S1 Capítulo 2: O Primeiro Dia

Desde pequeno, eu sonhava com um mundo diferente. Um lugar onde todas as raças pudessem viver juntas, sem medo, sem rancor. Talvez fossem apenas devaneios de criança, mas eu acreditava nisso com todas as forças. E talvez fosse por isso que as outras crianças sempre riam de mim, me chamando de bobão.

Os anos passaram, e, aos dez anos, minha visão de mundo continuava a mesma. Eu não me encaixava muito bem nem no orfanato, nem na escola de preparação espiritual. Mas tudo mudou naquele dia.

Era para ser só mais um fim de tarde qualquer.

Voltava do campo de futebol, suado, com os tênis surrados chutando pedras pela calçada, enquanto assobiava a melodia de um velho desenho que gostava. A brisa trazia o cheiro da comida da cantina central da cidade, e por um instante, parecia que o mundo estava em paz.

Mas então, ouvi os gritos.

Gritos abafados, secos. Seguidos de gemidos.

Virei a esquina.

E vi.

Três crianças do meu orfanato, da minha idade, estavam encolhidas no chão diante de uma mulher de armadura de couro escuro, claramente uma mercenária que mandava naquela loja.

Por uma aposta tola, de roubar de uma loja de nobres... Eles estavam sofrendo as consequências.

Os olhos dela eram frios como aço. Havia prazer em cada movimento. As botas sujas de sangue já não distinguiam lama de carne. O rosto dele estava coberto de sangue, o nariz torto, e o que mais me chocou... foi o vazio no lado direito do rosto. Um olho. Tinha sido arrancado.

O menino por ser mais franzino, gemia, e de tanto apanhar, mesmo já tendo perdido um olho, se colocava à frente da menina, como um escudo humano.

— “Levanta, desgraça hoje você morre, escorria imunda.” — disse a mulher, com um sorriso distorcido. — “Vou arrancar o outro olho também.”

Ela puxou o garoto pelo colarinho e o ergueu no ar com uma só mão.

— “Acha que pode roubar da elite e sair impune, ratinho de esgoto?”

Ele só tremia, sem conseguir responder.

A menina atrás dele chorava. O terceiro garoto já estava desmaiado no canto, com o rosto completamente inchado.

— “Você devia agradecer por estar vivo. Se fosse na minha época, já estaria debaixo da terra.” — disse ela, girando uma espécie de cassetete elétrico na mão. — “Mas vamos ver se aprende agora...”

E então ela desferiu um golpe seco na barriga do garoto, que cuspiu sangue na hora.

— “Por favor... a culpa foi minha...” — soluçava a menina. — “Eles só queriam me proteger... Eu que fiz uma aposta tola! ”

A mulher riu.

— “Que bonito. Amizade entre vermes, mas é tarde demais pra se arrependerem”

Minha mente gritou para eu correr. Fugir. Me esconder. Que aquilo não era problema meu. Que eu era só mais um garoto fraco, sem elo, sem força... que não podia fazer nada.

Mas meu corpo se moveu sozinho.

Um dos meninos, mal conseguia se levantar, mas ainda assim... estendia o corpo sobre a amiga caída, tentando protegê-la.

Antes que percebesse, minhas mãos já tateavam o chão em busca de algo — qualquer coisa. E então... uma pedra. Pesada. Grosseira. E com ela, fiz o impensável.

Ela se preparava para mais um golpe — mirando agora na menina — quando uma pedra voou e quebrou a janela do estabelecimento ao lado.

CRASH!

O vidro se estilhaçou num estrondo. Os estilhaços voaram como facas de gelo no ar. A rua estagnou. Um silêncio momentâneo. Os olhares dos agressores se viraram instantaneamente pra mim.

A mercenária se virou na hora, os olhos ferozes procurando a origem do som.

E lá estava eu. Tonto. Com o coração martelando no peito. Sem saber o que tinha acabado de fazer.

"O que diabos eu tô fazendo?!" — pensei, com as mãos ainda trêmulas do arremesso.

Ela me viu.

A mercenária rosnou algo em outra língua e apontou para mim.

— "Você aí, pivete! Quer pagar de herói agora?! VEM CÁ! Pelo jeito tem mais um rato pra brincar?”

E veio na minha direção.

Eu não sabia, mas aquele instante… mudaria tudo.

Meu coração bateu tão forte que doeu.

Mas era tarde. O estrago já estava feito.

Os brutamontes ao lado dela vieram como sombras se aproximando. Mas enquanto isso, os três garotos que estavam no chão aproveitaram a distração.

— "CORRE!" — gritou Shida, segurando a amiga e puxando o outro garoto.

Eles fugiram aos tropeços, sumindo na viela.

Eu sorri, mesmo com medo.

— " Ao menos, Consegui..."

Foi quando o primeiro soco me atingiu.

Fui jogado no chão como uma boneca de pano. Senti o gosto de sangue na boca antes mesmo de gritar. Chutes. Pisões. Um deles riu quando estalou os dedos e quebrou os meus óculos ao meio.

A dor era insuportável.

Mas eu não chorei.

Porque, pela primeira vez na minha vida... eu fui útil.

Mesmo caído no chão, senti que alguma coisa dentro de mim havia despertado.

Não era poder.

Era coragem.

E isso... mudaria tudo...

Mas então — escuridão.

Um silêncio cortante.

E então, algo mudou.

Quando abri os olhos... já não eram meus. Meus olhos estavam diferentes azuis cristalinos, a íris tremia como se estrelas negras estivessem pulsando dentro delas, e um tomoio negro tivesse aparecido. Um calor percorreu minha espinha como energia viva.

Minha voz... não era minha.

— Hahaha... Isso é sério? — sussurrei baixo, mas ríspido. — Vocês três são realmente os “grandalhões” do bairro? Vocês são o quê...? Mercenários? Brucutus de aluguel? Que piada ridícula.

A mercenária, ainda com sangue nas botas, hesitou ao olhar nos meus olhos. Aquela criança caída no chão segundos antes... agora estava de pé. Ombros relaxados, mãos no bolso, um sorriso torto no rosto... e o olhar de quem julgava o mundo de cima.

— Mas o que...? — ela resmungou. — Como você ainda...?

Antes que terminasse, minha mão já estava na cara dela.

O impacto foi seco. A mulher foi arremessada cinco metros para trás, atravessando uma mesa de madeira velha.

Os dois brutamontes vieram logo em seguida, rugindo como touros. Mas eu já estava na frente deles. Num piscar de olhos.

— “Dois contra um?” — minha voz gotejava sarcasmo. — “Vocês devem estar desesperados pra manter o título de ‘covardes do mês’.”

Dei um giro no ar e acertei um chute no maxilar do primeiro, o fazendo rodopiar no ar e cair desmaiado. O outro tentou me agarrar, mas minhas mãos já estavam nos ombros dele.

— “Sabe o que é engraçado...?” — murmurei no ouvido do homem antes de lançar sua cabeça contra o chão com força brutal.

— “É que vocês... estão apanhando de um moleque de dez anos, que nem pode usar elo ainda, hahahaha.”

O chão rachou com o impacto.

E então... silêncio.

A fumaça se dissipou. Meus punhos ainda tremiam.

O sangue dos três pingava no chão.

E então...

Minha cabeça latejou. Meu corpo fraquejou.

— “Hnnngg... O que...?”

Caí de joelhos. As sombras ao redor se dissiparam. Os olhos voltaram ao normal.

Voltei a ser... eu.

Me arrastei até a parede, ofegante, sentindo as mãos trêmulas e a dor voltar com força total. Os ferimentos, os hematomas... tudo me alcançava agora.

— O que aconteceu, coff, coff... Que dor!

E então… apaguei de novo, mas ja estava feliz.

E Shida, mesmo com um dos olhos inutilizados, guiava os outros dois pelas ruas com dificuldade. Seu rosto estava inchado, mas ele não hesitava.

— “Mais um pouco… já dá pra ver o hospital! AGUENTA!”

Eles entraram correndo no saguão de emergência. O atendente, um jovem nervoso, arregalou os olhos ao ver o estado dos três. O sangue no uniforme de Shida era suficiente para fazer qualquer um congelar.

— “Meu Deus… ESPEREM AQUI!”

Ele correu para o fundo do hospital.

Segundos depois, retornou com um homem mais velho, de expressão severa e kimono simples: Kai Yurata, o responsável pelo orfanato.

Ao ver as crianças, seu rosto mudou por completo. Dor. Culpa. Raiva.

— “SHIDA…?! O QUE…? KOUEM! YUNA?!”

— “Foram... pegos por uma mulher de armadura… uma mercenária...” — murmurou Kouem.

— “Cadê o Naguio?” — perguntou Kai, percebendo a ausência.

Shida apontou para a rua com a mão trêmula.

— “Ele… ele salvou a gente. Mas acho que... ele ficou pra trás…”

Kai disparou rua abaixo com os enfermeiros.

E lá, caído entre os restos do beco, estava eu. Desacordado, coberto de sangue, mas vivo.

— “Levem ele AGORA!” — gritou Kai, a voz embargada.

Todos nós fomos levados para dentro, direto para os médicos de emergência. As macas deslizaram pelos corredores entre sirenes e gritos abafados.

Kai ficou parado à porta da sala, as mãos trêmulas.

Seus olhos encaravam o teto, como se orasse em silêncio.

— “Me desculpem...”

Horas depois – Sala dos médicos

Kai sentou ao lado de Shida, que agora usava um curativo onde antes havia um olho.

O garoto sorriu mesmo assim.

— “Não foi culpa sua, sensei.”

Kai abaixou a cabeça. Aquilo o destruía por dentro.

— “Vocês são minha responsabilidade... Eu devia ter…”

Shida o interrompeu com uma risada fraca:

— “Mas o Naguio... Ele salvou a gente. Do jeitinho dele.”

Kouem e Yuna assentiram.

Kai olhou para a cama onde eu descansava, e não conseguiu conter um sorriso tímido.

— “Esse moleque... Me perdoa por não ter sido seu amigo desde já, mas agora as coisas vão mudar”

Assentiu todos.

De noite a luz amarelada dos postes de luz, invadiam o nosso quarto silencioso, e assim abri os meus olhos. A dor ainda pulsava em todo o corpo, mas meu primeiro instinto foi olhar ao redor.

E eu os vi.

Shida, com o rosto enfaixado e um tapa-olho improvisado, sentado numa poltrona ao lado da cama. Yuna, tentando se ver num espelhinho pequeno enquanto ajustava algo nas sobrancelhas, e Kouem... com um mangá enorme no colo e um óculos torto no nariz.

— “Vocês... tão bem?” — murmurei , com a voz rouca.

Shida foi o primeiro a notar.

— “AH! Ele acordou! O sobrevivente!” — levantou com empolgação. — “Cara, você foi tipo... um herói feio e cambaleante, mas herói! O latino- men!”

— “Feio é tua avó, tampinha,” — respondi, com um sorriso fraco.

Yuna deu uma risadinha.

— “Meu nome é Yushina Kannerman, tenho 9 anos mas só os íntimos chamam de Yuna. E eu sou íntima desde já, viu? Porque se alguém apanha por mim, merece um selinho na bochecha!”

Essa folgada veio pra cima de mim, mas desvei.

— “AAAA Que dorrrr! Tá doida?!”

— “Brincadeirinha! Haha, você ficou vermelho!”

— " É claro que fiquei, to todo fudido".

Kouem ergueu os olhos do mangá, me encarando.

— “Para de gritar mané, sou Ganakouem Sonoua, tenho 11. Mas pode me chamar de Kouem... ou de ‘senpai da sabedoria’. Gosto de RPG, mangás, e... bom, minha única fraqueza é socializar.”

— “Ah, então cê é um nerd.” — comentei, com um tão sarcástico.

— “E você é um impulsivo burro com senso de justiça! Mas tamo junto agora.” — respondeu Kouem, empurrando os óculos no rosto.

Shida se intrometeu, orgulhoso.

— “Eu sou Shida Arumay, 10 anos zé ruela! Meu objetivo é ser o próximo comandante da humanidade, então tratem de lembrar desse nome, mortais!”

Yuna piscou.

— “Você com esse tapa-olho tá mais pra pirata do que pra comandante.”

— “Yuna! Respeita o futuro líder, poxa!”

Todos riram.

Naguio olhou ao redor com um sorriso cada vez mais sincero. Mesmo entre as dores e hematomas, sentia algo nascer ali. Uma conexão. Um laço.

— “Eu sou Naguio Kimizu... ou como o caolho aqui já decidiu: Kimi ou Naho.”

Shida levantou o dedo, dramático.

— “E eu escolho ‘Kimi’! Parece nome de protagonista de novela das 6!”

— “Eu prefiro Kimi, também” — disse Yuna, sorrindo. — “Parece fofo.”

— “Eu prefiro só ‘o doido que quebrou uma janela por a gente’.” — disse Kouem. — “Esse título é lendário.”

— “Hehe... vocês são bem estranhos.” — comentei, apoiando a cabeça no travesseiro.

Shida ergueu o punho.

— “Mas somos estranhos juntos! A partir de hoje, somos um time!”

— “Um time de quê? Dos Desajustados?” — zombou Yuna.

— “Dos Sobreviventes,” — respondeu Kouem, sério por um instante. — “Porque é isso que a gente é. E com esse doido aí —” apontou pra mim — “— acho que vamos longe.”

Eu fechei os olhos por um instante, com o meu coração aquecido. Depois de tanto tempo se sentindo só... eu tinha encontrado algo.

— “Então tá,” disse ele, abrindo um sorriso. — “Somos um time. Mas se algum de vocês roncar, eu peço outro quarto.”

— “Sem chances, Kimi,” disse Yuna, jogando uma almofada nele. — “A gente é grude agora.”

Nossas gargalhadas infantis ecoaram pelo hospital, leves como o vento.

Daquele dia em diante... eu nunca mais estive sozinho.

Na mesma noite, em outra ala do hospital.

A mulher de armadura e os dois brutamontes também haviam sido levados ao hospital.

Mas algo estranho aconteceu.

Eles desapareceram.

Ninguém viu nada. Ninguém ouviu nada. Os registros... sumiram. Nem os próprios médicos sabiam dizer o que houve.

Alguns falavam de “homens de preto” que teriam vindo antes da meia-noite. Outros juravam ter ouvido passos pesados e vozes metálicas antes das câmeras desligarem misteriosamente.

A única certeza era uma:

Eles sumiram.

Os anos se passaram. Nós quatro enfrentamos várias encrencas juntos — desde brigas bobas com outros órfãos até explorações proibidas nos telhados do orfanato só pra ver as estrelas. Mas à medida que cresciam, algo dentro de mim crescia também... uma inquietação.

Shida, com 16, já era conhecido por sua força bruta e liderança natural. Mesmo com um olho só, era o primeiro a dominar técnicas de combate avançadas e controlar seu elo com o elemento terra. Ele dizia que não era só força, mas sim “visão de futuro” — e sempre ria disso, como se fosse um trocadilho interno.

Kouem, com 17, se tornara um verdadeiro gênio nerd. Controlava seu elo com o ar com precisão matemática, e seus cálculos táticos eram usados até pelos instrutores da academia. Vivia grudado nos manuais de estratégia e animes antigos — e mesmo assim, sempre tirava um tempo pra me explicar as coisas com paciência.

Yuna, agora com 15, era a mais empolgada do grupo. Seu elo tinha despertado com brilho prata e uma aura reluzente de energia espiritual. Controlava pequenas ilusões e vibrações sonoras, o que usava para treinar danças ou pregar peças em todo mundo — inclusive nos professores. Adorava maquiagem, colecionava batons e dizia que um dia ia se tornar a primeira comandante com estilo de idol.

E eu?

Eu continuava igual.

Nada de poderes. Nada de elo.

Ainda era Naguio Kimizu, 16 anos, o garoto que treinava sozinho de madrugada, socando árvores e imitando golpes de heróis dos velhos quadrinhos que Kai guardava na biblioteca.

— “Se continuar assim, vai acabar virando um madeireiro, e não um guerreiro,” — dizia Kouem rindo, ajustando os óculos enquanto ajudava Yuna com as lições de magia.

Shida me batia nas costas como se eu fosse de aço.

— “Você é o meu escudo favorito, Kimi. Fica tranquilo que sua hora vai chegar... E se não chegar, eu te empresto o meu poder!” — dizia ele, inflando o peito.

Yuna, no entanto, me olhava de um jeito diferente. Um pouco triste. Um pouco preocupada.

— “Kimi... Não precisa se forçar tanto, tá? A gente gosta de você por quem você é. Não é o elo que vai mudar isso.”

— “Talvez não mude pra vocês,” — respondi, olhando o céu à noite, os punhos ainda marcados pelos treinos — “...mas muda pra todo mundo lá fora.”

Mesmo com todo o carinho deles, eu ainda era uma chacota na cidade. O único garoto da geração atual sem habilidades. O único chamado de Ayokinyn em voz baixa nos corredores.

Mas mesmo assim… Shida, Kouem e Yuna estavam sempre ao meu lado.

E era isso que me impedia de desabar. Porque mesmo sem poderes... eu ainda era Naguio Kimizu.

E, no fundo, eu sabia... meu momento chegaria.

Nem que fosse no soco.

Yuna foi quem teve a ideia. Depois de mais um dia cansativo e sem resultados na escola comum, Eu voltei cabisbaixo para o orfanato, até que ela me abordou já chutando a porta do meu quarto, com energia demais.

— “Kimi, você vai sair dessa escolinha de humanos normais.”

— “Hã?”

Ela cruzou os braços, decidida.

— “Você vai tentar a TOCA 1 Monsutā Fakutorī. É lá que a gente estuda. Lá os elos se manifestam com muito mais frequência... e quem sabe, até você destrava o seu.”

— “Mas... eu nem fui convocado. Essa escola é pra elite, Yuna. Eu sou só um...”

— “Se você repetir essa frase mais uma vez, eu juro que enfio essa sandália sagrada da minha avó na sua boca.”

Kouem apareceu logo atrás, com um livro de regras da TOCA 1 embaixo do braço.

— “Tecnicamente, não tem nada que impeça ele de tentar. Só precisa da autorização do diretor... e de um bom motivo.”

Shida completou, ajeitando o tapa-olho com um sorriso confiante:

— “E eu conheço um bom motivo. O nome dele é Naguio Kimizu. Vamos dar um jeito de meter você lá dentro, nem que seja na marra.”

— “Na marra?” — perguntou Kimi, sem acreditar.

Yuna sorriu.

— “Exatamente. Se você não tem elo ainda... então a gente vai até o lugar onde todos explodem de tanto tentar. E se você não conseguir... bem, pelo menos vai cair tentando com estilo.”

Pela primeira vez, senti que talvez, só talvez... tivesse uma chance.

— “TOCA 1... Aqui vou eu.”

O diretor não queria me aceitar. Nem olhou duas vezes pro meu histórico escolar. Mas como Yuna e Kouem estavam juntos comigo, e depois de muita insistência dos meus amigos — principalmente da Yuna, que quase bateu nele — ele reconsiderou. Não por pena, mas por causa do meu sobrenome.

— “Olha, eu sou diretor, não babá de fracassado sem elo!” — disse Berŭn Kranivita, com os braços cruzados e uma sobrancelha arqueada de tédio.

— “Fracassado é você, seu careca de bigode torto!” — Yuna gritou, dando um passo à frente e empurrando a mesa dele com as duas mãos. — “Se não aceitar o Naguio, eu vou jogar glitter místico no seu banheiro toda semana até sua alma brilhar de raiva!”

Berŭn arregalou os olhos.

— “Garota, você perdeu a noção?!”

Kouem, encostado na parede ao lado, bufou e tirou o celular do bolso.

— “E se, por acaso, a imprensa descobrir aquele pequeno escândalo seu do último torneio? Você sabe... a aposta ilegal de mana negra com os alunos da Classe Ômega?”

O diretor empalideceu.

— “Você não teria coragem...”

— “Sou um nerd, não um covarde. Eu tenho os prints e as datas salvas no meu servidor pessoal com backup em NimboTech. Se precisar, te dou um tutorial de como abrir o e-mail junto com o pacote completo de denúncias.”

Yuna apoiou o cotovelo no ombro de Kouem e sorriu.

— “Ai que orgulho desse meu hacker!”

Berŭn suspirou, derrotado, massageando as têmporas.

— “Tsc... tá bom, tá bom! Mas não é por causa de vocês, nem por ameaça... É esse sobrenome. Kimizu.”

Ele olhou para o papel com meu nome completo.

— “Vale a pena tentar... vai que dá certo. Essa família tem uma certa fama...”

Não explicou mais nada. Apenas assinou a autorização.

Yuna virou-se para mim com um sorriso largo.

— “Viu? Nunca duvide do poder da beleza, da ameaça e da chantagem bem-feita!”

— “Combinado com chantagem digital!” — completou Kouem, ajustando os óculos com orgulho.

E eu? Eu só consegui rir. Era isso. Eu tinha amigos de verdade. Que ameaçavam diretores e me defendiam como se fossem irmãos.

E naquele instante... eu soube que minha jornada realmente estava começando.

— "Essa família tem uma certa fama... E às vezes, o sangue carrega mais do que parece."

Eu não entendi o que ele quis dizer na hora. Só senti um frio na barriga. Mas uma coisa era certa: meu sobrenome abriu uma porta.

E eu estava prestes a atravessá-la.

Meu primeiro dia foi um misto de empolgação e frustração. A escola Monsutā Fakutorī era enorme, cheia de corredores que pareciam labirintos, e alunos com uniformes estilosos e emblemas cintilantes no peito, como se já fossem heróis... Cada emblema tinha a cor que o elo representava, e o meu ainda não tinha sido feito.

Logo na entrada, o presidente da minha turma me esperava.

Yaori Katagurin.

Alto, com um sorriso confiante demais para alguém daquela idade, e um olhar afiado como quem sempre sabia o que vinha depois. O cabelo ruivo jogado de lado, a jaqueta meio aberta... e um broche dourado com o símbolo de uma estrela cruzada — algo que mais tarde descobriria ser uma honraria da família dele, e sua patende de elo sendo ouro.

— "Você que é o novo Ayokinyn, né? Digo, o novo aluno?" — disse ele, estendendo a mão com um ar sarcástico. — "Yaori Katagurin, prazer. Irmão mais novo da Akemi Hitomi Katagurin — a Idol número 1 do Japão, caso não saiba."

Yaori Katagurin cruzou os braços enquanto me observava subir no palco da frente da sala.

— "Esse aqui é o Naguio Kimizu." — disse ele com o tom arrastado, como quem apresenta um palhaço. — "Sem elo, sem elemento, sem fama... mas veio com muita fé. Palmas, por favor."

A turma riu.

— "Você não tem nem elo bronze?!" — zombou um aluno lá do fundo. — "Tá na turma errada, fracassado!"

Me mantive quieto, com o olhar fixo. Não porque eu aceitava aquilo. Mas porque eu já estava acostumado. Mesmo assim… doeu.

— "Kimizu..." — Yaori falou meu nome como quem mastiga alguma coisa amarga. — "Esse sobrenome... já ouvi antes. Mas você não tem nada de especial, né?"

— "E você acha que ser irmão de uma idol te torna especial?" — respondi, firme, mas sem agressividade.

O silêncio caiu por um segundo.

Yaori arqueou a sobrancelha.

— "O que você disse?"

— "Nada demais."

Ele desceu dois degraus da frente da sala. Os outros alunos seguravam o fôlego.

— "Você tá me zoando, é isso, Ayokinynzinho? Tá achando que tem moral pra me encarar?"

— "Só tô respondendo no mesmo tom que me falou. Se não aguenta, não provoca."

— "Repete." — Yaori já estava bem perto agora, e parte do corpo dele se envolvia em uma aura leve, um prenúncio do elo prata que ele possuía.

Mas antes que ele pudesse dar mais um passo, eu me virei, rápido.

Treinamento corporal.

Reflexo puro.

Apertei o punho e parei o golpe dele no ar, com uma das mãos.

O choque da palma dele contra a minha ressoou como um estalo seco.

A sala inteira silenciou.

Yaori arregalou os olhos ao sentir a firmeza do meu braço.

— "Mas que...?!"

Eu segurei o pulso dele por dois segundos. Depois soltei.

— "Eu não tenho poder nenhum. Mas treinei todos os dias da minha vida, enquanto você provavelmente fazia pose ao lado da sua irmã em programa de auditório."

— "Você se acha..."

— "Não. Eu só me conheço."

O professor ainda não tinha chegado, e os alunos começaram a murmurar.

— "Caramba, ele segurou o Yaori com uma mão só!"

— "Esse cara... é forte mesmo sem elo?! Que loucura..."

Yaori se afastou, bufando, mas sem mais argumentos. Ele voltou ao lugar dele, irritado. Mas havia um brilho nos olhos — um misto de raiva e... respeito relutante.

Eu sentei no fundo da sala, sem dizer mais nada.

Naquele instante, talvez pela primeira vez... alguém como eu deixou de ser invisível.

Tentei me enturmar um pouco depois, mas logo percebi que eu não estava à altura dos outros. Quase todos ali já haviam despertado seus elos com notas altas — prata, ouro, até esmeralda. Alguns tinham domínio parcial de seus elos. Era como se eu estivesse no meio de jovens prodigios... e eu era só o figurante.

Mas não dava pra esconder que ali, naquele mundo de lendas em formação, eu era só um nome esquisito e um sonho grande demais.

O nome Kimizu ecoava no fundo da cabeça de alguns, como um sussurro esquecido. Algo antigo, quase apagado. Mas mesmo sem saber o porquê... tinha gente que me olhava diferente.

Como se esperassem que algo acontecesse.

Como se estivessem com medo de que, no fim, eu não fosse tão anormal assim.

Mas então a professora entrou na sala.

Fomos surpreendidos com uma professora substituta. Ela entrou na sala com uma presença tão serena quanto firme. Seus cabelos eram prateados, mas o rosto jovial. Usava um vestido cerimonial com símbolos de dragões bordados nos ombros e olhos que pareciam carregar o tempo em si.

— Bom dia, classe. Eu sou a professora Maiden Velmira, substituta temporária de História Global e Evolução Espiritual, e Geopolitica. Hoje vamos falar sobre... o Elo, e a historia da humanidade.

As vozes cessaram.

Ela ergueu a mão, e com um gesto simples, o teto da sala se abriu em ilusão, revelando constelações e folhas luminosas flutuando como orbes.

— O elo é a centelha espiritual concedida a cada criança humana a partir dos seis anos. Ele se manifesta como uma folha brilhante — visível apenas para quem o recebe — flutuando diante da criança. Nela, a própria alma escreve seu nome com o dedo. E é nesse instante que o destino é selado.

Ela estalou os dedos. Várias folhas etéreas apareceram, com diferentes brilhos.

— O brilho da folha define a potência natural da sua conexão: Bronze, Prata, Ouro, Diamante, Esmeralda e Rubi, e o mais forte e no topo de todos... está o Elo Negro. — Sua voz ganhou um peso solene.

— Agora, cuidado: um elo de Bronze pode até superar um Rubi com esforço e dedicação. Mas é extremamente raro... Já no caso de um poder do talento latente Elo Negro, carrega o potencial destrutivo de eras... Algo impossivel de se superar e quase divino, apenas um homem o alcançou até hoje... O humano mais forte da historia conhecida, e heroi do mundo o selador de almas, e poderes Malfrid Agamoto... Mas não posso deixar de mencionar o segundo, quase tendo conseguido esse feito, Michael Nostradamus o profeta da morte.

Eu abaixei meu rosto com admiração, quieto em meu lugar. Suas palavras eram como sabedoria pura para mim. Então ela continuou.

— E há... aqueles que não possuem elo algum. Pessoas que, mesmo com o passar do tempo, jamais despertam a folha. Esses são chamados de...

Ela parou. Fez questão de olhar para toda a turma.

— Gatos negros! Os Ayokinyn.

O nome caiu como uma pedra. Alguns alunos murmuraram, outros riram.

— Considerados por muitos como fracassados, imprestáveis... Uma vergonha social. Embora raros, eles existem. E dizem que alguns carregam contratos ocultos ainda não reconhecidos pelo Conselho de medição do Elo... talvez mais antigos até que os dragões. Mas... são apenas lendas, certo?

Kimi fechou as mãos debaixo da carteira. Sentiu os olhares. Mas permaneceu calado.

A professora percebeu... e suspirou. Então mudou o tom.

— Bem, não vamos perder tempo com isso. Agora... permitam-me mostrar a história que nos trouxe até aqui.

Ela ergueu as mãos, e o chão da sala se transformou numa planície viva — uma ilusão como nenhuma outra. Torres em chamas, dragões nos céus, cavaleiros caindo... Era o mundo a 2000 mil anos atrás.

— Antes da era da paz, antes do calendário atual, vivemos na era das trevas. A humanidade estava à beira da extinção.

O cenário mudava conforme ela narrava.

— Seres desconhecidos desceram dos céus: Elfos Dourados e Negros, Lepreshwans, e raças que até hoje não conseguimos catalogar... Mas para os combater fomos abençõados pelo criador, e ganhamos o elo.... Mas mesmo com isso, o mundo caiu em desordem. E então... dois heróis surgiram.

Dois vultos brilhantes apareceram na simulação.

— Malfrid Agamoto, o portador do primeiro Elo Divino humano. E Miguearu All Ber One, o Arcanjo da justiça dos dragões, o proprio conceito disso em poder, e Juntos, eles reuniram os últimos sobreviventes da Terra — Os levando até o unico lugar que ainda não havia caido, o Japão e a Ilha de Jeju, na antiga Coreia do sul.

A imagem de apenas milhares sendo transportados por dragões iluminava o teto da sala... E podia se ver que era nitido apenas 3 mil pessoas por nação, escaparam do massacre global.

— Quando os antigos governantes se recusaram a receber os refugiados, Miguearu se viu forçado a tomar o controle. Ele executou os líderes e colocou no poder a família Kysai, jurando mais uma vez, proteger a humanidade até seu último suspiro.

Uma estrela caiu no fundo da ilusão.

— E então, no ano 2120... ele desapareceu, junto dos dragões um tempo depois.

A sala ficou em silêncio.

— Desde então, começamos a contar os anos do zero e usamos a tecnologia daquela era, e a evoluimos para o uso do elo com um Upgrade. Hoje, estamos no ano 2016 da Nova Era. Mas... os sinais de uma nova guerra estão surgindo. Os eremitas já tiveram visões. E todos eles dizem o mesmo:

Ela olhou para o teto da sala, que agora mostrava o céu se abrindo como na profecia.

— Quando tudo estiver prestes a ruir... Avé Miguearu retornará.

Apos três horas de aula,a ilusão se desfez lentamente. A professora voltou ao centro da sala e cruzou os braços.

— Esta aula termina aqui. E que a história... prepare vocês para o que está por vir... Dispensados.

Em silencio, segui para a aula do professor Kitano.

Em silêncio, segui para a aula do professor Kitano.

A aula prática era ao ar livre, sob a luz difusa do sol da tarde, com os alunos formando fileiras organizadas no ginásio externo. O professor Kitano, um homem baixo, de terno escuro e óculos redondos, falava com tom rígido, mas entusiasmado:

— "Vamos lá, jovens! A tarefa de hoje é simples: manipulação básica de moléculas! Quero que formem uma pequena bala de água a partir do ar! Quem não conseguir isso... talvez esteja no lugar errado."

A maioria dos alunos riu. Eu me posicionei, respirei fundo e estendi a palma da mão como os outros faziam. Concentração. Imaginação. Foco.

Nada.

De novo. Nada.

Tentava puxar a umidade do ar, como o professor ensinou... mas era como tentar agarrar vento.

Logo os sussurros começaram.

— "Ei, olha lá o novato…" — "Nem uma gota… coitado." — "Será que ele é um Ayokinyn…?"

O professor franziu o cenho.

— "Kimizu, né? Você ao menos estudou o básico antes de vir pra cá?"

A turma caiu na gargalhada.

Yaori Katagurin, o presidente da classe, cruzou os braços com um sorrisinho arrogante.

— "Não é culpa dele, né? Dizem que ele entrou por influência do sobrenome. Típico de fracassado com nome bonito."

Meus punhos cerraram.

Kitano balançou a cabeça.

— "Muito bem. Quem não conseguiu, pode ir embora. Temos que avançar com quem tem potencial."

Meu rosto queimava de vergonha.

Sem dizer uma palavra, virei e saí correndo.

Atrás de mim, ouvia os gritos abafados dos meus amigos.

— "Kimi, espera!" — gritou Shida. — "Cara, volta aqui!" — veio a voz de Yuna. — "Aguenta! Preciso... de uma pausa!" — ofegou Kouem, que parou com a mão nos joelhos e tossiu — "Por que a gente corre mesmo? Existe teletransporte..."

Mas eu não parei.

Corri até o único lugar onde minha mente conseguia respirar.

O velho parque de Noraje. Árvores secas, folhas no chão, o velho banco enferrujado. Um lugar esquecido pelo tempo, como eu me sentia.

Kai Yurata, o responsável pelo orfanato, varria os degraus da entrada. Me viu chegando, ofegante e cabisbaixo.

— "Naguio... Aula já acabou?"

Me joguei no chão de terra ao pé de uma árvore. O coração parecia prestes a explodir.

— "Eu... sou um fracasso, Kai. Nem uma gota... Eu sou um Ayokinyn... Um sem-elo... Um lixo."

Ele parou de varrer, se aproximou e se agachou ao meu lado. Os olhos calmos como sempre.

— "Sabe o que eu penso de tudo isso?"

— "Que eu devia desistir..."

Ele riu.

— "Que você devia levantar."

— "Por quê?!" — gritei, o punho batendo no chão — "Eu sou o único sem poder! Todos tem elo, até gente burra conseguiu, menos eu!"

Kai colocou uma mão firme no meu ombro.

— "Se alguém te machucar, dê as costas e continue andando, Naguio. Hoje essa pessoa pode estar por cima e você por baixo… mas o futuro é como o horizonte. Ele sempre muda. O céu pode estar escuro agora, mas ao amanhecer, tudo renasce. Isso é só uma fase. E todo mundo passa por isso, mesmo que de formas diferentes."

— "Mas... e se o amanhecer nunca vier pra mim?"

— "Então crie o seu próprio sol."

Eu fiquei em silêncio.

E foi aí que meus amigos chegaram.

— "AHA! Te encontrei!" — gritou Yuna, sem perder tempo, e pá! deu um cascudo no topo da minha cabeça — "IDIOTA! Acha que pode fugir assim?! A gente te procura feito louco e você se esconde aqui igual um NPC de fundo?!"

— "Au! Calma, eu sou ferido emocionalmente..." — murmurei, massageando a cabeça.

Kouem, mesmo cansado, se aproximou rindo.

— "Cara... o que foi isso? Você correu igual um protagonista de anime. Tô quase tossindo um pulmão aqui."

— "Talvez seja isso..." — disse Shida, se jogando na grama — "Você é o protagonista. Só que ainda não descobriu os poderes... Eu já perdi um olho, lembra? E tô aqui, firme."

Yuna cruzou os braços, ainda emburrada.

— "Você tem amigos, sabia? Você pode não ter um elo... mas tem a gente."

— "Isso aí!" — Shida apontou para si — "Shida Arumay! Futuro comandante! Mesmo com um olho só, vou te proteger!"

— "Ganakouem Sonoua!" — levantou o nerd, limpando os óculos — "Especialista em RPGs, animes e hacks de computador. Sou o cérebro do grupo."

— "Yushina Kannerman! Mas só me chama de Yuna!" — sorriu ela, puxando uma nécessaire de maquiagem do bolso — "Maquiadora não-oficial, futura estilista, e especialista em deixar você apresentável."

Todos me olharam.

— "E você é...?"

Sorri.

— "Naguio Kimizu... Ou como dizem... o Eremita Negro."

— "Uhhh, nome estiloso!" — comentou Kouem — "Mas ainda sou mais fã de outra obra."

— "Kimi, então." — disse Shida — "Vamos te ajudar, irmão. E se alguém rir de novo, eu meto a espada na cara!"

— "Shida... você não pode andar com espada ainda..."

— "Shhhh, detalhes."

Olhei pra eles. Todos ali comigo, apesar de tudo. E mesmo sem ter despertado o elo, percebi...

Eu tinha tudo que mais importava.

Uma família.

Faltava algo, sim. Sempre faltou.

Mas por enquanto... eu não estava sozinho.

A partir desse dia, minha lenda começaria.

Eu era Naguio Kimizu. O Eremita Negro.

— "Eu viverei minha vida ao máximo! E os outros que se explodam!"

Continua...