Ah, assim que eu chegar em casa vou revelar as fotos de ontem..., pensou.
Yuudai Reno havia suportado um dia longo e desgastante cheio de papéis, polidez e traições políticas, mas seu ritmo permanecia estável. Ele era o tipo de homem que internalizava a rotina como um hábito passado de geração em geração.
Calmo, composto e com um orgulho discreto nas rotinas.
Ele trabalhava em um escritório de advocacia de médio porte no centro de Tóquio, com um salário decente.
Era um escritório pequeno que ficava em cima de outro escritório maior. É muito comum nessa época do ano os aluguéis abaixarem, então, sempre que têm uma oportunidade, os "falcões" do mundo imobiliário dão a volta por cima.
Observando Yuudai Reno, tomamos como conclusão absoluta que ele não é o tipo de homem que você notaria em uma multidão, com seus cabelos castanhos penteados de qualquer jeito e seu físico modesto, moldado por alguns anos no clube de badminton do ginásio, mas nada além disso. Ele carrega uma Canon DSLR 2.1 de treze anos pendurada no pescoço quase que diariamente, como se fosse uma extensão de si mesmo. Não é uma câmera nova, nem particularmente cara, mas é fiel. No entanto, ele realmente encontrou consolo na fotografia.
Ainda não decidi o que vou comer... Talvez lámen e um frapê congelado. Mas não tenho certeza se comprei ou não o lámen apimentado. Acho que vou aproveitar o benefício da dúvida.
Era sete de outubro, à noite.
Uma noite fria.
Ele estava indo para casa, depois de um dia exaustivo... Ele realmente tem um talento especial para o trabalho!
Ao passar por uma densa parede de arbustos não-podados, de uma propriedade estadual, ele dobrou uma esquina e viu uma silhueta feminina. Ela estava encostada em um poste de luz, como alguém que sabia exatamente como ocupar o espaço.
Seus cabelos eram prateados, balançando delicadamente com a brisa. Seus olhos refletiam a luz como um vitral, com tons de fúcsia, mesclados a um âmbar crepuscular que parecia vívido demais para ser real. Ela usava túnicas de linho com lenços em camadas que envolviam seu corpo.
Suas roupas pareciam uma ilusão de ótica, eu juro!
Quando ela o notou, levantou-se do poste, inclinou a cabeça suavemente para a direita e levantou um dedo na direção dele.
"Boa noite", ela sussurrou. "Por favor, só um momento."
Reno congelou. A frase era ensaiada, mas ela não estava vendendo nada nem segurando nada com as mãos.
Ele piscou uma vez e, ignorando o peso da voz dela, continuou andando, dizendo um discreto "boa noite", como se estivesse dispensando um inofensivo artista de rua.
"..."
"..."
Mas antes que ele pudesse dar o segundo passo, ela já estava lá.
"...!"
Ela não se moveu, apareceu ali, na frente dele. Num momento, estava a cinco metros de distância, no outro, bem na frente dele. Ela não se teletransportou, simplesmente substituiu o ar pela sua presença.
Ela era rápida.
Rápida como o instante entre o acendimento do fósforo e o surgimento da chama, rápida demais para o olho humano.
Uma lâmina, que brilhava em amarelo, emergiu como um sopro conjurado, de baixo para cima. Reno, no entanto, não gritou. Ele ouviu apenas o som de tecido rasgando, o suave gorgolejo da carne cedendo e, então, calor.
O calor subiu até suas costelas, o que fez com que ele caísse de joelhos.
"Meu trabalho fica mais fácil quando as pessoas olham diretamente para mim", disse ela.
"Desculpe, acho que deve doer bastante," supôs.
Sua voz era clara e centrada. Ela se agachou diante dele, examinando-o. Ele sentia o cheiro do linho lavado e envelhecido, e um leve odor de tinta de caneta.
Reno abriu a boca, mas nada saiu. Quando encontrou forças para inspirar, ela já estava se levantando e andando para trás.
Com um movimento fluido, ela se virou e sua silhueta começou a se afastar.
Foi somente quando ela desapareceu de sua vista que ele tocou na ferida.
A lâmina aparentemente deixou duas queimaduras, que mais pareciam cistos, e criou
pequenos e claros buracos em sua pele.
Ele não desmaiou, e isso o deixou orgulhoso mais tarde. Mas sangrou mais do que Reno imaginava ser possível, mal conseguindo chegar em casa com a manga apertada contra o buraco que vazava no peito. Nos dias que se seguiram, a ferida nâo se fechou completamente.
Nem uma semana depois, nem duas, nem meses depois, como feridas deveriam funcionar.
E então, dezenove anos depois...
Estava chovendo. E havia tanta água caindo do céu...!
Do tipo que soava como pequenas pedras caindo no chão.
Reno tinha acabado de deixar sua câmera secando em uma toalha, com uma chaleira apitando atrás dele. Ele serviu café instantâneo em uma caneca lascada, mas, ao fazê-lo, a campainha tocou.
Provavelmente era o carteiro, pelo menos. Mas que dedicação sincera entregar pacotes debaixo de uma chuva daquelas!
Então, resolveu abrir a porta.
É normal ouvir das pessoas que você nunca sabe quem está atrás de uma porta, a menos que você olhe, de alguma maneira, através dela (como olhar por um olho-mágico) ou reconhecer pela voz, mas, na verdade, isso não era nem um pouco requisitado para o momento.
Pois lá estava ela.
O cabelo dela com a mesma cor impossível. Os olhos dela tão complicados quanto antes. As roupas dela estavam mais folgadas agora, entretanto.
Ela segurava um guarda-chuva branco quebrado e saindo do topo e um pacote de biscoitos.
"Boa noite, Yuudai-kun. Meu nome é Platina Haoru."
Ela entrou antes que ele tivesse a oportunidade de falar qualquer coisa.
Que mulher esperta ela era... Quer dizer, ela continua tão esperta quanto da primeira vez!
Ela entrou antes que ele pudesse reagir.
E ele não disse nada, não porque estava surpreso com a chegada de Platina, mas porque, lá no fundo, não sabia o que dizer para ela.
O tempo parecia não tê-la tocado, ou, se tocou, fez isso de forma cuidadosa. Ela tirou os sapatos, colocou-os lado a lado no corredor e, sem pedir permissão, caminhou até a mesa da cozinha e colocou o pacote de biscoitos sobre ela.
O guarda-chuva quebrado ficou de pé encostado na parede.
Reno apenas observou ela caminhar pelo corredor. Ele estava confuso e tinha muitas perguntas, mas nenhuma que valesse a pena ser a primeira pergunta da interação.
Ela olhou pela janela da sala e esticou os braços para cima. Algo nela tranquilizava aquele ambiente já calmo.
Platina Haoru tem algo na sua aparência que parece etéreo. Suas ações, e sua maneira de se portar não são "normais". Mesmo que tente ser comum, não conseguiria. Não porque ela é essencialmente "estranha", mas porque ela não sabe nem que está sendo diferente, ou agindo não-naturalmente. Vamos dizer que Platina teria problemas se tivesse que agir "normalmente".
“Você manteve a câmera,” ela comentou, sem olhar pra ele. “Ela ainda funciona?”
"..Sim."
Reno recuou um pouco, dando um passo para trás, era impossível não se sentir intimidado.
"..."
“Você não mudou.”
“...Você...”
Ele suspirou. Estava cansado demais para gritar, mas alerta demais para simplesmente aceitar.
“Por que agora?”
Ele perguntou, desacreditado. Aquela mulher registrou uma marca em seu peito e foi embora. "Lide com isso", pareceu sua intenção.
“Porque está quase pronto.”
Ela disse isso como se falasse sobre um bolo assando. Como se o que fosse acontecer depois já estivesse em processo há muito tempo.
“Pronto pra quê?” ele perguntou.
Ela se virou, finalmente encarando-o de frente. A luz da cozinha, amarelada e antiga, formava um halo desajeitado ao redor de sua figura.
"É complicado, mas, em termos oficiais, eu 'destravei' seu coração."
Ele não entendeu, mas decidiu não pedir explicações.
Ela abriu o pacote de biscoitos e comeu um em silêncio, enquanto Reno apenas observava. Platina Haoru estava ali. Com biscoitos, e extremamente convidativa!
"'Destravou?' Isso não faz nenhum sentido."
“Você tem razão”, ela disse, sentando-se. “Mas fará. É cedo pra isso. Primeiro, me diga: como está a ferida, você está cuidando dela? Eu não espero que esteja passando algum cicatrizante ou pomada antisséptica, mas é ideal que esteja lavando-a e que não esteja a expondo tanto à luz solar.”
Ele pensou por um instante. “Eu a lavo sim, mas, por favor, me diga. O que é esta coisa?!”
Platina assentiu, e depois olhou para a lâmpada falhando, da sala do apartamento. "Você está acelerando muito as coisas, Yuudai-kun."
A frase pairou no ar por tempo demais, e o apito da chaleira cessou sozinho. Ela se sentou na cadeira de madeira, uma das duas da cozinha, e puxou o pacote de biscoitos. Rasgou o plástico com as mãos nuas, retirou um e o partiu ao meio. Metade ficou na mesa, intocada, e a outra, ela comeu devagar.
“Você ficou bem,” ela comentou, com a boca cheia, mas sem perder a dicção. “Na medida do possível.”
Ela limpou as mãos na perna da túnica e olhou ao redor. Seus olhos passavam pelas coisas naturalmente. Reno pensou em perguntar onde ela esteve, por que não apareceu antes, se ela fez o mesmo com outras pessoas, mas não disse nada.
Ele estava escutando, e aquilo era mais importante.
“Você procurou ajuda médica?”, perguntou ela, olhando para algumas caixas de remédio na mesa.
“Sim... Quer dizer... Visitei alguns consultórios...”
“...Se tivesse feito qualquer procedimento cirúrgico, você teria morrido. Digamos que a 'ferida' é reativa. Ela protege a si mesma, e você virou uma espécie de invólucro. Um tipo de contenção viva.”
“...E o que acontece se eu não quiser ser isso?”
“Não é uma questão de querer. Não há mais nada que se possa fazer, Yuudai-kun.”
Ela falava sem arrogância. O tom era prático e preciso, aquilo era uma explicação sobre instruções básicas de sobrevivência.
Reno se recostou no balcão e passou a mão pelos cabelos. Estavam mais finos do que se lembrava. O espelho do armário acima da pia devolvia o reflexo de alguém cansado, mas inteiro, o que por si só, já era muito deprimente.
“Mas isto ainda está muito estranho. O que isso é, afinal?!”
Platina assentiu e levantou-se da cadeira. Deu dois passou ao lado para se centralizar na sala e olhou em volta.
"Yuudai-kun, por acaso este apartamento poderia me ceder papel e caneta?"
“Nesta gaveta, eu acho," Reno respondeu.
Platina abriu a gaveta indicada por Reno, puxando uma folha de papel branca um pouco amarelada pelo tempo e uma caneta de corpo metálico. Sentou-se novamente à mesa e alisou o papel com a palma da mão, fazendo parecer que aquilo era algo muito importante. Reno permaneceu encostado no balcão, com os braços cruzados, observando em silêncio.
“É difícil explicar diretamente,” disse ela, com calma, enquanto desenhava.
O primeiro traço foi o contorno de um círculo. “Isso aqui é o corpo humano,” ela começou, girando o papel ligeiramente para manter o traço. “Dentro dele, todas as funções acontecem normalmente. Digestão, pensamento e envelhecimento, o ciclo comum de qualquer ser vivo.” Ela desenhou pequenas setas dentro do círculo, girando em sentido horário.
“Mas em algum momento da sua vida, principalmente os momentos de tristeza, de tensão, de dor, de perda..." Ela traçou uma linha vertical, que cortava o círculo de cima a baixo. Depois, somou pequenos estilhaços saindo da linha. “Uma rachadura pode surgir, e essa rachadura gera uma chama que começa a queimar sua carne.”
Ela desenhou um pequeno olho no centro da rachadura.
“Uma janela para algo que está do outro lado.”
Reno franziu a testa. “Você tá me dizendo que essa ferida que você fez em mim é uma janela?”
“Em partes. Eu não criei a janela, ela já estava lá, eu só abri a cortina. Modestamente, eu tenho facilidade em identificar essas coisas.”
Ela continuou desenhando. Agora, em volta do círculo, fez traços finos, como raízes.
“Quando algo de ruim acontece, há uma chance de seu coração aumentar sua temperatura, e, eventualmente, pegar fogo. Ela precisa de uma forma, de um caminho. É por isso que ela se manifesta como algo que chamamos de 'Faísca da Alma'.”
Reno olhou para os desenhos e depois para Platina. “Isso não é muito diferente de magia.”
“Não é. E também não é diferente de física quântica em alguns aspectos,” ela respondeu, com naturalidade. “A diferença é que, se você entrar numa briga agora e o seu coração acelerar, ele pode sair do controle. Porque ela ainda não reconhece você como recipiente estável.”
Ela desenhou, então, uma pequena silhueta humana com uma chama dentro do peito.
“E se ela sair do controle?”
Platina desenhou a chama se expandindo, rasgando os contornos da silhueta.
“Você explode,” disse ela com uma serenidade absurda. “Ou consome os outros ao seu redor.”
“E você não vai me dizer qual é?”
Ela olhou para Reno com seriedade, como quem pondera antes de entregar uma resposta.
“Você conseguiu ficar de pé com um buraco no peito por dias. Isso não é comum."
Platina dobrou o papel com cuidado e o entregou a ele. “Guarde isso. Vai ser útil mais pra frente.”
Reno pegou o papel, dobrado em quatro, e o enfiou no bolso da jaqueta.
“E agora?”
“Agora?” Ela se levantou. “Agora, você viverá com ela e provavelmente terá que admitir que faz parte da sua vida. Eu salvei a sua vida, pode-se dizer. Nenhum diploma de medicina faria isso."
Ela pegou o guarda-chuva quebrado, deu dois passos até a porta, e então parou, sem se virar.
“Ah, e Yuudai-kun...”
“Sim?”
“Você provavelmente terá que me ver de novo, em breve."