Sombra

A chuva caía com força naquela manhã cinzenta, tamborilando suavemente na clarabóia do quarto. Um garoto estava sentado na beirada da cama, olhando em silêncio para as gotas que escorriam pelo vidro. Lá fora, o som ritmado da água misturava-se ao leve eco de carros distantes e vozes abafadas.

— Ei! Vai logo comprar o pão! — gritou uma voz feminina do andar de baixo, quebrando o silêncio.

Ele demorou a reagir. Ficou mais alguns segundos imóvel, como se relutasse em sair. Quando enfim desceu, a mãe já resmungava baixinho na cozinha. Ao ouvir mais uma bronca, ele apenas suspirou.

— Tá bom, tô indo... — disse em voz baixa, já abrindo a porta.

Pegou o guarda-chuva e saiu. A água fria respingava nas calçadas e escorria pelas ruas, misturando-se ao cheiro de terra molhada e asfalto. O som plástico do guarda-chuva recebendo os pingos era a única trilha da sua caminhada solitária. A cidade parecia abafada, como se estivesse presa num dia sem cor.

Durante o trajeto, algo começou a incomodá-lo. Ele desacelerou, distraído com pensamentos que o leitor ainda não podia ouvir. Havia um vazio ali — um incômodo silencioso.

Então, veio o som seco de um disparo.

Ele parou.

Mais tiros.

Viu, à frente, um grupo de policiais enfrentando criminosos armados. As sirenes, os gritos, o barulho de metal... tudo parecia distante e ao mesmo tempo ensurdecedor.

O pânico o dominou. Ele virou-se e correu na direção contrária, sem olhar para trás. Um dos policiais o viu.

— Ei, garoto! Para aí! É perigoso!

Mas ele não escutava mais nada. Seus passos se apressaram.

Um som abafado ecoou.

Uma linha vermelha se desenhou no ar.

Sua cabeça tombou para frente, e seu corpo caiu.

A chuva continuava.

Vista de cima, a poça de sangue escorria lentamente, misturando-se à água suja da rua. O garoto ainda estava consciente — podia ouvir a discussão abafada entre dois policiais. Um deles parecia desesperado.

— Você atirou nele?! Tá maluco? Ele era só um civil!

— Eu... eu achei que...

Então, tudo ficou mudo.

E escuro.

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No vazio absoluto, seu corpo nu flutuava como se estivesse suspenso no nada. A escuridão não tinha fim, nem chão, nem céu.

— Morri mesmo... — disse uma voz, soando apenas dentro de si. — Que coisa. Achei que talvez...

Pausa.

— Bom, não posso remoer o passado. Não foi a melhor vida, mas foi legal. Me arrependo de não ter entendido melhor as pessoas...

O silêncio absoluto o envolvia como um cobertor gelado.

— Então é aqui que a gente vem parar depois de morrer? No escuro... pelado?

Um segundo de silêncio.

— Espera aí... Eu consigo me mexer?

Testou os movimentos. Sim. De alguma forma, ele ainda tinha controle.

— Eu tô vivo? Ou tô no limbo?

De outro ponto de vista — algo que ele mesmo não percebia — seu corpo já não era mais humano. Agora, era uma poça líquida negra, quase viscosa, com brilho fraco. Um líquido denso e escuro, pulsando em silêncio.

Lá em cima, uma fresta de luz escapou de algum lugar. Ele a viu atravessar seu corpo líquido, como se estivesse sendo perfurado por algo etéreo.

Tentou rastejar. Estranho, mas possível. O esforço era novo, difícil. Com o tempo, conseguiu formar dois olhos, flutuando na massa negra.

E então, viu.

O ambiente ao redor era um cemitério sombrio, envolto por paredes de pedra quebradas. Ao lado, uma pilha de corpos ensanguentados. O cheiro de carne morta e terra molhada pairava no ar, pesado, nauseante.

Do alto, mais um corpo foi atirado. Ainda vivo, o homem caiu por cima da pilha e, agonizando, viu os olhos brancos naquela poça negra. Tentou gritar, mas não conseguiu. Morreria ali, em silêncio.

O líquido observou.

Viu um cristal sujo refletindo sua forma.

— Eu sou uma... amoeba? Tá mais pra uma água suja, mas tão preta que pareço o próprio vazio...

Tentou moldar dedos, mas não conseguia manter a forma por muito tempo. Um barulho ao fundo — outro corpo caindo. Ele se encolheu num canto escuro.

Sem voz, apenas com olhos, pensou:

— Pelo menos posso ver, ouvir, tocar... mas não falar. Não sinto dor também. Isso é bom?

Arrastando-se pelos cantos da vala, encontrou ossos quebrados. Tentou envolver um pé esquelético com seu corpo. Conseguiu, mas estava rachado — não servia.

Seguiu procurando até encontrar um esqueleto inteiro, mesmo que com algumas rachaduras. Olhou para ele.

— Me desculpa, mas vou ter que usar você...

Envolveu os ossos lentamente com o líquido, tentando se levantar. Um passo. Caiu. Tentou de novo. E mais uma vez. Na terceira, ficou em pé por alguns segundos, mas caiu logo depois.

Na quinta tentativa, parou, observou o local ao redor. Respirou fundo — ou simulou isso.

Na sexta, andou por três passos antes de cair.

Tentou centenas de vezes.

Até que, por fim, conseguiu.

Ali, de pé, uma figura humanoide negra com olhos brancos se levantava entre os corpos mortos. Um espectro feito de sombra e vontade.

— Hahahaha! Eu consegui... Isso é incrível! Dá pra fazer tanta coisa com esse corpo! Mas ainda não consigo emitir nenhum som...

Mexeu os braços devagar. Os ossos rangiam, sustentados pela massa negra. Não sentia dor. Nem fadiga. Mas percebeu que se movesse rápido demais, os ossos trincavam.

— Por enquanto... vou manter os passos lentos.

Lá em cima, soldados armados guardavam a entrada da vala. Usavam máscaras. Um deles ouviu um ruído.

— Foi só um rato, relaxa...

Logo, os dois voltaram a cochilar. Atrás deles, repousavam suas armas, reluzindo sob a tênue luz da manhã.