Coragem e Fé

Luppo despertou com o som de gotas batendo contra o vidro simulado do teto digital. A claridade suave da manhã entrava filtrada, simulando um céu nublado, com um leve tom acinzentado que envolvia o ambiente inteiro numa calma artificial. A cama havia sido arrumada com lençóis simples, mas limpos. O quarto tinha uma pequena escrivaninha, uma cadeira giratória torta e um armário vazio. Por um instante, Luppo achou que estava num sonho, o colchão era surpreendentemente macio, o quarto era pequeno e acolhedor, e ele não sentia o menor traço de medo, dor ou pressa.

Quando tentou se levantar, porém, um barulho ensurdecedor e seco soou de seu ouvido esquerdo.

"E OLHA SÓ QUEM ACORDOU!"

Um vulto saltou sobre ele com a velocidade de um míssil. Luppo caiu de costas na cama, quase cuspindo o coração pela boca.

"Bom dia! Dormiu bem? Sonhou com cavalos? Com bruxas? Comigo? Ou melhor, com o que você sonha? Você... sonha...? No geral...?" Kariko levou os dedos aos olhos e afastou suas pálpebras. Ele estava sorrindo a todo momento, com os dentes todos à mostra, empoleirado em cima da escrivaninha como um gato hiperativo!

Luppo se levantou completamente, fazendo força com os braços. "Você quer me matar?!"

"Claro que não! Aliás, bem-vindo à Scoville! Agora você é oficialmente do nosso time."

Luppo tentou levantar, tateando os lençóis até encontrar suas botas.

"Vocês realmente não são normais, não é?"

"Mas a pergunta que não quer calar... Luppo, com o que diabos você sonha?!"

"Ah, hmm... eu não tenho impulso visual, então eu não sonho com nenhuma figura."

"Hummmmm..." Kariko desceu da escrivaninha e começou a andar pelo quarto, levando sua mão direita ao queixo. "Nenhuma figura...? Então você pode sonhar, por exemplo, com barulhos e cheiros?"

"Sim~, na verdade, na maioria das vezes, eu sonho com uma combinação dos dois..."

"...Entendi............ Senhoras e senhores, apresento-lhes o novíssimo Ardente em potencial! Aplausos, por favor!" Kariko ajudou Luppo a levantar, e, então, num movimento absurdamente teatral, abriu a porta do quarto como se estivesse apresentando um palco.

"Kariko, se acordar mais alguém assim, eu vou costurar sua boca."

Platina já estava em sua porta, segurando um novelo de lã e uma revista. Seu olhar era sério e macabro, sua voz fria e monótona, praticamente em uníssono. Até mesmo Luppo se amedrontou com sua presença.

"Ela me adora," disse Kariko, piscando com desfaçatez.

"Ela me dá medo."

"Ela é o equilíbrio da casa..." respondeu Kariko, agora pendurado de cabeça pra baixo no batente da porta. "Então, mmmaravilhoso." Kariko deu uma cambalhota no ar e o empurrou suavemente na direção da cozinha comum. “Vai lá. Reno quer te ver antes do almoço. Diz que tem ‘novidades importantíssimas’ pra te contar. E quando ele fala com esse tom, normalmente envolve algo 'realmente importante'."

A cozinha estava movimentada de manhã.

Os raios solares infiltrando as janelas de concreto só não eram mais ofuscantes do que os brilhos pulsantes que um dispositivo de Rokoto acoplado a uma panela emitiam. 

A panela estava borbulhando, e o fogão estava conectado a uma bateria de carro.

Rokoto usava óculos de proteção absurdamente exagerados, com múltiplas lentes rotativas, como os de um relojoeiro nuclear. Ele vestia um avental com estampas de circuitos elétricos e uma luva de borracha em apenas uma das mãos — a outra estava coberta por um exoesqueleto metálico que fazia leves ruídos mecânicos a cada movimento de dedo.

"Temperatura a 99.6º Celsius! Inclinação do vapor a 14°, teor de condutividade do ovo em nível quase ideal... I... Ideal agora!" Ele cheirou o ar com intensidade. "Adicionando... três gotas do molho especial Rokoto, todos os direitos reservados, distribuição proibida". Ele disse muito rapidamente! "... Saindo um ovo cozido perfeito!"

Karorina estava completamente indiferente à cena, folheava seu livro lentamente, com a cabeça levemente inclinada, enquanto tomava uma xícara de café, como se nada ao seu redor fosse digno de nota.

Reno porém estava sentado ao centro da mesa redonda, com papéis espalhados na frente.

"Bom dia, Luppo," disse ele, levantando a cabeça.

"Você me chamou?"

"Sim." Reno organizou rapidamente os documentos à sua frente e passou uma pasta fina até Luppo. “Toque aqui. É o dossiê da próxima missão.”

Luppo correu os dedos pela pasta, mas franziu o cenho quando tateou a papelada mais uma vez.

"E como diabos eu vou ler isso?!", gritou excessivamente.

"Oh, perdão, eu me esqueci..." Reno deu dois toques na mesa com a ponta dos dedos indicadores e médio, e, num piscar de olhos, uma série de padrões pontilhados surgiu sobre toda a superfície do documento. "Pronto. Eu estudei Braille na faculdade, então creio que não seja um problema para você."

"A sua sorte é que eu também aprendi Braille nas aulas do Pentáculo."

Reno sorriu com um ar de orgulho discreto. Luppo sentiu as pontas dos dedos vibrarem levemente conforme lia a primeira página. A textura do papel era fina e firme, e os pontilhados estavam em relevo perfeito. Era um relatório tático, e ele conseguia reconhecer a estrutura quase instintivamente.

“Missão externa,” murmurou ele. “Setor industrial abandonado de Shinjuku... Investigar atividade de faíscas ainda não identificadas.”

“Exatamente,” Reno confirmou. “Três explosões foram detectadas nas últimas 48 horas. Nenhuma confirmação de vítimas, mas o padrão de calor residual é igualmente avassalador em todos os casos.

Luppo franziu o cenho. “Então é um Ardente?”

“Definitivamente ” Reno apoiou o queixo sobre os nós dos dedos. “É por isso que vamos em trio. Não sabemos quantos são e onde eles estão neste exato momento, então eu e você vamos ficar patrulhando a zona industrial e Platina operará vagando pelos arredores."

Nesse momento, Rokoto virou a cabeça na direção dos dois, sem sair do lado da panela. “Se tiverem sorte, o cara vai explodir que nem um foguete de batata!”

“Se tiverem azar, explode igual um foguete de verdade,” completou Karorina, sem desviar os olhos do livro.

“O otimismo de vocês é contagiante,” respondeu Reno, com um sorriso cínico.

Kariko apareceu, comendo um saquinho de biscoitos coloridos de procedência duvidosa. “Se tudo der certo, me tragam um pedaço do cara. Quero ver o cheiro da alma dele!”

“Você é tão nojento que dá a volta e vira quase legal,” comentou Karorina.

“Quase,” murmurou Platina, que passava atrás dos dois em silêncio absoluto, seu perfume de hortelã e lavanda invadindo brevemente o ar antes de desaparecer tão rápido quanto veio. Reno se levantou, recolhendo os papéis. “Partimos em trinta minutos. Luppo, desça até o setor de armamentos com o Rokoto. Ele vai te entregar algo que pode te ajudar. Não quero que entre desarmado.”

“Ah, e Luppo,” disse Rokoto, com um sorriso cheio de dentes, agora segurando uma maleta cheia de ferramentas e fios soltos. “Você vai amar o que eu preparei pra você. Eu tive... ideias.”

“Isso nunca é bom sinal vindo de você.”

“Não é mesmo,” Karorina comentou baixinho.

"É UMA BOA IDEIA DESSA VEZ!"

Luppo suspirou, pegando a bengala dobrável que deixara escorada na lateral da bancada. Ele girou a base, e a bengala se estendeu com um estalo suave.

“Vamos nessa, então."

“Sem promessas!” respondeu Reno, já andando com passadas largas e exageradamente saltitantes.

Kariko ficou observando os dois saírem pela lateral da base, o som das botas ecoando pelo corredor de concreto e aço. Por um instante, ele fitou a xícara de café vazia à sua frente, em silêncio. “Por que o Reno está levando ele para uma missão perigosa, mesmo na situação que ele se encontra?”, perguntou, sentado em uma das poltronas do centro de cabeça para baixo, com as pernas sobre o encosto.

“Se o Reno o chamou, provavelmente tem um motivo,” Karorina respondeu. “Com certeza, na verdade. Mesmo considerando o estado dele, Rokoto já registrou ardência vinda de seu coração, a qualquer momento, ele vai explodir.”

Kariko parou de mascar os biscoitos por um segundo e sorriu com um olhar mais sério do que o normal. “Vai ser divertido ver isso.”

• • •

“Pensei em pelo menos quatro designs só essa manhã. O primeiro era uma bengala que vira um lança-chamas, mas achei pouco sutil. O segundo era uma bengala que dispara uma corda com gancho, mas aí lembrei que você não tem visão, então podia ser um pouco inconveniente...”

O corredor que ligava o refeitório ao setor de armamentos era estreito, úmido e com o teto ligeiramente baixo demais. As luzes fluorescentes piscavam ocasionalmente, como se estivessem presas num ciclo de ansiedade elétrica. Luppo tocava as paredes com a mão livre, contando os passos e os zumbidos, enquanto Rokoto falava sem parar ao seu lado.

“Rokoto.”

“Sim?”

“Só me dá algo que funcione.”

Rokoto parou de andar e ficou quieto por três segundos inteiros — o que era um recorde. Então abriu uma porta blindada com um gesto exagerado, digitando um código de três digitos num painel de LED.

“Bem-vindo ao paraíso, Luppo-kun.”

O interior da sala era uma bagunça organizada: prateleiras cheias de peças de metal, mesas lotadas de ferramentas, braços mecânicos pendendo do teto e luzes azuladas que projetavam desenhos técnicos holográficos no ar. No centro da sala, sobre um pedestal giratório, repousava um objeto envolto por um pano cinza.

Rokoto caminhou até ele, tirando o pano com um floreio. Era uma bengala feita de um material escuro e fosco, com pequenos segmentos metálicos embutidos ao longo da estrutura, ela parecia resistente, mas leve. Um fio azul pulsava em linhas discretas por dentro do tubo, e havia um botão giratório perto do cabo. Na base, uma espécie de orbe magnetizado estava acoplado, sugerindo que a bengala tinha mais utilidade do que apenas apoio.

“Apresento-lhe: Shakuhachi,” disse Rokoto, com orgulho. “Três modos principais: apoio comum, sensor de calor e vibrações de Faísca. Ela pulsa conforme sua energia interior. Quanto mais forte seu coração bater, mais ela reage.”

Luppo tocou a bengala com as pontas dos dedos e sentiu a superfície mudar levemente sob seu toque.

“Ela vibra em frequências diferentes se detectar outras Faíscas por perto,” continuou Rokoto. “E se o botão da base for girado até o final... bom, digamos que você pode usar como um bastão de energia condensada. Mas o Núcleo artificial que eu implantei só aguenta uma ativação de 10 segundos por vez.”

“Ela vibra em frequências diferentes se detectar outras Faíscas por perto,” continuou Rokoto. “E se o botão da base for girado até o final... bom, digamos que você pode usar como um bastão de energia condensada. Mas o Núcleo artificial que eu implantei só aguenta uma ativação de 10 segundos por vez.”

Ele se inclinou para mais perto de Luppo, quase como se fosse confidenciar um segredo proibido.

“O núcleo é feito de um composto que chamo de Ressonância. Ele imita parcialmente as propriedades de uma Faísca verdadeira, mas é altamente instável. O que significa que, após dez segundos de uso contínuo, a estrutura interna entra em sobrecarga, o que pode facilmente derreter uma mão ou até um braço inteiro, e..."

Luppo recuou instintivamente.

"...!"

“Mas calma! Eu disse pode! As chances são baixíssimas! O ponto é: se sentir o cabo começar a vibrar descontroladamente, solte na hora. E não, não tente usar como abridor de garrafas, é pra ser usado somente em missões e quando você precisar muito de ajuda.”

Luppo ergueu a bengala com ambas as mãos, sentindo o peso bem distribuído. Ela era firme e silenciosa, mas ao pressionar levemente o botão giratório com o polegar, pôde ouvir um motor microscópico sendo acordado e sentir um zumbido suave correndo pelo cabo.

“Esse modo... o de bastão,” Luppo murmurou. “Ele serve só pra ataque?”

Rokoto abriu um sorriso doentio.

“Não só para ataque. Por exemplo, o modo de Energia Condensada transforma a bengala num condutor de pulsos vibracionais. Você pode usá-lo para ataques de impacto, claro, mas também para ecoar pelo ambiente ao redor. É como bater o coração contra o mundo e deixar o mundo responder de volta. Ideal para cegos, inclusive. Você pode escanear estruturas, identificar vibrações de movimento. A Faísca tem um campo de influência que se comporta como uma aura, então a Shakuhachi lê essas flutuações quando você a ativa. Como se você tivesse uma extensão tátil."

Luppo passou os dedos pelo centro do bastão. Havia uma linha sutil ali, como uma costura invisível. E quando ele pressionou essa linha com mais intenção, um pequeno estalido liberou uma segunda função: uma ponta retrátil saiu da base — semelhante à lâmina de um florete curto, pulsando em tons azulados.

Luppo respirou fundo. A quantidade de informação era absurda, mas ele conseguia sentir que aquele objeto não era apenas uma arma. Rokoto se afastou com os braços cruzados atrás da cabeça.

“Agora o lema da Scoville”

“Hm? Lema?”

“Arde em meu peito coragem e fé.”

Luppo ergueu a cabeça, curioso. Ainda não tinham lhe contado isso. Rokoto se virou devagar e sorriu, os olhos brilhando por trás dos óculos multi-lente.

"Boa sorte, Aomine Luppo."