Prólogo

Ah, assim que eu chegar em casa vou revelar as fotos de ontem..., pensou.

Yuudai Reno havia suportado um dia longo e desgastante cheio de papéis, polidez e traições políticas, mas seu ritmo permanecia estável. Ele era o tipo de homem que internalizava a rotina como um hábito passado de geração em geração.

Calmo, composto e com um orgulho discreto nas rotinas.

Ele trabalhava em um escritório de advocacia de médio porte no centro de Tóquio, com um salário decente. Era um escritório pequeno que ficava em cima de outro escritório maior. É muito comum nessa época do ano os aluguéis abaixarem, então, sempre que têm uma oportunidade, os "falcões" do mundo imobiliário dão a volta por cima.

O prédio em si era uma relíquia dos anos 80, com elevadores que gemiam a cada subida e corredores estreitos que cheiravam a café velho e papel mofado. Reno não se importava com isso - na verdade, havia algo reconfortante na previsibilidade daquele ambiente. As paredes amareladas pelos anos de fumaça de cigarro contavam histórias silenciosas de advogados que vieram antes dele, cada mancha uma pequena batalha jurídica vencida ou perdida.

Observando Yuudai Reno, tomamos como conclusão absoluta que ele não é o tipo de homem que você notaria em uma multidão, com seus cabelos castanhos penteados de qualquer jeito e seu físico modesto, moldado por alguns anos no clube de badminton do ginásio, mas nada além disso.

Ele carrega uma Canon DSLR 2.1 de treze anos pendurada no pescoço quase que diariamente, como se fosse uma extensão de si mesmo. Não é uma câmera nova, nem particularmente cara, mas é fiel. A alça de couro estava desgastada, moldada perfeitamente ao formato de seu pescoço após anos de uso constante. As pessoas do escritório já se acostumaram a vê-lo com ela - alguns até brincavam que Reno dormia abraçado à câmera. No entanto, ele realmente encontrou consolo na fotografia.

Era seu escape. Enquanto o mundo ao seu redor se tornava cada vez mais caótico - com notícias estranhas sobre grupos terroristas e organizações militares misteriosas -, Reno encontrava paz nas imagens estáticas que capturava. Cada clique era um momento roubado da eternidade, um fragmento de ordem em meio ao caos crescente que parecia consumir o Japão moderno.

Ainda não decidi o que vou comer... Talvez lámen e um frapê congelado. Mas não tenho certeza se comprei ou não o lámen apimentado. Acho que vou aproveitar o benefício da dúvida.

Era sete de outubro, à noite. Uma noite fria.

O outono chegara com força total em Tóquio. As folhas dos ginkgos começavam a dourar, criando tapetes naturais pelas calçadas que crunchavam sob os pés dos transeuntes apressados. Havia algo melancólico no ar - não apenas o frio típico da estação, mas uma tensão palpável que parecia infectar a cidade inteira.

Nas últimas semanas, os noticiários não paravam de falar sobre ataques coordenados em diferentes regiões do país. Grupos terroristas com nomes estranhos como "Os Xerifes" apareciam nas manchetes com uma frequência perturbadora. E sempre havia aquelas histórias bizarras sobre pessoas que desenvolviam "habilidades especiais" - relatos que a mídia mainstream tratava como casos isolados de histeria coletiva, mas que se espalhavam como vírus pelas redes sociais.

Reno preferia não pensar muito sobre isso. Preferia focar na simplicidade de sua vida: trabalho, casa, fotografia. Uma existência ordenada e previsível.

Ele estava indo para casa, depois de um dia exaustivo... Não foi um dia particularmente importante para sua vida casual, mas sim para sua vida trabalhista! Ele realmente tem um talento especial para o trabalho!

O caso em que trabalhava nas últimas semanas era complexo - uma disputa corporativa envolvendo uma empresa de biotecnologia que alegava ter desenvolvido "tratamentos revolucionários para traumas psicológicos". A papelada era extensa, cheia de termos médicos que Reno mal compreendia, mas havia algo estranho nos documentos. Referências vagas a "processos de adaptação energética" e "manifestações psicossomáticas avançadas" que não faziam sentido no contexto de uma empresa farmacêutica comum.

Mas essas eram preocupações para o Reno do amanhã. O Reno de hoje só queria chegar em casa, revelar as fotos que tirara no fim de semana no Parque Ueno e talvez assistir a algum documentário sobre fotografia.

As ruas estavam desertas, sem nenhuma alma andando, nem carros, nem motos. Era apenas Reno e a imensidão periférica de Tóquio. Exceto uma pessoa peculiar.

A ausência de movimento era antinatural para uma cidade como Tóquio, mesmo naquela hora. Geralmente, haveria pelo menos alguns salarymen retardatários voltando para casa, ou estudantes universitários saindo de seus empregos de meio período. Mas naquela noite, as ruas pareciam ter sido abandonadas por um decreto invisível.

O silêncio era quebrado apenas pelo som rítmico dos passos de Reno ecoando contra as fachadas dos prédios comerciais fechados. Neons apagados criavam sombras fantasmagóricas, e até mesmo as máquinas de venda automática - onipresentes sentinelas da vida urbana japonesa - pareciam dormentes, suas luzes piscando languidamente como olhos sonolentos.

Era o tipo de cenário que, em outras circunstâncias, Reno teria fotografado. Havia uma beleza sombria na solidão urbana, uma poesia visual na desolação arquitetônica. Mas algum instinto primitivo o fazia manter a câmera guardada naquela noite.

A partir daquele dia, a vida de Reno iria mudar. Não instantaneamente, e sim, a longo prazo, pois este evento noturno encaminhou Reno para se tornar um agente da defesa civil!

Ao passar por uma densa parede de arbustos não-podados, de uma propriedade estadual, ele dobrou uma esquina e viu uma silhueta feminina.

Ela estava encostada em um poste de luz, como alguém que sabia exatamente como ocupar o espaço. Seus cabelos eram prateados, balançando delicadamente com a brisa. Seus olhos refletiam a luz com tons de fúcsia, mesclados a um âmbar crepuscular que parecia vívido demais para ser real.

A primeira coisa que chamou a atenção de Reno não foi a estranheza da cor dos cabelos dela - afinal, no Japão moderno, cores de cabelo inusitadas eram comuns entre os jovens. Foi a maneira como ela existia naquele espaço. Era como se a realidade se curvasse ligeiramente ao seu redor, criando uma bolha de atmosfera diferente. O ar próximo a ela parecia mais denso, carregado de uma energia que fazia os cabelos da nuca de Reno se arrepiarem.

Ela usava túnicas de linho com lenços em camadas que envolviam seu corpo. Claramente eram roupas de alfaitaria, mas era impossível saber se tinha sido ela mesma que havia costurado a própria saia ou se as tinha comprado, mas com certeza eram artesanais. Suas roupas pareciam uma ilusão de ótica, eu juro!

Os tecidos se moviam de forma hipnótica, como se fossem feitos de névoa solidificada. As camadas criavam profundidades impossíveis, dobras que pareciam se estender além do que os olhos conseguiam capturar. Havia bordados sutis nas bordas - símbolos que Reno não reconhecia, mas que de alguma forma pareciam familiares, como memórias de sonhos esquecidos.

No peito dela, meio escondido entre as dobras do linho, brilhava discretamente algo que parecia um pingente. Não era dourado nem prateado - era como se fosse feito de luz cristalizada, emanando um brilho suave que pulsava no ritmo de uma respiração.

Quando ela o notou, levantou-se do poste, inclinou a cabeça suavemente para a direita e levantou um dedo na direção dele.

"Boa noite", ela sussurrou. "...Depois de tanto tempo esperando, finalmente você apareceu."

Sua voz carregava sotaques de lugares inexistentes. Não era regional - nem de Tóquio, nem de Osaka, nem de qualquer parte do Japão que Reno conhecia. Era como se ela falasse japonês através de um filtro dimensional, cada sílaba carregada de harmônicos que vibravam em frequências que apenas a alma conseguia ouvir.

Reno congelou. A frase era ensaiada, mas ela não estava vendendo nada nem segurando nada com as mãos. Soou como ela estivesse ali há muito tempo, mas é muita comodidade esperar por um acaso tão significante.

Algo no fundo da mente de Reno - uma região que raramente era acessada, onde os instintos primordiais residiam - começou a gritar alarmes silenciosos. Não era medo, não exatamente. Era o reconhecimento de que algo fundamental sobre a realidade havia mudado naquele momento. Como quando se percebe que está sonhando, mas ainda não consegue acordar.

Ele piscou uma vez e, ignorando o peso da voz dela, continuou andando.

"Uma boa noite, senhorita."

"..."

Mas antes que ele pudesse dar o segundo passo, ela já estava lá.

"...!"

O deslocamento foi impossível de processar. Não foi velocidade - Reno conhecia velocidade, tinha visto motos passando em alta velocidade, tinha assistido a filmes de ação. Isso foi diferente. Foi como se ela tivesse apagado a distância entre eles, reescrevendo as leis básicas do espaço por um momento microscópico.

Ela não se moveu, apareceu ali, na frente dele. Num momento, estava a cinco metros de distância, no outro, bem na frente dele. Ela não se teletransportou, simplesmente substituiu o ar pela sua presença. Ela era rápida. Rápida como o instante entre o acendimento do fósforo e o surgimento da chama, rápida demais para o olho humano.

Uma lâmina, que brilhava em amarelo, emergiu como um sopro conjurado, de baixo para cima, perfurou rapidamente sua barriga.

A lâmina não era feita de metal. Reno teve tempo suficiente para perceber isso nos milissegundos entre a penetração e a dor. Era como se fosse forjada de luz solidificada, energia pura moldada em formato cortante. Emanava um calor que não era físico - era algo que queimava a alma antes de tocar a carne.

E então, no momento do impacto, algo extraordinário aconteceu. Por uma fração infinitesimal de segundo, Reno viu. Não com os olhos, mas com uma percepção que não sabia possuir. Viu fios de energia correndo pela lâmina como sangue dourado, viu a aura da mulher se expandindo em ondas concêntricas, viu sua própria energia vital reagindo ao toque invasor como um sistema imunológico espiritual.

Reno, no entanto, não gritou. Ele ouviu apenas o som de tecido rasgando, o suave gorgolejo da carne cedendo e, então, calor.

"O qu...?"

O calor subiu até suas costelas, o que fez com que ele caísse de joelhos.

"Meu trabalho fica mais fácil quando as pessoas olham diretamente para mim", disse ela. "Desculpe, acho que deve doer bastante."

Sua voz era clara e centrada, com uma qualidade clínica que contrastava bizarramente com o ato que acabara de cometer. Era como ouvir um cirurgião explicar um procedimento durante a operação - profissional, despersonalizado, mas não cruel.

Ela se agachou diante dele, examinando-o. Ele sentia o cheiro do linho lavado e envelhecido, e um leve odor de tinta de caneta. Havia outros aromas também - ozônio, como após uma tempestade elétrica, e algo metálico e doce que lembrava incenso queimado.

Reno abriu a boca, mas nada saiu. Sua mente lutava para processar o que estava acontecendo. Parte dele ainda acreditava que tudo aquilo era um pesadelo bizarro, que em breve acordaria em sua cama e riria da estranheza do sonho. Mas a dor era real demais, específica demais para ser produto da imaginação.

Quando encontrou forças para inspirar, ela já estava se levantando e andando para trás. Com um movimento fluido, ela se virou e sua silhueta começou a se afastar.

Ao se afastar, ela parecia se dissolver gradualmente na penumbra da rua, como se fosse feita da mesma substância que as sombras. Seus passos não faziam barulho contra o asfalto - era como assistir a um fantasma retornando ao reino dos mortos.

Foi somente quando ela desapareceu de sua vista que ele tocou na ferida.

A lâmina aparentemente deixou duas queimaduras, que mais pareciam cistos, e criou pequenos e claros buracos em sua pele.

Mas as marcas não eram feridas comuns. Tinham bordas perfeitamente simétricas, como se tivessem sido cauterizadas por um instrumento de precisão cirúrgica. E pulsavam. Não com dor - a dor já havia diminuído para um latejamento distante - mas com uma energia própria, como pequenos corações secundários batendo em sincronia com algo maior.

Quando Reno encostou a ponta dos dedos nas bordas da ferida, sentiu uma vibração elétrica subindo pelo braço. Por um momento, sua visão se expandiu - não ficou mais aguçada, mas mais ampla, como se pudesse perceber cores no espectro além do visível. As luzes da rua ganharam halos iridescentes, e ele jurava poder ver fios de energia conectando todos os postes, todas as janelas, todas as superfícies da cidade em uma rede luminosa invisível.

Ele não desmaiou, e isso o deixou orgulhoso mais tarde. Mas sangrou mais do que Reno imaginava ser possível, mal conseguindo chegar em casa com a manga apertada contra o buraco que vazava no peito. Nos dias que se seguiram, a ferida não se fechou completamente.

Nem uma semana depois, nem duas, nem meses depois, como feridas deveriam funcionar.

A ferida se comportava como uma entidade viva. Durante o dia, permanecia dormiente, apenas duas pequenas marcas circulares que pareciam tatuagens mal feitas. Mas à noite, especialmente durante pesadelos, ela reagia. Brilhava com uma luz âmbar fraca, e Reno podia jurar que às vezes sentia algo se mexendo lá dentro, como se pequenos organismos bioluminescentes tivessem feito ninhos em sua carne.

Médicos ficaram perplexos. Raios-X mostravam apenas sombras estranhas na região afetada - não metal, não tecido morto, mas algo que os equipamentos não conseguiam identificar. Um radiologista veterano murmurou algo sobre "densidade energética anômala" antes de recomendar que Reno procurasse um especialista em medicina alternativa.

Reno também não procurou a polícia ou qualquer meio jurídico, na verdade, nenhuma câmera de segurança registrou o momento, então ninguém soube do caso.

Quando finalmente reuniu coragem para voltar ao local do ataque, descobriu algo ainda mais perturbador. As câmeras de segurança da região haviam gravado tudo normalmente até exatamente o momento em que ele dobrou a esquina. Então, as imagens simplesmente pulavam - como se cinco minutos tivessem sido apagados da realidade. Nem mesmo sua figura aparecia nas gravações. Era como se aquela pequena porção de tempo e espaço tivesse sido excluída da continuidade normal do universo.

Foi um evento traumático, por isso, Reno comprou um carro algumas semanas depois.

Um poderia dizer que carros são muito mais perigosos que facas ou mulheres, mas, realmente, considerando a incredibilidade do acontecimento, eu também evitaria andar sozinho à noite.

O carro era um Honda Civic usado, nada especial, mas representava segurança e controle. Dentro dele, Reno sentia que podia escapar rapidamente de qualquer situação estranha. Instalou dashcams frontais e traseiras, comprou um kit de primeiros socorros extensivo, e sempre mantinha o tanque cheio.

Mas o mais importante era que o carro o protegia da estranheza crescente que parecia infectar as ruas de Tóquio. Nas semanas seguintes ao ataque, Reno começou a notar coisas que antes passavam despercebidas. Pessoas paradas em esquinas por tempo demais, olhando para o nada com expressões vazias. Luzes que piscavam em padrões que pareciam quase formar mensagens. Sons de baixa frequência que faziam seus ossos vibrarem.

E sempre, sempre, a sensação de que estava sendo observado.

Reno continuou vivendo como um assalariado classe-média. Ele se mudou algumas vezes, mas nunca conseguiu realizar o sonho de ter uma casa própria ou se casar.

A vida havia se estabilizado numa rotina melancólica. O escritório de advocacia prosperou moderadamente - não o suficiente para tornar Reno rico, mas o bastante para mantê-lo confortável. Ele desenvolveu uma reputação como especialista em casos "incomuns" - disputas que envolviam empresas com práticas questionáveis ou indivíduos com histórias bizarras que outros advogados preferiam evitar.

Não era por escolha. Simplesmente, clientes com problemas estranhos eram atraídos para ele como metal a um ímã. Pessoas que alegavam ter desenvolvido habilidades sobrenaturais após traumas, famílias processando organizações religiosas militares por recrutamento forçado, vítimas de ataques por grupos terroristas com métodos impossíveis de explicar.

Reno atendia a todos com a mesma seriedade profissional, mas no fundo sabia que não era coincidência. A ferida em seu peito - que continuava sem cicatrizar completamente - parecia funcionar como um farol para outras pessoas que haviam experimentado o impossível.

Dezenove anos depois, ainda não tinha realizado nem sequer uma de suas "grandes vontades", mas um novo problema apareceu em sua porta, literalmente.

Estava chovendo. E havia tanta água caindo do céu...!

Do tipo que soava como pequenas pedras caindo no chão.

O apartamento era pequeno, mas extremamente organizado. As coisas não se perdiam facilmente, e Reno, quando chamava qualquer convidado não deixava de mostrar todos os macetes de organização que havia desenvolvido.

Nas paredes, suas fotografias contavam a história de duas décadas de uma vida meticulosamente documentada. Paisagens urbanas capturadas em diferentes estações, retratos discretos de pessoas nas ruas, composições abstratas de luz e sombra. Mas observadores atentos poderiam notar um padrão sutil nas imagens mais recentes - todas continham pequenos detalhes anômalos: reflexos que não deveriam existir, sombras projetadas em ângulos impossíveis, pessoas no fundo com expressões levemente deslocadas da realidade.

A ferida havia mudado sua percepção visual de forma permanente. Através da lente da câmera, Reno conseguia capturar aspectos do mundo que outros não viam - ou escolhiam não ver.

No dia 17 de março, ele saiu cedo e foi até a praia para fotografar algumas paisagens e voltar para casa, mas a chuva causou um engarrafamento terrível nas ruas, então seus planejamentos foram por água a baixo.

A praia de Kamakura havia sido seu destino. Reno tinha uma teoria de que locais com grande concentração de energia emocional humana - lugares onde muitas pessoas haviam experimentado momentos significativos - eram mais propensos a revelar anomalias visuais em suas fotografias. Praias, especialmente, eram pontos de convergência energética: encontros românticos, despedidas dolorosas, momentos de contemplação existencial.

Mas a chuva torrencial tornou a viagem impossível. Era o tipo de tempestade que parecia sobrenatural - não apenas água caindo do céu, mas uma força meteorológica com personalidade própria, fustigando a cidade com uma fúria quase consciente.

Quando voltou, deixou sua câmera secando em uma toalha e serviu café instantâneo em uma caneca lascada, mas, ao fazê-lo, a campainha tocou.

Provavelmente era o carteiro, pelo menos. Mas que dedicação sincera entregar pacotes debaixo de uma chuva daquelas! Então, resolveu abrir a porta.

É normal ouvir das pessoas que você nunca sabe quem está atrás de uma porta, a menos que você olhe, de alguma maneira, através dela (como olhar por um olho-mágico) ou reconhecer pela voz, mas, na verdade, isso não era nem um pouco requisitado para o momento.

Pois lá estava ela.

O cabelo dela com a mesma cor impossível. Os olhos dela tão complicados quanto antes. As roupas dela estavam mais folgadas agora, entretanto.

Dezenove anos não haviam deixado marca visível nela. Se alguma coisa, parecia mais nítida, como se o tempo tivesse funcionado como um processo de refinamento, removendo imperfeições microscópicas e deixando apenas a essência mais pura de sua estranheza.

Ela segurava um guarda-chuva branco quebrado e saindo do topo e um pacote de biscoitos.

"Boa noite, Yuudai-kun. Meu nome é Platina Haoru."

Ela entrou antes que ele tivesse a oportunidade de falar qualquer coisa.

"É você..."

Que mulher esperta ela era... Quer dizer, ela continua tão esperta quanto da primeira vez!

Ela entrou antes que ele pudesse reagir. E ele não disse nada, não porque estava surpreso com a chegada de Platina, mas porque, lá no fundo, não sabia o que dizer para ela. Ele até tentou costurar alguma coisa com a voz, mas só construiu algumas sílabas irrelevantes.

A presença dela preencheu o apartamento de uma forma que desafiava as leis da física. Não era que ela ocupasse muito espaço - era pequena, delicada mesmo. Mas sua existência parecia se expandir além das dimensões visíveis, criando uma atmosfera que fazia o apartamento parecer simultaneamente menor e mais vasto.

O tempo parecia não tê-la tocado, ou, se tocou, fez isso de forma cuidadosa. Ela tirou os sapatos, colocou-os lado a lado no corredor e, sem pedir permissão, caminhou até a mesa da cozinha e colocou o pacote de biscoitos sobre ela.

O guarda-chuva quebrado ficou de pé encostado na parede.

Reno apenas observou ela caminhar pelo corredor. Ele estava confuso e tinha muitas perguntas, mas nenhuma que valesse a pena ser a primeira pergunta da interação.

Ela olhou pela janela da sala e esticou os braços para cima. Algo nela tranquilizava aquele ambiente já calmo.

Platina Haoru tem algo na sua aparência que parece etéreo. Suas ações, e sua maneira de se portar não são "normais". Mesmo que tente ser comum, não conseguiria. Não porque ela é essencialmente "estranha", mas porque ela não sabe nem que está sendo diferente, ou agindo não-naturalmente. Vamos dizer que Platina teria problemas se tivesse que agir "normalmente".

Era como assistir a alguém que havia aprendido sobre comportamento humano através de livros e documentários, mas nunca havia realmente observado humanos em seus ambientes naturais. Cada gesto era tecnicamente correto, mas executado com uma precisão que revelava sua artificialidade.

"Você manteve a câmera," ela comentou, sem olhar pra ele. "Ela ainda funciona?"

"..."

Reno recuou um pouco, dando um passo para trás, era impossível não se sentir intimidado.

"..."

"Você não mudou."

"...Você..."

Ele suspirou. Estava cansado demais para gritar, mas alerta demais para simplesmente aceitar.

"O que você quer?! Por que agora?!"

Ele perguntou, desacreditado. Aquela mulher registrou uma marca em seu peito e foi embora. "Lide com isso", pareceu sua intenção.

"Porque está quase pronto... Aquilo que eu deixei em você está quase pronto."

Ela disse isso como se falasse sobre um bolo assando. Como se o que fosse acontecer depois já estivesse em processo há muito tempo.

Havia uma qualidade inevitável em sua voz, como se ela fosse apenas um mensageiro entregando notícias sobre eventos que já haviam sido determinados por forças maiores. Não era malícia - era mais próximo da paciência infinita de processos geológicos.

"Pronto pra quê?" ele perguntou.

Ela se virou, finalmente encarando-o de frente. A luz da cozinha, amarelada e antiga, formava um halo desajeitado ao redor de sua figura.

"É complicado, mas, em termos oficiais, eu 'destravei' seu coração."

Ele não entendeu, mas decidiu não pedir explicações.

Ela abriu o pacote de biscoitos e comeu um em silêncio, enquanto Reno apenas observava. Platina Haoru estava ali. Com biscoitos, e extremamente convidativa!

"'Destravou?' Isso não faz nenhum sentido."

"Você tem razão", ela disse, sentando-se. "Mas fará. É cedo pra isso. Primeiro, me diga: como está a ferida, você está cuidando dela? Eu não espero que esteja passando algum cicatrizante ou pomada antisséptica, mas é ideal que esteja lavando-a e que não esteja a expondo tanto à luz solar."

A familiaridade com que ela falava sobre a ferida era perturbadora. Como um médico discutindo o progresso de um tratamento experimental com um paciente colaborativo.

Ele pensou por um instante. "Eu a lavo sim, mas, por favor, me diga. O que é esta coisa?!"

Platina assentiu, e depois olhou para a lâmpada falhando, da sala do apartamento. "Você está acelerando muito as coisas, Yuudai-kun."

A frase pairou no ar por tempo demais, e o apito da chaleira cessou sozinho. Ela se sentou na cadeira de madeira, uma das duas da cozinha, e puxou o pacote de biscoitos. Rasgou o plástico com as mãos nuas, retirou um e o partiu ao meio. Metade ficou na mesa, intocada, e a outra, ela comeu devagar.

"Você ficou bem," ela comentou, com a boca cheia, mas sem perder a dicção. "Na medida do possível."

Ela limpou as mãos na perna da túnica e olhou ao redor. Seus olhos passavam pelas coisas naturalmente. Reno pensou em perguntar onde ela esteve, por que não apareceu antes, se ela fez o mesmo com outras pessoas, mas não disse nada.

Ele estava escutando, e aquilo era mais importante.

"Você procurou ajuda médica?", perguntou ela, olhando para algumas caixas de remédio na mesa.

"Sim... Quer dizer... Visitei alguns consultórios..."

"...Se tivesse feito qualquer procedimento cirúrgico, você teria morrido. Digamos que a 'ferida' é reativa. Ela protege a si mesma, e você virou uma espécie de invólucro. Um tipo de contenção viva."

A declaração foi entregue com a mesma casualidade com que alguém poderia comentar sobre o clima. Mas Reno sentiu um arrepio percorrer sua espinha ao ouvir as palavras "contenção viva". Implicava que algo estava sendo contido dentro dele, algo que precisava ser mantido sob controle.

"...E o que acontece se eu não quiser ser isso?"

"Não é uma questão de querer. Não há mais nada que se possa fazer, Yuudai-kun."

Ela falava sem arrogância. O tom era prático e preciso, aquilo era uma explicação sobre instruções básicas de sobrevivência.

Reno se recostou no balcão e passou a mão pelos cabelos. Estavam mais finos do que se lembrava. O espelho do armário acima da pia devolvia o reflexo de alguém cansado, mas inteiro, o que por si só, já era muito deprimente.

"Mas isto ainda está muito estranho. O que isso é, afinal?!"

Platina assentiu e levantou-se da cadeira. Deu dois passos ao lado para se centralizar na sala e olhou em volta.

"Yuudai-kun, por acaso este apartamento poderia me ceder papel e caneta?"

"Nesta gaveta, eu acho," Reno respondeu.

Platina abriu a gaveta indicada por Reno, puxando uma folha de papel branca um pouco amarelada pelo tempo e uma caneta de corpo metálico. Sentou-se novamente à mesa e alisou o papel com a palma da mão, fazendo parecer que aquilo era algo muito importante. Reno permaneceu encostado no balcão, com os braços cruzados, observando em silêncio.

"É difícil explicar diretamente," disse ela, com calma, enquanto desenhava.

O primeiro traço foi o contorno de um círculo. "Isso aqui é o corpo humano," ela começou, girando o papel ligeiramente para manter o traço. "Dentro dele, todas as funções acontecem normalmente. Digestão, pensamento e envelhecimento, o ciclo comum de qualquer ser vivo."

Ela desenhou pequenas setas dentro do círculo, girando em sentido horário. Cada movimento da caneta era deliberado, preciso, como se estivesse transcrevendo informações de um manual técnico invisível.

"Mas o mundo mudou nos últimos vinte anos, Yuudai-kun. O que vocês chamam de 'normalidade' é apenas a superfície de algo muito mais complexo."

Reno observou os traços se formarem, hipnotizado pela precisão quase mecânica com que ela desenhava.

"Você já ouviu falar do Pentáculo?" ela perguntou, sem levantar os olhos do papel.

"A organização religiosa? Li algumas notícias..."

"Religiosa e militar. Eles pregam que certas pessoas são escolhidas para carregar fardos especiais. Que trauma e dor podem ser catalisadores para... evolução." Ela fez uma pausa. "Eles não estão completamente errados, apenas brutais em seus métodos."

Platina traçou uma linha vertical, que cortava o círculo de cima a baixo. Depois, somou pequenos estilhaços saindo da linha.

"Em algum momento da sua vida, principalmente os momentos de tristeza, de tensão, de dor, de perda... Uma rachadura pode surgir, e essa rachadura gera uma chama que começa a queimar sua carne."

Ela desenhou um pequeno olho no centro da rachadura.

"Uma janela para algo que está do outro lado."

Reno franziu a testa. "Você tá me dizendo que essa ferida que você fez em mim é uma janela?"

"Em partes. Eu não criei a janela, ela já estava lá, eu só abri a cortina. Modestamente, eu tenho facilidade em identificar essas coisas."

Ela continuou desenhando. Agora, em volta do círculo, fez traços finos, como raízes.

"Quando algo de ruim acontece, há uma chance de seu coração aumentar de temperatura, e, eventualmente, pegar fogo. Ela precisa de uma forma, de um caminho. É por isso que ela se manifesta como algo que chamamos de 'Faísca da Alma'."

"Faísca da Alma..." Reno repetiu as palavras, testando como soavam em sua boca. Havia algo familiar nelas, como se fossem parte de um vocabulário que ele conhecia mas nunca havia usado conscientemente.

"Exato. E existem dois destinos possíveis para quem desenvolve uma Faísca." Ela desenhou duas setas saindo do círculo original. "Ou a pessoa morre durante o processo de Ascensão - que é como chamamos o despertar inicial - ou consegue se adaptar e se torna o que conhecemos como um Ardente."

Reno olhou para os desenhos e depois para Platina. "Isso não é muito diferente de magia."

"Não é. E também não é diferente de física quântica em alguns aspectos," ela respondeu, com naturalidade. "A diferença é que, se você entrar numa briga agora e o seu coração acelerar, ele pode sair do controle. Porque ela ainda não reconhece você como recipiente estável."

Ela desenhou, então, uma pequena silhueta humana com uma chama dentro do peito.

"E se ela sair do controle?"

Platina desenhou a chama se expandindo, rasgando os contornos da silhueta.

"Você explode," disse ela com uma serenidade absurda. "Ou consome os outros ao seu redor."

O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo som da chuva contra a janela. Reno processou a informação, tentando conectá-la com fragmentos de notícias estranhas que havia lido ao longo dos anos.

"Os ataques terroristas," ele disse lentamente. "Os grupos como Os Xerifes... eles são Ardentes?"

"Alguns, sim. Outros são apenas pessoas desesperadas usando Ardentes. É complicado." Ela fez um gesto vago com a mão. "O Pentáculo recruta pessoas à força, alegando servir a um propósito divino. Os Xerifes reagem com violência, alegando liberdade. No meio de tudo isso, civis inocentes sofrem."

"E você? De que lado está?"

Platina sorriu - o primeiro sorriso genuíno que ela demonstrara desde que chegara.

"Eu não estou em lado nenhum, Yuudai-kun. Eu sou mais como... uma jardineira. Planto sementes quando necessário, reguo quando apropriado, e colho quando é hora."

"E você não vai me dizer qual é?"

Ela olhou para Reno com seriedade, como quem pondera antes de entregar uma resposta.

"Você conseguiu ficar de pé com um buraco no peito por dias. Isso não é comum."

Havia orgulho em sua voz, como se ela estivesse elogiando uma obra de arte que havia criado.

"A maioria das pessoas que passo por esse processo inicial morre em poucas horas. A Faísca consome tudo muito rapidamente. Mas você... você foi resiliente. Teimoso até."

"Não me senti teimoso. Me senti aterrorizado."

"Terror pode ser uma forma de teimosia," ela disse filosoficamente. "Recusar-se a aceitar que algo impossível está acontecendo é, de certa forma, uma resistência à mudança fundamental."

Platina dobrou o papel com cuidado e o entregou a ele. "Guarde isso. Vai ser útil mais pra frente."

Reno pegou o papel, dobrado em quatro, e o enfiou no bolso da jaqueta.

"E agora?"

"Agora?" Ela se levantou. "Agora, você viverá com ela e provavelmente terá que admitir que faz parte da sua vida. Eu salvei a sua vida, pode-se dizer. Nenhum diploma de medicina faria isso."

Ela pegou o guarda-chuva quebrado, deu dois passos até a porta, e então parou, sem se virar.

"Ah, e Yuudai-kun..."

"Sim?"

"Você provavelmente terá que me ver de novo, em breve."