar com a esposa em público é apenas mais uma parte de sua encenação. Quando o garçom se aproxima, Ge pede vinho sem nem sequer perguntar se eu quero beber. Seu gesto é tão automático quanto seu sorriso. Serve sua taça e a minha com a mesma naturalidade com que me tomou por garantida todos esses anos. O vinho é de um vermelho profundo, refletindo as luzes do lustre sobre a mesa. Por um instante, me pergunto se uma taça pode prejudicar minha filha, mas preciso seguir com o plano e agir com naturalidade. Decido beber, embora meus goles se transformem em medidas de gotas.
— Estive pensando que deveríamos tirar umas férias — diz de repente, com um sorriso relaxado enquanto brinca com a borda da taça —. Talvez Dubai. Você sempre disse que é o ícone da arquitetura moderna.
Quase dou risada. Depois de tantas noites ausente, depois de tantas desculpas baratas, agora ele quer viajar comigo?
— É uma ideia interessante — respondo sem demonstrar emoção.
Hu Ge me estuda com cautela.
— Tenho notado que você está diferente ultimamente.
Levo a taça aos lábios e dou um gole lento enquanto desfruto da incerteza que se reflete nos olhos do meu futuro ex-marido.
— Diferente?
— Sim. — Ele se recosta na cadeira, como se tentasse me analisar —. Não sei… menos preocupada. Antes você costumava fazer mais perguntas.
Sorrio.
— Talvez eu tenha aprendido a deixar de me preocupar — digo como se tivesse virado uma poetisa, enquanto minha mente conclui que ele sente meu coração.
Deixei de te amar, Ge. Também deixei de te odiar. Na verdade, você fez de tudo para que eu não sentisse mais nada por você…
Sua testa se franze por uma fração de segundo, mas ele se recompõe rápido. Não está acostumado a que alguém jogue com as mesmas armas dele.
O garçom nos serve o jantar, mas ele mal toca no prato. Sua mão desliza até o celular, desbloqueia a tela com um movimento quase involuntário e seus olhos percorrem a tela rapidamente. Ele sabe que estou observando, mas não para. Não consegue evitar.
— Algo importante? — pergunto com fingida curiosidade.
— Só trabalho — murmura, bloqueando novamente a tela.
Sei que não é trabalho. O celular vibra e sua expressão muda por uma fração de segundo. É tão sutil que alguém que não o conhecesse bem não notaria. Mas eu noto. Deixo meu garfo sobre a mesa com delicadeza e, sem pressa, pego meu próprio celular. Um número desconhecido. Um arquivo em anexo. Uma foto. A lingerie de renda preta deixa pouco à imaginação. O tecido transparente revela mais do que esconde, e embora não apareça um rosto, a mensagem é clara:
“Acabei de enviá-la ao seu marido. Quanto tempo você acha que ele vai demorar para vir até mim?”
Meus lábios se curvam num sorriso imperceptível. Ergo o olhar e observo Hu Ge. Está inquieto, movendo o garfo sem propósito sobre o prato. O celular vibra outra vez. Não faço nenhuma cena. Não o confronto. Não lhe dou o prazer de ver uma reação em mim. Em vez disso, deslizo minha bolsa sobre o colo, abro com calma e tiro o documento que venho aguardando semanas para usar no momento certo.
E este é o momento…
Ele se mexe na cadeira. Sei o que vai dizer.
— Vou ter que sair mais cedo do que o previsto — começa —. Houve um problema na empresa…
— Ge.
Chamo com suavidade, cortando sua desculpa antes que ele possa terminá-la. Coloco o documento sobre a mesa e o giro lentamente em sua direção.
— Lembra que você prometeu que compraríamos o apartamento em frente ao da Na? — Toco o papel com a ponta dos dedos —. Mesmo que só usemos algumas semanas por ano, estou muito animada em ter um lar ao lado da minha amiga.
Sua impaciência cresce. Ele não pensa muito. Pega a caneta que lhe ofereço e assina sem ler. Assim de simples. Recolho os documentos com a mesma calma com que os coloquei.
— Já pode ir.
Ele se levanta, pega o casaco e se afasta rapidamente. Mas antes de sair do restaurante, para. Se vira e me olha. Em seus olhos há algo estranho. Não é amor. Não é arrependimento. É um vislumbre de perda. Talvez ele intua que nos resta pouco tempo juntos...
*****
Termino de jantar, saboreando cada pedaço da sobremesa como se fosse uma pequena vitória pessoal. O bolo de chocolate me lembra que ainda existem coisas boas na vida, mesmo em meio ao caos. Peço um café descafeinado, algo que nunca teria feito antes. Mas agora, cada decisão que tomo gira em torno dela, daquela pequena vida que cresce dentro de mim. É curioso como algo tão simples quanto escolher uma bebida pode me lembrar que já não estou sozinha.
Quando finalmente deixo a xícara sobre o pires, sinto que é o momento. Pego o celular da bolsa, seguro-o na mão por um instante e depois disco o número que já memorizei. O tom de chamada toca uma, duas vezes, antes que Wang Kai atenda.
— Consegui — digo, com um tom de triunfo.
Do outro lado da linha, há um silêncio. Não é um silêncio desconfortável, mas um carregado de significado, como se Kai estivesse processando minhas palavras, medindo seu peso. Quando finalmente fala, sua voz é serena, quase demais, embora eu perceba algo em sua respiração. Está leve, rápida, como se tentasse conter algo.
— Não é hora de nos vermos agora — diz, mas seu tom não é convincente —. Melhor amanhã.
Sorrio para mim mesma, sabendo exatamente o que está passando pela cabeça dele. Kai não é fácil de decifrar, embora neste momento, sua voz revele uma emoção que raramente mostra: felicidade, alívio, talvez até um pouco de triunfo.
— Meu ex-marido foi embora com a amante — respondo, mantendo minha voz calma —. Não vai voltar até amanhã ou talvez depois. Depende se ela ainda tem mais lingerie sexy guardada na gaveta. Sendo assim, agora é o melhor momento.
Há outra breve pausa, e desta vez consigo imaginar Kai do outro lado da linha, calculando, decidindo. Quando fala novamente, sua voz está mais suave, quase um sussurro.
— Tem certeza?
— Sim — declaro sem hesitar.
Dessa vez, a pausa é mais curta. Kai respira fundo, como se estivesse se preparando para algo, e então sua voz vem, firme e decidida.
— Nesse caso, diga-me onde está que vou buscá-la.
Em silêncio, envio a ele o endereço do restaurante.
— Não vou demorar — garante antes de desligar.
Deixo o celular sobre a mesa e solto o ar lentamente, sentindo o peso da noite começar a se dissipar. Olho ao meu redor, observando o restaurante vazio, as luzes suaves, as mesas perfeitamente arrumadas. Tudo parece tão tranquilo, tão normal, embora eu saiba que nada mais voltará a ser.
CAPÍTULO 23
No restaurante restam poucos clientes. Eu teria ido embora no momento em que Ge saiu, mas um homem me retém: Kai. Tomo meu tempo, mexendo a colherinha em uma xícara que há muito está vazia. Lá fora, a cidade segue seu curso, mas eu apenas espero. Então eu o vejo. Não diretamente, mas no reflexo da vidraça.
Um carro preto para em frente ao restaurante, elegante, discreto, embora suficientemente imponente para captar minha atenção. Um Maserati Quattroporte, com vidros escurecidos que refletem as luzes da rua. Não faz barulho desnecessário, não chama a atenção dos pedestres, mas eu sei exatamente quem é.
A porta do motorista se abre com suavidade e Wang Kai desce. Não sei o que esperava sentir ao vê-lo de novo, mas há algo em sua presença que sempre parece alterar o equilíbrio em que tento me manter. Sua postura é a mesma: impecável. Sua expressão, serena, como se nada neste mundo pudesse surpreendê-lo. Embora, quando seus olhos me encontram através da vidraça, há algo mais em seu olhar. Algo que não consigo decifrar.
Ele não apressa o passo. Caminha com a mesma segurança com que tem feito tudo até agora. Entra no restaurante e, embora haja outras mesas ocupadas, sua atenção está fixa em mim. Veste um terno escuro, impecavelmente cortado, que se ajusta aos ombros largos e ao torso atlético com naturalidade. A camisa branca por baixo está abotoada até o colarinho, sem gravata, dando-lhe um ar de elegância descontraída. Suas mãos, fortes e bem cuidadas, sobressaem das mangas, e não consigo evitar notar como ele movimenta levemente os dedos, como se calculasse cada passo antes de dá-lo.
Ele caminha até mim com passos decididos, sem pressa, mas sem hesitação. Cada movimento seu parece calculado, como se soubesse exatamente o efeito que causa. O som de seus sapatos sobre o chão de mármore ressoa no silêncio do restaurante, e não consigo evitar sentir meu pulso acelerar. Quando está a poucos passos de mim, percebo que não é apenas sua aparência física que o torna imponente. É a energia que emana, essa mistura de confiança e mistério que o envolve como uma aura. Ele para diante de mim e me olha com uma intensidade que quase me faz prender a respiração.
— Olá — diz.
Assinto lentamente, sem desviar o olhar. Há algo em sua presença que me faz sentir segura, mas também vulnerável, como se estivesse à beira de algo que não posso controlar.
— Olá — respondo, e minha voz soa mais firme do que eu esperava.
Me levanto com naturalidade, embora, antes que eu possa estender a mão para pegar o casaco, ele já está atrás de mim, colocando-o sobre meus ombros. Sua proximidade é diferente. Não se trata apenas do gesto, mas da precisão com que o faz. O toque sutil de seus dedos no meu ombro, a maneira como segura a peça para que me envolva com suavidade, a naturalidade com que se certifica de que estou confortável antes de se afastar um pouco.
Hu Ge também costumava me ajudar com o casaco. Mas nunca assim.
— Vamos conversar em outro lugar — diz próximo ao meu ouvido, o suficiente para que apenas eu ouça.
Assinto sem hesitar. Ele me oferece o braço, mas não o aceito. Não porque me incomode, mas porque quero ver até onde ele vai sem forçar nada. Wang Kai não se abala. Apenas abre a porta para que eu saia primeiro e caminha um passo atrás de mim até o carro.
*****
Quando chegamos ao Maserati, ele se adianta e abre a porta do passageiro. Faz isso com um gesto calmo, seguro, sem qualquer hesitação. Parece o tipo de homem que não precisa falar muito para se impor. Me aproximo da porta, mas antes de me abaixar para entrar, observo como ele coloca a mão no teto do carro. Paro por um instante. É um movimento pequeno, um gesto sutil que a maioria não notaria — mas eu noto.
Assim que se certifica de que estou sentada e confortável, ele fecha a porta devagar, contorna o carro, senta-se no banco do motorista e verifica se estou com o cinto de segurança. Então, antes de dar partida, sua voz soa na penumbra do carro.
— Você pode encontrar uma almofadinha no porta-luvas.
Olho para ele sem entender.
— Pra quê?
Kai não desvia os olhos da frente quando responde:
— Pra não machucar o seu bebê.
Algo em mim se quebra. É como se, pela primeira vez desde que descobri a gravidez, alguém além de mim pensasse na minha filha. Não como um problema, não como um peso, não como uma consequência... mas como uma vida. Meus lábios tremem um pouco, e antes que eu possa evitar, as lágrimas começam a escorrer pelas minhas bochechas. Não é tristeza. Não é medo. É algo mais. Algo que não sei como nomear.
Wang Kai não diz nada. Apenas estende seu lenço de seda sem tirar os olhos da estrada. Não pergunta por que estou chorando, não tenta me consolar com palavras vazias. Apenas dirige em silêncio, enquanto a cidade passa lá fora, mergulhada nas luzes douradas dos prédios e no movimento da noite.
— Pra onde estamos indo? — pergunto, quando consigo me acalmar.
— Pra um lugar onde você possa descansar — responde ele sem rodeios.
Me viro para ele, estranhamente tranquila.
— Seu escritório?
Ele balança a cabeça negativamente.
— Vai me levar pra sua casa? — pergunto em tom de provocação.
Ele não responde de imediato. Apenas me lança um olhar de canto, com aquela intensidade típica dele, e continua dirigindo. A ideia deveria me alarmar. Mas não me alarma. Talvez porque eu esteja exausta. Talvez porque, depois de tanto tempo me sentindo sozinha, essa seja a primeira vez em que alguém realmente se importa comigo. Ou talvez porque Wang Kai é diferente. Não um herói. Não um salvador. Mas sim um homem que, de alguma forma, me faz sentir longe do perigo. E agora, isso é tudo o que eu preciso.
CAPÍTULO 24
O carro desliza suavemente pelas ruas iluminadas da cidade, mas minha mente continua presa no instante em que Hu Ge assinou os papéis sem pensar duas vezes. Na pressa de ir embora com a amante, ele nem sequer parou um segundo para questionar o que estava assinando. Será que sempre fui tão insignificante para ele? A pergunta ecoa na minha cabeça como um som que não consigo silenciar. Observo a cidade pela janela, as luzes dos prédios brilhando como estrelas cadentes na noite.
Minha mão repousa sobre a almofadinha que Kai me ofereceu para que o cinto de segurança não pressionasse meu ventre, não machucasse minha filha. Isso me comove novamente. Quando engravidei pela primeira vez, Ge e eu estávamos felizes, eufóricos, mas nunca pensamos em comprar proteção para o ventre. O homem ao meu lado, um advogado, um estranho, pensou nisso. Fecho os olhos por um momento, imaginando como será o rostinho dela, seus dedinhos, seu riso. Essa imagem me dá forças, me lembra por que estou fazendo tudo isso.
— Está com frio? — pergunta ele, com o olhar fixo na estrada.
Pisco algumas vezes, voltando ao presente. Me dou conta de que estou abraçada a mim mesma sem perceber, como se tentasse me proteger de algo invisível.
— Estou bem — respondo, embora não seja totalmente verdade.
Não é mentira, mas também não é a verdade completa. Estou cansada, emocionalmente exausta, mas também há uma sensação de alívio começando a se abrir caminho entre a névoa dos meus pensamentos.
O carro segue por uma avenida menos movimentada. Diferente da zona residencial onde, por enquanto, Ge e eu vivemos. Aqui, as ruas são mais largas, os prédios mais baixos, e há um silêncio que parece envolver tudo como um manto protetor.
— Não esperava que você morasse aqui — comento sem pensar, rompendo o silêncio que se instalou entre nós.
— Onde você imaginava que eu morava? — pergunta em tom tranquilo, com um leve toque de curiosidade.
Olho de lado para ele, mas sua expressão é neutra. Não há ironia em seu tom, apenas uma pergunta genuína. Desvio o olhar e dou de ombros. Em um apartamento no último andar de algum prédio de luxo, talvez. Algo frio, impessoal. Um lugar onde a solidão se disfarça de sucesso. Mas não. Quando Wang Kai vira à direita, o que surge diante de nós é uma casa.
Não uma cobertura. Não uma torre de vidro. Uma casa.
Os portões de aço se abrem assim que o carro se aproxima, e entramos numa propriedade de linhas limpas e elegantes. A arquitetura não busca ostentação, mas funcionalidade. Cada detalhe tem um propósito. A fachada de pedra clara e as janelas amplas me surpreendem. É um lar, não uma carcaça para alguém que só dorme onde trabalha.
— Chegamos — anuncia com um tom sereno ao desligar o motor.
Por algum motivo, meu coração bate mais forte quando o vejo contornar o carro para abrir minha porta. É um gesto pequeno, mas significativo. Hu Ge nunca fez isso. Nunca se deu o trabalho de garantir que eu estivesse confortável, de que me sentisse cuidada.
— Vem — diz, estendendo a mão para mim.
A brisa noturna acaricia minha pele quando saio. Ele fecha a porta com suavidade e me guia com um gesto. A cada passo que dou em direção à entrada, a sensação de estar em um lugar seguro se fortalece. Wang Kai abre a porta, deixando que a luz quente do interior me receba.
E então, tudo muda.
A casa não é o que eu esperava. Não há excessos, não há luxos desnecessários. A primeira coisa que noto é o cheiro de couro. A iluminação é suave, acolhedora. O piso de madeira escura contrasta com as paredes em tons neutros e móveis minimalistas, porém funcionais. Diferente da frieza da minha casa, onde cada objeto parecia estar ali apenas para aparentar uma vida perfeita, aqui tudo tem alma.
Deixo minha bolsa sobre a mesa de entrada e percorro o espaço com os olhos. Ao lado, uma estante com livros perfeitamente alinhados. Nada de títulos decorativos ou vazios. Livros de verdade, com páginas gastas de tanto serem lidas. Mais adiante, um sofá largo de cor cinza chumbo, com uma manta cuidadosamente dobrada sobre um dos braços. Uma lareira elétrica projeta um brilho suave, dando ao ambiente um ar quase íntimo.
É estranho, mas… eu gosto.
É o tipo de casa em que eu me imaginava morando quando era criança. Quando sonhava com um lar, não com uma gaiola dourada.
— Quer algo quente? — pergunta ele, enquanto deixa as chaves sobre a mesa.
Olho para ele, confusa.
— Algo quente?
— Um chá. Ou leite com mel. Algo que te ajude a relaxar.
Estou prestes a dizer que não, mas a verdade é que eu preciso.
— Chá — respondo, por fim.
Kai assente e segue em direção à cozinha com a mesma calma de sempre. Me surpreende o quanto estar aqui parece natural, como se essa cena já tivesse acontecido muitas vezes antes. Respiro fundo e observo o ambiente mais uma vez. A cada segundo, me sinto menos tensa, menos travada.
De repente, meus olhos pousam sobre um objeto que chama minha atenção. Sobre uma mesa de madeira escura, há uma fotografia emoldurada. Me aproximo com cautela. É uma imagem antiga. Um menino pequeno, de uns cinco anos, de pé ao lado de uma mulher de cabelos longos e expressão gentil. Há algo no olhar do menino que me parece familiar.
— Minha mãe.
A voz de Wang Kai me faz virar. Ele se aproxima com duas xícaras nas mãos, sua expressão serena, mas com um matiz diferente.
— Você se parece com ela — comento.
Kai coloca uma das xícaras sobre a mesa e observa a imagem com um leve aceno de cabeça.
— Ela morreu quando eu tinha oito anos.
Congelo. Não esperava por isso.
— Sinto muito...
Ele apenas dá de ombros.
— Aconteceu há muito tempo.
Não há dramatismo em seu tom. Não há vitimismo. Apenas uma verdade que ele aprendeu a carregar com dignidade. Sinto uma pontada no peito. Quanto da vida dele passou em silêncio, sem ser compartilhada com ninguém?
Pego a xícara de chá que ele me oferece. O calor da cerâmica aquece meus dedos.
— Obrigada.
Wang Kai se senta no sofá e me indica para fazer o mesmo. Me acomodo ao seu lado, mas com certa distância. Não porque esteja desconfortável, mas porque meu corpo ainda está aprendendo a relaxar. Assopro o chá e tomo um gole. O líquido quente desce pela garganta e algo dentro de mim começa a se soltar.
Wang Kai me observa em silêncio, como se soubesse que estou prestes a dizer algo. E então, eu digo.
— Por que me trouxe aqui?
Não sei por que faço essa pergunta. Talvez porque estou acostumada com homens que só ajudam quando têm algo a ganhar.
Kai coloca sua xícara sobre a mesa e me encara com seriedade.
— Porque você precisava de um lugar onde não precisasse fingir.
Sua resposta me deixa sem palavras. Porque ele tem razão. Minha vida inteira foi uma encenação. Com Hu Ge. Com meu pai. Com o mundo. E agora… não sei quem sou sem a máscara. Mas talvez, aqui, eu possa começar a descobrir.
Wang Kai se levanta do sofá, caminha até uma bolsa grande e tira um notebook. Depois volta para o meu lado e, enquanto o dispositivo liga, me encara com aquela intensidade que sempre parece enxergar além do que mostro.
— Vamos revisar os documentos que Hu Ge assinou — diz, sua voz calma, mas firme —. Preciso garantir que tudo esteja em ordem antes de apresentá-los.
Assinto, sentindo o peso da situação se instalar sobre meus ombros. Embora eu saiba que tomei a decisão certa, não consigo evitar o nó no estômago ao pensar em tudo o que está por vir.
— Quando você quer apresentar? — pergunta ele, enquanto espalha os papéis sobre a mesa.
— Amanhã — respondo sem hesitar —. Não quero esperar mais.
Wang Kai levanta o olhar, seus olhos escuros fixos nos meus.
— Entendo sua urgência, mas precisamos garantir que tudo esteja perfeito — diz com calma —. Um erro nesses documentos pode atrasar o processo.
— Eu tive paciência, Kai — respondo, sentindo a frustração emergir na minha voz —. Paciência desde que descobri que Ge me traía. Não aguento mais.
Ele assente, como se compreendesse exatamente o que sinto. Em seguida, se recosta no sofá, me observando com aquele olhar penetrante que sempre parece saber mais do que diz.
— Quais são seus planos depois do divórcio? — pergunta com curiosidade.
— Vou deixar minha assistente no comando da empresa — confesso, percebendo como as palavras saem com mais facilidade do que eu esperava —. Ela está comigo há anos e conhece cada detalhe do negócio. Confio nela.
Wang Kai assente, como se aprovasse minha decisão.
— E os bens em comum? — insiste.
— Todos os bens que tenho com Ge serão vendidos — respondo, com firmeza —. Os lucros serão divididos conforme acordado. Não quero nada que me prenda a ele.
Kai me observa em silêncio, como se estivesse esperando que eu continuasse.
— Vou sair do país por dois anos — confesso, sentindo o peso da decisão se instalar em mim —. Preciso de distância. Preciso que Ge refaça a vida dele para que não interfira na minha.
— E tem certeza de que ele vai te esquecer? — pergunta, com um tom que sugere que já sabe a resposta.
— Ele não vai — respondo com um sorriso triste —. Ge jamais vai me esquecer. Mas as intenções da amante logo virão à tona, e ele terá que assumir sua culpa se quiser continuar com a imagem de respeito que construiu com tanto esforço.
Wang Kai franze a testa, e pela primeira vez, noto um lampejo de raiva em seus olhos.
— O que essa vadia quer? — diz, com raiva.
Olho para ele, surpresa com a intensidade da reação. Não esperava que se referisse a ela dessa forma.
— Suponho que ela queira o título de senhora Hu, embora não me importe em entregá-lo — esclareço com calma —. Neste momento, só me importo com minha liberdade e com cuidar da minha filha.
Coloco a mão sobre o meu ventre, sentindo como o pequeno ser que cresce dentro de mim me dá forças. Wang Kai observa o gesto, e por um instante, seu olhar se suaviza.
— Lembre-se de que você não está sozinha — diz com uma sinceridade que me desconcerta —. Estou aqui, e não pretendo ir embora.
Suas palavras me tocam profundamente, mas não quero parar para entender o que ele realmente quer dizer. Em vez disso, apenas assinto e me concentro na tarefa que temos pela frente.
— Vou revisar todas as informações que você me deu — ele diz, mudando rapidamente de assunto —. Seria bom que você ficasse aqui por perto caso eu precise de ajuda.
— Sim — respondo, sem pensar em mais nada além de descansar para que eu e meu bebê possamos ficar em paz.