Capítulo 1 – A Sombra Nascida na Sarjeta

Ano de 1347.

Nos becos e vielas esquecidas pelo tempo, onde a luz do Império mal ousava tocar, uma criança jazia no chão frio e úmido. Sua pele era tão fina e pálida que os ossos pareciam prestes a rasgar por dentro. Pequena. Frágil. Abandonada. Seus olhos semiabertos mal conseguiam distinguir o que era chuva e o que era sangue escorrendo por sua face machucada.

**Drakon.**

Este era o nome que um dia lhe deram. Mas agora... já não parecia importar.

O corpo coberto de hematomas denunciava mais uma surra — não de soldados, mas de outras crianças, igualmente quebradas pela vida. Aquela rua, fétida e esquecida, seria seu túmulo. Os ratos e cães famintos o farejavam à distância.

**Ele já havia aceitado que morreria.**

E, no fundo, havia encontrado nisso um estranho conforto. Finalmente, o sofrimento cessaria. A dor nos ossos. A fome que doía mais que as pancadas. O desprezo do mundo. Tudo terminaria.

> *“Se for agora... talvez seja melhor.”*

Foi nesse momento, entre a vida que se esvaía e a morte que se aproximava, que o destino agiu de forma incomum.

Naquela mesma noite, os cascos de quatro cavalos negros tocaram o chão de pedra. Rítmicos, elegantes, impecáveis. Uma carruagem — preta como obsidiana, adornada com detalhes dourados que reluziam como fogo sagrado — cruzava as ruas escuras com um silêncio majestoso.

Dentro dela, uma criança de sete anos, de olhos claros e cabelos dourados como trigo ao sol, espiava o mundo através de uma pequena janela. Seu nome... não era dito com leveza. Ela era **a princesa.**

O gemido fraco de dor vindo do beco fez com que seus olhos se estreitassem. Ela viu o corpo. Parou a carruagem. E contra o protocolo, contra os protestos dos guardas... **saltou.**

— **Resgatem ele. Agora. Levem ao curandeiro real.**

Um dos guardas, confuso e incomodado, falou:

— Princesa, esse rato já está praticamente morto... foi abandonado... não serve de nada.

Outro guarda, mais experiente, murmurou ao pé do ouvido:

— Não é inteligente contrariar ela... apenas obedeça.

E assim, aquele menino esquecido foi levado ao castelo.

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### O Curandeiro e o Trono

O salão do curandeiro real era frio, amplo e carregado de odores indescritíveis. Frascos borbulhavam. Runas brilhavam em círculos no chão. Livros ancestrais murmuravam palavras entre suas páginas fechadas.

Drakon abriu os olhos. As luzes o cegaram por um instante. Estava deitado sobre um leito de pedra coberto por um lençol de seda.

Diante dele... **a menina.**

— **Sabe quem sou?** — ela perguntou com voz suave, porém firme.

Drakon piscou. Tentou sentar, mas não conseguiu.

— N-não, senhora...

Uma risada seca ecoou atrás dela.

— *Ela é a princesa. A herdeira do Império, seu tolo.* — disse o curandeiro, um homem de olhos fundos, pele acinzentada e dedos cobertos de anéis mágicos. Seu nome era **Kavhar**.

Drakon arregalou os olhos. Com esforço, ajoelhou-se, curvando a cabeça.

— Obrigado... pela misericórdia...

Antes que ela respondesse, os portões da sala se abriram. Um frio súbito invadiu o ambiente.

**O Imperador.**

Sua presença era esmagadora. O silêncio se formava ao seu redor como um feitiço. Cada passo seu ecoava como trovões.

— **Levante a cabeça.** — disse ele.

Drakon obedeceu.

— **Você foi salvo por minha filha. Agora tem uma escolha. Pode ir... e morrer esquecido. Ou ficar... e proteger com a vida que ela te deu.**

Drakon não hesitou:

— Eu fico. Eu sirvo.

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### A Forja do Guardião

Os anos seguintes foram o inferno na terra.

**Treinamento militar, arcano, físico e mental.**

Combate com espada. Lança. Arremesso de machado. Defesa com escudo. Leitura e compreensão de feitiços antigos. Controle de mana sob dor. Magia de resistência. Corridas entre as florestas encantadas e labirintos subterrâneos. Nenhum dia sem dor. Nenhuma noite sem ferimentos.

Drakon sangrou. Vomitou. Caiu. Mas sempre se levantou.

Havia 45 jovens ao seu lado no começo. Aos poucos... caíram. Alguns fugiram. Outros enlouqueceram. Muitos morreram nos testes. **Restaram três.**

Entre os treinos, o curandeiro Kavhar o chamava secretamente. Fazia-o beber líquidos cintilantes, alguns negros como breu. Substâncias densas, algumas vivas. Uma noite, Drakon jurou ver **um olho flutuando** dentro do frasco.

Bebeu mesmo assim.

No outro dia, sentia-se mais rápido. Mais forte. Mais feroz.

Seus olhos começaram a brilhar.

Suas presas cresceram discretamente.

**Algo estava mudando.**

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### A Última Provação

O último teste seria naquela noite.

Três sobreviventes.

Uma arena.

E o julgamento final, às vésperas da coroação da princesa.

Drakon não sentia medo.

**Sentia excitação.**

Seus dois oponentes — um garoto corpulento e uma jovem ágil — estavam tensos.

Drakon apenas sorriu.

— *Podiam ser nove... e ainda seria fácil.*

A luta começou.

Eram criaturas, não soldados. Ogros. Vampiros. Bruxas. Lichs. Cães das sombras.

Invocações das trevas, criadas para destruir.

Drakon foi o primeiro a avançar.

Espada em mãos. Sede no olhar.

Do alto, o imperador observava com frieza.

— Ele está... diferente. — murmurou.

— *Feitiços alquímicos, meu senhor.* — respondeu Kavhar. — *Mas o desejo de matar... isso é dele.*

As presas de Drakon surgiam com mais nitidez.

Seus olhos dourados brilhavam no escuro.

Ele esmagou, cortou, dilacerou.

27 pontos marcados.

Os outros tinham 13 e 16.

No fim, os rivais tombaram.

Um partido ao meio.

O outro esmagado por um troll da montanha.

**Drakon era o último.**

**O vencedor.**

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### A Coroação

Na manhã seguinte, o salão dourado do trono se encheu de música e falsidade.

Drakon estava atrás da princesa.

Camisa preta. Calça e botas negras.

No peito, bordada em dourado: **uma única coroa.**

**Ele não era um nobre.

Era a sombra da nova imperatriz.**

Curvado. Silencioso. Atento.

Os nobres riam. Brindavam.

Cada um com seus guardas.

Mas Drakon sentia.

Algo estava errado.

Um guarda se aproximou demais da princesa.

A mão na espada.

Drakon se ergueu.

— **Não há motivos pra sacar a arma... mantenha a distância.**

O salão parou.

O Duque fingiu sorrir.

— Perdão, Alteza. Um mal-entendido...

Drakon não sorriu.

**A sombra não perdoava.**

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### A Ordem da Princesa

Ao fim da festa, a princesa se retirou.

Drakon a acompanhou em silêncio até seus aposentos.

Ali, diante do leito dourado, ela disse:

— **A partir de hoje... dormirás aos meus pés.**

Drakon não questionou.

Sentou-se no chão de pedra.

Espada ao alcance.

Olhos semicerrados.

— *Enquanto você estiver aqui... eu posso dormir.* — murmurou ela.

E ele permaneceu.

**Porque a sombra... nunca dorme.**