Contracapa

Na cidade de Porto Alegre vivia uma garota e uma velhinha. Elas viviam juntas num prédio antigo no centro da cidade, na Avenida Andradas. Um prédio que já foi mais bem cuidado, mas que de todo modo se mantivera imponente pela sua arquitetura um tanto rebuscada de detalhes e desenhos góticos – mesmo que poucos o reparaçem. Moravam no apartamento de número 406, gostavam de sua casinha, era decorada do jeito delas: penas de pavão, luminárias apedrejadas de pedras vermelhas e verdes, cortinas de setin verde e azul, parquês em formato de anacondas, drapeados dourados nos tapetes marroquinos, obras de arte nas paredes feitas por elas, muitas muitas plantas floridas e móveis de mogno decorados com imagens de dragões e tigres chineses. Era um verdadeiro desbunde, um ultraje maximalista entre artnoveau, artdeco e breguice sem fim, mas elas amavam impassivelmente. Elas abriam de vez em quando as enormes janelas brancas, que contrastavam com o prédio cinza escuro e suas manchas negras pelo tempo. A menininha adorava pescar com o seu anzol infinito o celular dos que passavam. “eles nunca saberão que sempre fui eu…” A velhinha era sua avó que passava o dia cozinhando pras duas, e fazendo sua batida de mousse de maracujá e café – ela dizia que isso lhe dava mais anos de vida. As duas costuravam, vendiam peças sobre medida, adoravam fazer vestidos, e os faziam com maestria - fazia pouco tempo que se regularizaram como microempresa. Já era hora de Gerullyndia receber mais do dinheiro de suas roupas e aposentadoria.

Evéllynn gostava de um garoto. Seu nome era Sevgné, vivia também no centro, mas mais afastado perto da escadaria da Borges de Medeiros. Era meio bruxo, mas não gostava desse lado. A família de sua mãe era descendente de holandeses na época das invasões, a linhagem foi vindo vindo e acabou na sala do parto do Moinhos. Aliás todos os bruxos, desde os pobrinhos, tinham que dar um jeito em nascer no bairro Moinhos. Isso porque a família real do mundo sobrenatural da cidade viveu lá, e foram os primeiros a istituir a sua autocracia. Quando houve isso foi se firmado um pacto entre os seres Lluvios, os espiritos da natureza com os Laggerdoffs, neste dia em diante para um bruxo ou bruxa serem abençoados e não sofrerem pelas mãos de outros sobrenaturais, lá tinham que nascerem: era a terra lustra. Gerullyndia estave nesse dia, e ela vibrava quando os Laggerdoff conseguiram arrancar os aracneicos da cidade, claro eles ainda viviam pelo Rio Grande do Sul, mas agora tinham muito medo das famílias amigas dos Laggerdoffs. “Hoje em dia mudou muita coisa…” era o que ela dizia para si mesmo toda vez que via as novas gerações, eles não sabiam mais da história da onde vinham e das responsabilidades que essa vida deveriam ser concluídas. A coisa mais difícil é encucar na cabeca de um novo bruxo as histórias do passado, não que elas não possam ser tidas na língua, mas vislumbradas; isso só acontecia quando um bruxo tinha o treinamento para isso. Antigamente todos tinham. Hoje em dia são raros. E parece que um dia acabara. E quando isso acabar não haverá mais magia para essa raça. 

Mas nem tudo são pesares, a vida dos jovens era um tanto quanto secreta. Eles sabiam das histórias dos mais velhos, sabiam do vislumbre e reconheciam que ainda não estavam treinados o suficiente, Mas isso era porque não havia mais escolas sobrenaturais. Com o fim do conclave: Laggerdoffs, Olivviera e Reffertu, eram essas famílias de bruxos que ensinavam os que vieram antes deles. Como não havia isso, muitos tinham que ficar e estudar junto com os comuns, os seres humanos, as pessoas dos celulares de Evellynn. Quem queria vislumbrar a história, tinha que viajar além terra-mar, acabava treinando em outro conclave com outras famílias, com os Llustres deles, e o que acontecia: acabavam vislumbrado a história desses lugares. Acabavam ficando por lá mesmo, esquecendo suas raízes e mais uma família bruxa se diluia aos pouquinhos acabar. Os que queriam seguir o caminho mais difícil tinham que morar com os mais velhos, os sábios senhores do vislumbre, os únicos capazes de poderem ao seu modo passar esse treino, e isso significava passar horas com esses velhos loucos. Alguns gostavam, outros eram obrigados. E o que eram obrigados, acabavam nunca chegando lá. Era uma questão complicada. E a corrida para uma nova família conquistar a posse da cidade estava sempre rondando a cabeça de todos. Já que os mais poderosos sumiram do poder, depois da guerra farroupilha – o que já fazia um bom tempo – muitas incursões que somente acabavam em perca de magia e ou morte fizeram todos se fecharem, mas a vontade nunca cessou. Evellynn sonhava em ter sua avó e ela no topo, na reconstituição da autocracia de bruxos portoalegrenses e no império de seus inumeros sonhos, mas havia tantas pedras no caminho.