O vento soprou mais forte naquela manhã, carregando consigo a brisa gélida de um fenômeno impossível.
Um pescador de meia-idade, coberto com peles simples, parou à beira do rio congelado que antes lhe dava sustento.
Seus olhos se arregalaram ao ver a paisagem branca diante de si.
— O que... que maldição é essa...? — murmurou, com os lábios já começando a rachar de frio.
Era a época de estocar mantimentos. Mas agora... como poderia alimentar seus filhos? Os peixes estavam congelados sob o gelo espesso.
A floresta, que antes servia de abrigo e fonte de caça, agora era um cemitério branco.
Sem escolha, decidiu ir até a cidade pedir ajuda.
No caminho, cruzou a trilha do antigo templo da floresta do dragão, bem no centro da nevasca recém-formada.
Foi ali que os viu: um homem de paletó cinza e cabelos arrumados, e uma jovem no chão olhando algo a sua frente. A cena o gelou por dentro mais do que o próprio vento.
— Ei! — gritou com a voz trêmula. — É perigoso ficar aqui! Esse inverno repentino pode matar até os pássaros invernais costeiros! Sugiro que vão à cidade o mais rápido possí—
Não terminou a frase.
Uma rajada de ar congelante atravessou seu corpo como um espectro. O som seco de gelo se formando em seus pulmões ecoou antes de seu corpo endurecer completamente, transformando-o em uma estátua quebradiça, que tombou na neve e se estilhaçou.
Seus olhos apagaram com uma última imagem: a de seus filhos, esperando-o em casa... com fome.
E agora, condenados à morte pela ausência do pai.
Mosony suspirou, tirando o lenço do bolso para limpar uma pequena mancha de neve de seu ombro.
— Homem sortudo só pode... passar por aqui bem na hora desse infortúnio? — ironizou com um sorriso de escárnio, antes de olhar diretamente para Yuna.
— Que descanse em paz... Porque você, Yuna... — ele se aproximou lentamente. — Você é minha. Por dois longos minutos.
O corpo do pescador jazia em pedaços de gelo espalhados como se nunca tivesse sido um ser humano com sonhos, uma casa... e filhos.
Yuna assistiu à cena horrorizada, o ar lhe faltando nos pulmões, como se a morte tivesse passado por ela também.
— Você... você o matou... — murmurou, sem conseguir desviar os olhos.
Mosony apenas riu. Uma gargalhada seca, debochada, que ecoou entre os pinheiros congelados.
— Matá-lo? Ora, ele que se pôs no caminho da tempestade. — Ele girou o pulso, como se limpasse algo invisível. — A natureza não perdoa os fracos, minha querida.
Yuna rangeu os dentes, o peito apertado como se algo o estivesse esmagando por dentro.
— Ele era so uma pessoa normal, que talvez tivesse uma família! — gritou. — Você acha isso engraçado?! Isso é só um jogo pra você!?
— Jogo? — Mosony arqueou uma sobrancelha, ainda sorrindo. — Não, isso é a vida real. E nela, só os mais fortes decidem o destino dos outros. E agora... só falta você.
Ela cambaleou alguns passos para trás, até parar diante da figura imóvel de Kimi, congelado como uma escultura.
— Kimi...? — sussurrou.
Ela se aproximou com cautela, os olhos marejando. Tocou o gelo frio com os dedos trêmulos. Nenhuma resposta. Nenhuma reação.
— Por favor... fala alguma coisa... você prometeu que ia me tirar daqui... — Soluçava. — Você disse que tudo ia ficar bem...
Yuna se ajoelhou e abraçou o corpo congelado, encostando a testa contra seu peito de gelo. E mesmo sem conseguir sentir calor, ela chorou.
Mosony cruzou os braços, rindo outra vez, mas agora com certo desprezo.
— Patético. Até nisso ele falhou. Um caçador fracassado tentando bancar o herói. Vai terminar igual aquele pescador.
Yuna se virou, os olhos em chamas, mesmo com as lágrimas escorrendo.
— Eu não vou deixar você sair impune... Você matou meu amigo!
Mosony fez uma careta como se estivesse entediado, já virando de costas.
— Já deu pra mim. Só queria um pouco de diversão. Mas antes de ir pra casa... vou me livrar de você.
Yuna se levantou, os punhos cerrados, mesmo tremendo.
— Se é diversão que você quer... então me enfrenta. Me encara! — ela gritou, com a voz embargada, mas firme.
Mosony parou. Por um instante, parecia considerar a proposta, até virar o rosto por cima do ombro e encará-la com desdém.
— Tsc... Não vale a pena — disse, balançando a cabeça. — Você tá aí, chorando por um cadáver congelado, não por mim.
Ele se aproximou devagar do corpo de Naguio, a neve estalando sob seus passos.
— A verdade é que nem quando você me olhou, me viu de verdade.
Yuna não respondeu, apenas olhou firme, as lágrimas congelando no rosto.
Mosony parou diante do gelo e viu Kimi, agora completamente coberto por cristais brancos.
— É por isso que você não me serve. Gente assim é imprestável... fraca demais pra ser moldada.
Ele deu um suspiro.
— Mas esse aqui... — disse, encarando o rosto de Naguio — esse me diverte. Mesmo morto.
Ele deu um pequeno sorriso. Um sorriso doentio.
— Que ironia... no fim, ele foi mais interessante que você. Não pela força, mas pela teimosia. Vou guardar isso. Como lembrança.
Yuna caiu de joelhos. A neve a envolvia como um manto de luto. O corpo de Naguio ainda parado à frente. Sem pulsação, sem calor, sem esperança. Seu coração parecia ecoar apenas dentro dela.
"Por que...? Por que isso teve que acontecer assim? Ele só queria me proteger..."
Ela se aproximou do gelo, tocando o rosto dele. Frio como a morte.
"Nem um sinal... nem um som. Eu perdi..."
Por dentro, Yuna se fragmentava. O trauma de tudo a paralisava. As palavras, os gritos, a razão… tudo se apagava como uma vela ao vento.
Mosony, por outro lado, observava a cena com olhos vazios.
"Olha só... o herói morre e a donzela quebra. Que previsível. É sempre assim. Um espetáculo patético."
Ele caminhou devagar até ela e, com uma mão fria, a agarrou pelo pescoço, erguendo-a no ar como se fosse apenas uma boneca de pano.
Yuna se debatia, os pés já fora do chão.
— Socorro... alguém... me ajuda... ahah! — ela tentou gritar, mas o ar não vinha.
— Por favor... alguém...? — lágrimas e sangue escorriam de sua boca.
— SOCORRO!!! — um último berro falhado.
E então começou a cuspir sangue, os olhos virando, sufocando.
Mosony a observava morrer como quem observa uma fogueira apagar.
— Pode gritar à vontade, ninguém vai te escutar! Vadia... Hahahahaha... morra!!!
"O que é uma vida, afinal?", pensava o inspetor.
"Um corpo que grita, sangra e depois se apaga. Um brinquedo com data de validade. A vida é frágil. Passageira. Inútil."
Mas então — um som agudo cortou o ar.
TCHAK!
Uma flecha se cravou no braço de Mosony. A força o fez soltar Yuna por reflexo, que caiu no chão como um saco de ossos, arfando.
— O que...?!
Ele se virou com raiva.
E ali, nas árvores, duas pequenas figuras tremiam de frio e medo… os filhos do pescador.
Com um velho arco em mãos, o mais velho gritava:
— "Foi você... foi você que matou o nosso pai?!" — gritou o garoto, a voz embargada pela raiva e pelo medo.
Mosony parou por um instante. Seus olhos se estreitaram, surpresos. Depois, ele riu.
Um riso gelado. Cruel.
— "Ah... então ele era seu pai?" — ele comentou, como se fosse uma piada interna. — "Sim. Fui eu. E daí?"
A garota, tremendo dos pés à cabeça, deu um passo à frente, com as mãos cerradas.
— "Seu desgraçado!"
Mosony apenas sorriu, puxando a flecha cravada em seu braço como se fosse um espinho.
— "E o que isso importa? Vai me matar agora? Vai vingar ele? Como se tivesse forças pra isso..."
Ele avançou, lentamente.
— "Vocês não sabem o que é dor de verdade…" — sua voz agora era um sussurro macabro. — "Mas vão aprender. Vão aprender agora."
Yuna, ao chão, olhou para as crianças.
"Eles... vieram me ajudar... mesmo depois de tudo."
— Corram! — ela tentou gritar, com a voz quase sumida. — Saiam daqui!
As crianças hesitaram.
O frio crescia.
O gelo avançava.
Mas algo dentro daquela floresta ainda não havia se rendido...
Antes que lançassem a flecha seguinte, Yuna percebeu
Mas foi rápido demais.
Viu os olhos do menino mais velho se arregalarem. O menor apenas gritava, puxando a irmã desesperada para trás.
Mosony já se virava, levantando a mão para disparar outra rajada.
Aquela energia congelante, cruel, assassina.
Sem pensar, Yuna pulou na frente dos dois.
— PAREM!!
E então...
O mundo congelou.
Literalmente.
As partículas de gelo suspensas no ar.
A neve pausada no meio da queda.
Os pássaros paralisados como quadros celestiais.
E Yuna?
Ficou imóvel, os braços abertos, protegendo as crianças com o próprio corpo.
O tempo... havia parado.
Eu... vi meu próprio corpo.
Congelado. Inerte. Um monumento ao fracasso.
Como se meu coração tivesse sido arrancado junto com a minha consciência.
Mas algo estava estranho.
O mundo estava em silêncio.
Sem vento. Sem dor.
Foi quando ouvi aquela voz.
Um sussurro antigo...
Familiar.
E sombrio.
— Você falhou de novo... Mas é por isso que eu estou aqui. Ela não agiu e a gente tá morto, hahaha... irônico, não acha, Naguio?
Me virei.
E então... o mundo se incendiou em chamas negras.
Um redemoinho envolveu o espaço ao meu redor, rasgando a realidade como papel molhado.
E das sombras... surgiram olhos.
Olhos brilhantes, azuis em tons cristalinos.
Os mesmos olhos que foram refletidos contra Mosony, e meus adversários até hoje.
Mas nunca... tão frios.
Um par de asas de fogo negro se abriu por trás dele, devagar.
Chamas sombrias serpenteavam seu corpo, envolvendo-o como uma entidade divina caída.
Acima da cabeça, uma auréola negra girava lentamente, formada por runas que pareciam derreter o próprio tempo.
E ele finalmente deu um passo à frente.
— Prazer, sou você... Como preferir, Revers Naguio Kimizu. — sorriu. — ... Você já me conhece, não é?
— Você... não pode ser...
— Sou tudo aquilo que você enterrou. Todas as decisões que não tomou. Cada fúria contida, cada lágrima engolida. Sou você, sem as correntes.
— E todas aquelas vezes em que “sobreviveu” por sorte? Era eu. Sussurrando nos cantos da sua alma... E até assumindo as vezes.
Eu travei. Não conseguia negar.
— Você sempre quis proteger todo mundo... Mas olha pra gente agora. Congelado. Morto. Inútil.
Queria responder. Queria lutar.
Mas lá, no mundo real... Yuna estava em perigo.
— Aquela mulher... demorou demais. A ajuda que você esperava não veio. Sabe o que isso significa, Naguio?
— Estamos mortos...
Revers se aproximou, e seus olhos brilharam mais uma vez.
— Então, o que vai ser? Vai me deixar lutar de verdade? Vai deixar a escuridão proteger quem você ama?
— Eu...
Foi quando um som estranho cortou o ar.
Rrrrr...
Algo miou.
Uma pequena criatura surgiu ao meu lado.
Uma miniatura da lua... com olhos de gato, e um rabo feito de constelações.
Ela me encarava, como se soubesse exatamente quem eu era.
E naquele momento... tudo ao meu redor mudou.
As árvores desapareceram.
A neve, o gelo, Mosony, Yuna...
Sumiram.
Agora eu estava flutuando.
Num espaço que parecia uma galáxia viva, com nebulosas pulsando como corações, e estrelas girando lentamente no abismo.
E Revers Naguio?
Desaparecido.
Só restava eu...
E aquela estranha entidade lunar ao meu lado.
A pequena lua-gato ronronava ao meu lado, flutuando tranquila, enquanto meus pensamentos ainda tentavam acompanhar tudo o que estava acontecendo.
Foi então que uma luz fortíssima, de tom aconchegante e caloroso, surgiu do vazio.
Foi quando a vi.
Ao longe.
Sentada em uma mesa de trabalho que flutuava no espaço, uma mulher de cabelos longos, com uma yukata roxa bordada, escrevia algo em um pergaminho com o máximo de concentração.
Usava óculos redondos, e seu rosto era embaçado pela luz.... Que ao redor dela, parecia proteger tudo.
Mesmo sentindo minha presença, ela não me olhou.
Apenas continuou escrevendo, em uma folha
A pequena lua-gato voou até ela, pousando no seu colo.
Ela o acariciou, sorrindo.
— Você sempre foi impaciente. — murmurou, ainda sem me olhar. — Mas ainda não é a hora de saber quem eu sou, por tanto... Hora de devolver seus poderes agora... — disse uma voz feminina, calma como o vento no verão.
— Acho que você chegou numa idade que tem uma melhor condição, né? Por isso, não deixarei seu outro lado te prejudicar. Sinta-se... livre.
Eu franzi as sobrancelhas, perdido.
— Não entendi nada... você pode me explicar? Acho que morri?
A mesma folha que ela escreveu, cintilante girava no ar, desceu a mim como um pacto divino.
Eu a olhava, curioso... mas ainda confuso... E feliz.
— Então... — cocei a cabeça — minha patente de Elo é... bronze?
Silêncio.
A luz tremulou por um segundo. E então...
— Hahahahahaha!
A gargalhada dela foi leve, musical, mas genuína.
Como se eu tivesse contado a melhor piada do universo.
— Ai, céus... Bronze?!
— Você é mesmo um idiota adorável...
— Ei! — revirei os olhos — Eu só queria saber, existe um ranking...
Ela tossiu de leve, tentando segurar o riso, mas ainda sorrindo.
— Me diz... o que seria uma "patente" para alguém como você?
— Ué... Eu? Tipo... um iniciante?
Mesmo meio ofuscada, deu pra perceber que ela me encarou. Por um segundo pareceu que ia responder de verdade.
Os lábios se entreabriram. Um brilho passou nos olhos dela...
Mas então desviou o olhar, murmurando baixinho:
— Não... ainda não é hora.
Eu dei um passo adiante.
— Então quem é você...? Por que me ajudar agora?
— Você só precisa saber que eu sempre estive aqui. — disse, com um tom quase triste. — E não posso interferir diretamente ainda. Mas posso proteger o que importa...
— Você conhece o Revers...
— Conheço o suficiente. — interrompeu, olhando de relance por cima dos óculos. — E se você quer mesmo proteger sua amiga... — ela apontou com a pena dourada — ...então assine logo.
— Só isso você tem pra me dizer?
— Esperava o que?!— respondeu rápido, voltando à sua compostura.
— E anda logo, você me lembra alguém, isso tá me deixando desconfortavel — sussurrou, quase imperceptível.
Eu a encarei.
Mas ela desviou os olhos de novo.
Sorriu. Um sorriso triste. Ou nostálgico. Ou... os dois.
— Certo... Vamos acabar com isso.
— Tudo bem. Mas...
Ela me olhou, curiosa.
— Se eu assinar... você me promete uma coisa?
— Hm?
— Quando isso tudo terminar — respirei fundo — você me mostra seu rosto de verdade. Sem disfarces.
Ela hesitou.
Por um instante, a chama das estrelas pareceu parar.
E então, em silêncio, ela assentiu com a cabeça.
— Está prometido.
Assinei.
E o universo tremeu.
Ela se fundiu ao meu corpo.
Um calor tomou meu peito.
Era como se ela conversasse diretamente com minha alma.
O espaço tremeu.
Dragões feitos de energia dourada e negra rugiram entre as estrelas.
Galáxias giraram.
O tempo pulsou.
Mas acabou bem rápido.
Achei que tinha.
Ela tirou os óculos com um gesto suave, como quem revela algo precioso demais para ser apressado.
E então... eu vi.
Meu coração apertou no mesmo instante.
— ...Eu... — tentei falar, mas as palavras travaram.
— Eu realmente não te conheço?
Ela não respondeu. Apenas me olhou com os olhos levemente marejados, depois desviou, as bochechas corando com uma doçura desconcertante.
— Tsc... É claro que não... Não mas — sussurrou baixinho. — Não era pra me ver ainda.
— Mas por que... isso dói? — levei a mão ao peito. — Por que eu sinto tanta... saudade?
Ela sorriu. Um sorriso leve, mas triste.
— Porque... talvez eu tenha demorado tempo demais. — disse, com a voz embargada. — E agora que me encontrou... não sabe quem sou.
Aquelas palavras se grudaram em mim como algo que já vivi, mesmo sem lembrar.
Antes que eu pudesse insistir, meu corpo começou a ferver.
Chamas laranjas subiram da base da minha coluna, serpenteando como correntes vivas.
Duas asas de fogo puro se abriram às minhas costas, cada pena uma labareda negra que cortava o vazio.
Acima, uma auréola surgiu e girou em um padrão vivo, pulsante, como uma entidade própria.
Me senti... eu mesmo.
Mas maior. Mais antigo. Mais verdadeiro.
Ela deu um passo pra trás, tocando o próprio peito, emocionada.
— Finalmente... — murmurou.
— Isso... é o Elo? — perguntei, surpreso com a força que jorrava de mim.
— É seu Elo. O que sempre foi seu. Só estava adormecido... Na verdade 4% dele.
— Só 4% então minha patente? É... mesmo o bronze?
Ela arregalou os olhos, e deu uma risada espontânea, leve como o som da água correndo.
— Bronze?! — se cobriu de leve, ainda rindo. — Você ainda tá nisso, é mesmo um bobinho...
Ela quase completou o pensamento. Mas se calou. O riso virou um sorrisinho contido, os olhos voltaram a brilhar com ternura contida.
— Eu... tô feliz de te ver assim. — murmurou. — Ainda que não possa dizer o porquê.
Mas então... ele surgiu.
Revers Naguio emergiu da sombra do espaço, como uma rachadura no reflexo do mundo.
— “Alto astral aqui, hein?” — disse com ironia, caminhando até nós.
Ela congelou, mas não recuou.
— Você demorou. — ele disse, olhando pra ela.
— Cale-se. — ela respondeu, firme pela primeira vez.
— Ah, então agora fala... depois de todos esses anos? — ele sorriu. — Vi que você realmente se importa. É bonitinho... Me diverte ver você assim.
— Chega, Revers. — me coloquei entre eles. — Esse lugar é meu.
— Eu sou você. — ele rebateu. — Tudo que você enterrou, tudo que negou... Sou o resultado disso, já não te falei antes... Moleque!
Ele se aproximou de mim.
Olhou nos meus olhos.
— Mas sabe... vendo ela agora... até eu hesito em causar confusão hoje.
— Por hoje... deixo passar. — ele lançou um último olhar à mulher. — Mas ela não vai conseguir te conter pra sempre. Nem você vai querer que ela consiga... Porque até no céu, podem haver guerras.
E sumiu. Dissolvendo-se como sombra em meio à luz.
A mulher respirou fundo. Os olhos ainda em mim. Agora mais tristes.
— Você vai precisar ser forte... Esse outro seu, ele é complicado de lidar.
— Obrigado pelo o conselho, mas eu já sou... — Eu disse, tocando a folha do contrato com os dedos em brasa, já que tinha saído do meu corpo. — Só estava esquecendo disso.
Ela sorriu, quase aliviada.
— Promete... que vai se lembrar de mim?
— Prometo.
— Mesmo sem saber meu nome?
— Mesmo assim. — e toquei o centro da folha.
Ela brilhou, se fundindo à minha alma.
A luz ao redor se partiu como cristal, e então, tudo se desfez, o mundo pulsou, e o tempo voltou a correr.
O rugido cortou a floresta.
A luz congelante disparou como um canhão celestial.
Mosony, com o braço estendido, rugia:
— SUMA DA MINHA FRENTE YUSHINA, E ESSAS MALDITAS CRIANÇAS!
O ataque congelante — uma onda brutal de gelo mágico concentrado — rasgava o ar, mirando direto em Yuna e as crianças, que ela tentava proteger com o corpo.
Ela os abraçou com força, olhos fechados, gritando:
— NÃO!!
As crianças choravam.
O mundo... pareceu pausar.
E então...
Um estalo. Um clarão. E a realidade tremeu.
Entre Yuna e o ataque — ele surgiu.
Eu Naguio Kimizu.
Sem aviso. Sem som.
Como se o próprio universo tivesse me trazido de volta.
Com o braço direito erguido, bloquei a explosão congelante com a palma da mão aberta.
A neve evaporou instantaneamente.
Fagulhas negras e laranja giravam ao redor do meu corpo.
As crianças olharam com olhos arregalados.
Yuna abriu os olhos, ofegante.
— Na... Naguio...? Isso é elo?
Ele não olhou para trás.
Seus cabelos se erguiam com a pressão do poder.
E então, lentamente, abri os olhos...
Azuis. Brilhantes. Transcendentes.
Como dois sois azuis refletidos num só olhar.
O brilho deles cortou o céu.
Intensos. Calmos. Implacáveis.
Mosony deu um passo para trás.
— Mas... impossível. Esse ataque...!
O chão rachou sob os meus pés.
As crianças começaram a sorrir.
Yuna cobriu a boca, em prantos.
— Não toque nela.
E então, com os olhos azuis brilhando como cristais celestes e o fogo ondulando em meu corpo, declarei ao mundo:
— "Entre as cinzas dos fracos e a luz dos justos... Eu sou o Eremita Negro. O Caçador que arde até os céus tremerem!"
Yuna caiu de joelhos, abraçando os pequenos.
— Você voltou...
Ela sorriu entre as lágrimas. — Você voltou mesmo... Kimi.
Mosony cerrou os punhos, tremendo.
— Isso não é o Fogo derivado do elo humano... Isso é... Que nem o Centurião Roger. Aquele monstro do elemento fogo. Você...
Ergui os dedos até o peito.
Demonstrando. Pressão. Domínio. Supremacia.
Eu sorri de canto.
— Assim o famoso elemento fogo, que protege a província de New Hokkaido Cities... Infelizmente meu poder não tem haver com o elemento fogo em si, é algo mais original... No meu caso.... Conheça, o Eremita Mødø: Angel Hunter.
O poder crescia como uma tempestade contida.
Asas negras flamejantes vibravam nas minhas costas.
Chamas giravam ao redor, e nos braços, escamas flamejantes surgiam, como as de dragões, em mim.
Mosony recuou instintivamente, o suor frio escorrendo na testa.
— Esses olhos... — pensou. — Aquele brilho...
— São como o da lenda...
Ele trincou os dentes.
— Isso é impossível!?
A mente de Mosony falhou por um instante, dominada pelo medo.
Abaixei o braço lentamente. As chamas ainda ardiam ao meu redor, evaporando seu frio.
Yuna correu até mim, os olhos marejados, sem conseguir conter o choro.
— Kimi... você voltou... você me protegeu aquela hora... e agora de novo... — ela sussurrou, com a voz embargada.
Olhei pra ela — e por um instante, os olhos perderam o brilho de combate.
Ficaram... suaves. Azuis como o céu antes da chuva.
— Claro que voltei. — Respondi, quase rindo, como se aquilo fosse óbvio.
— Você achou que eu ia deixar a futura maior idol, com um velho babaca desses?
Yuna deu uma risada entre lágrimas, tremendo, e se jogou contra mim, me abraçando-o com força. Minhas chamas não a machucaram, pelo contrario a protegiam.
As crianças a seguiram, agarrando-se a suas pernas.
Então ela perguntou.
— Qual é sua patente Kimi? E porque deu esse nome a essa sua forma.
— É... foi o que veio na cabeça. “Eremita”... porque era como me chamavam. Eremita Negro. Um exilado, um ninguém. “Hunter”... porque agora eu sou da Wise Force. Um guerreiro. Um caçador.
Olhei para ela por fim, com leveza nos olhos.
— E “Angel”...
Ele deu de ombros.
— É um segredo...
Yuna corou, abaixando o rosto rápido.
As crianças olharam os dois como se vissem uma lenda viva.
Mosony, ao fundo, ainda congelado, dava um passo para trás.
— Então... isso é o verdadeiro Naguio Kimizu... Impressionante Gato negro, pena que vai morrer antes
Círculos de luz negra e branca giraram ao redor do meu corpo.
As chamas mudaram de cor.
De negro e laranja... para um brilho azul: âmbar prateado.
Então, ele sussurrou, como se evocasse um antigo ritual:
— Eremita Mødø... Angel Hunter.
A transformação se ativou.
Seis fragmentos giraram à sua volta, como partes de uma auréola.
Uma força física sobre-humana explodiu em seu corpo, sem precisar do Revers Naguio.
As crianças assistiam com olhos encantados.
Yuna chorava de alegria, abraçando-os com força.
Mosony hesitou, pálido, sem reação.
— ...Isso é impossível.
Naguio respirou fundo.
E disse, com um leve sorriso e olhos azul-cósmico:
— Mosony Kazui.
— Você mexeu com o Gato preto errado.
Diante de mim, Mosony estendeu os braços ao céu e uma onda de gelo se ergueu do chão como se a própria terra estivesse congelando sob sua vontade.
Uma montanha colossal de gelo puro e mágico começou a crescer, girando no ar e se lançando como uma avalanche furiosa em direção a Noraje.
Era o fim. Para a cidade. Para as crianças. E para meus amigos...
Mas a verdade era que Shida ainda estava no karaokê. Ele ria, quase fora de si, segurando um microfone enquanto a menina ao lado dele tentava colar no seu ombro, rindo das piadas sem graça.
Ele fingia estar à vontade, mas seus olhos desviavam constantemente para a porta de vidro. Lá fora, a neve começou a cair — lenta, fina, cortante.
Ele franziu o cenho. Aquilo não era normal.
— “Tá frio, né? Vem cá, me esquenta...” — disse a garota, se aproximando mais.
Mas ele não respondeu. Ficou sério, encarando os flocos brancos.
— “...Naguio... Yuna...” — murmurou. — “Será que eles estão bem lá fora?”
Mas como se fosse um aviso, um calafrio percorreu sua costa.
O microfone caiu da sua mão. Pela primeira vez em muito tempo... ele sentiu medo.
Já Kouem do outro lado da cidade também, ainda estava dentro da lan house.
Na tela, sua party acabava de farmar o boss do evento.
— “Mais dois fragmentos! GG time!” — ele falou, com o copo de refrigerante na mão.
Mas antes que pudesse continuar, uma brisa fria passou por dentro do ambiente, mesmo com as janelas fechadas. Ele ergueu os olhos, olhou pra fora.
Estava nevando.
— “...Mas que porra é essa?” — sussurrou.
Então, ele sentiu. Não era um frio comum.
Era algo mais profundo.
Algo que vinha da terra, do céu, do ar.
Ele se levantou devagar, colando o rosto no vidro embaçado. Por um segundo, pensou em Kimi.
O coração dele disparou.
— “Vapo, sai fora de ficar pensando em homem...” — disse, quase sem ar. — “Mas realmente, o mundo tá cada vez mais hardcore, com essas coisas.”
E eu... ainda na floresta, não sabia controlar meus poderes.
Antes que a dúvida me esmagasse, antes que aquela montanha de gelo esmagasse toda a cidade de Noraje, ele apareceu.
Como uma sombra que ardia, iluminada por um fogo negro que não fazia sentido existir. Revers Naguio. Ou talvez… a parte de mim que eu ainda temia.
Ele sorriu dentro da minha mente, com um olhar de superioridade absoluta. Aquele sorriso que misturava escárnio e orgulho.
— “Canaliza, idiota. Foca os 4% na palma. Tu vai virar história se errar.”
Ele andou em minha direção, como se o tempo ao redor congelasse. — “Agora escuta: Não basta atacar. O Mosony tem que morrer depois desse golpe que eu vou te ensinar, se não... Estamos acabados.”
Minha respiração se acelerou. Meus pés se fixaram no chão, afundando na terra gelada.
A cidade atrás de mim, Yuna, o orfanato em que cresci, e meus amigos… tudo poderia desaparecer se eu errasse.
— “O gesto é simples. Mas o impacto… tem que ser preciso.”
Ele ergueu a mão, como um monge da destruição. O braço estendido levemente inclinado, a outra mão apoiando a gola da camisa.
— Palma fechada para frente, como se fosse dar um estralo. “Essa é a postura da execução, garoto. Não hesite.”
A energia dos 4% começou a rodopiar em meu peito. Quente. Violenta. Um redemoinho flamejante girando ao redor do meu coração. Comecei a erguer a mão como ele mostrava.
Meus pés se fixaram no chão, e então... me preparei.
Ergui o braço direito. A mão estendida.
O indicador e o dedo médio juntos, apontando levemente para frente. O polegar recolhido. Os outros dois dedos fechados.
A palma da mão esquerda sustentava minha gola, firme como uma âncora — exatamente como Revers me ensinou.
O mundo inteiro parou ao meu redor.
E minha aura… explodiu como um cometa preso em carne humana.
Era a postura da execução. O gesto do fim. A convocação da destruição.
Atrás de mim, o vórtice dourado em forma de dragão rugia como uma entidade viva, girando com velocidade impossível.
A energia flamejante se concentrava num único ponto na ponta dos meus dedos — comprimida até o limite, como se o universo inteiro coubesse ali.
Minhas pupilas queimavam em azul-celestial. E então...
O rugido do dragão ecoou por quilômetros. O tempo congelou.
E eu… disparei.
— “Arte dos dragões... VOE!! CALAMIDADE DO DRAGÃO!!!”
Um dragão de pura luz e fogo angelical serpenteou do centro da minha mão, avançando como um raio vivo.
Quando a Calamidade colidiu com a montanha de gelo, o mundo tremeu.
Não foi só uma explosão.
Foi como se tudo — a terra, o céu e o mar — tivessem sido rasgados ao meio pela própria fúria dos céus.
A floresta explodiu em apenas naquela linha reta, deixando estilhaços de árvores, a montanha de gelo rachou como cristal, sendo esmagado...
E o mar — mesmo longe dali — ressoou com um estrondo profundo. Um rugido que cortou o horizonte, como se a própria costa estivesse gritando.
A água se ergueu em ondas negras e violentas, correndo para longe como se quisesse fugir do que acabara de acontecer.
E Mosony…
Ele foi engolido.
Arrastado.
Pulverizado.
Mas antes de desaparecer, eu senti.
Por um instante, um segundo congelado no tempo, eu enxerguei com os olhos dele.
Senti o que ele sentiu. O terror. A impotência. A dor de quem achava que era invencível.
Mas antes de morrer.
Mosony Kazui teve seus últimos pensamentos.
"Não... esse poder... isso não é humano..."
"Eu sou um Kazui! Eu sou o julgamento! Eu sou um dos Sete!"
Mas a calamidade não ligava para títulos.
A luz o cercava, os ossos estalavam, a pele se queimava em silêncio, e a alma se desfazia como cinzas ao vento.
O impacto ruía em cada centímetro da floresta — em cada onda do mar.
E mesmo assim, mesmo no fim, ele tentou me amaldiçoar.
"Você vai pagar por isso, Naguio... meu filho... vai te matar..."
A última imagem que brilhou na mente dele — antes de tudo virar poeira — foram meus olhos:
Azuis.
Vibrantes.
Frios.
Acessos no centro da escuridão, como o próprio julgamento que ele dizia carregar.
E então… silêncio.
Mosony se foi.
Mas o mundo... ainda tremia.
A floresta ainda sussurrava. O chão estava coberto por um tapete de neve suja, derretida nas bordas, como se o mundo estivesse tentando cicatrizar a ferida aberta pela minha luta.
Eu estava apoiado nos ombros de Yuna. Cada passo dela era firme.
Mesmo tremendo, mesmo com os olhos ainda vermelhos do choro… ela não soltava minha cintura nem por um segundo.
— Você é mais forte do que parece… — murmurei, a voz falhando.
— E você é mais fraco do que finge — ela respondeu, com um meio sorriso.
A gente riu. Baixo. Tonto.
Na frente, as duas crianças caminhavam de mãos dadas. O menino carregava um ursinho de pelúcia, e a menina o ajudava a equilibrar os passos.
— Mana, aquele moço brilhou igual a um herói do jogo… — disse ele.
— Eu sei… Mas herói de verdade não some depois da fase. Ele fica.
— Será que o moço vai ficar também?
Ela parou, olhou pra trás… e sorriu pra mim.
— Vai sim. Ele prometeu.
Yuna apertou meu corpo contra o dela. O calor da respiração dela no meu pescoço me fez esquecer do frio por um instante.
— Ei… — falei, quase dormindo — você tá tremendo…
— Tô com medo de você apagar e não acordar.
— Então me chama… com tua voz. Aquela que me acorda até sem gritar.
Ela sorriu. Me encostou numa árvore, só por um instante.
— Naguio… meu herói idiota…
— Hm… tô aqui…
— Não me deixa sozinha.
— Nunca… eu prometo… Só leva a gente logo pro orfanato — murmurei, sentindo tudo escurecer.
A última coisa que vi foram as mãos da Yuna segurando as minhas, e o céu começando a clarear entre as folhas nuas das árvores.
A neve ainda caía, fina. Mas o frio já não me tocava mais.
Eu… podia descansar.
Só um pouco.
Continua...