A escuridão da vala não era mais o único mundo que eu conhecia — minha mente já vagava além das pilhas de ossos e carne ressecada.
Eu estava me curando.E, pela primeira vez, pensava no que viria depois.
A cicatrização avançava rápido, e a energia fluía renovada por meus anéis, pelas placas restauradas, pelo núcleo ardente que pulsava em silêncio. O tempo de esperar acabara.
Eu precisava agir.
O Laceratus não era um predador comum.
Era astuto, rápido, um caçador feito para sobreviver fora da vala. Seus olhos traseiros captavam cada movimento ao redor. Suas lâminas ósseas pareciam cortá-lo do próprio chão enquanto caminhava, sem pressa, mas com letalidade absoluta.
Ele não apenas comia.Ele escolhia suas presas.
E isso me dizia que a luta seria tão brutal quanto decisiva.
Arrastei-me silenciosamente por entre frestas de ossos, coberto pela penumbra e o fedor da decomposição. Minhas placas, agora íntegras, se mantinham justas ao corpo. Meus sentidos vibravam.
Minha mente fervilhava com estratégias.
— Eu não podia enfrentá-lo de frente.— Precisava usar o terreno a meu favor.— E a única vantagem que eu tinha… era a imprevisibilidade.
Observei o Laceratus mover-se com fluidez entre os restos, a mandíbula segmentada abrindo e fechando devagar, como se experimentasse o ar. A criatura patrulhava seu território com calma cruel, uma silhueta grotesca entre as sombras de ossos antigos.
Sabia que o desafio era maior que qualquer outro que enfrentei.E que a vitória garantiria o que eu buscava.
Me escondi sob um montículo de ossos esbranquiçados, uma mistura de vértebras partidas e carcaças secas.O odor pútrido envolvia meu corpo, mascarando o calor residual da minha regeneração.
Com esforço e paciência, enrosquei parte do corpo nos fragmentos de carniça, ajustando-os com cuidado. Usei o ambiente como matéria-prima — um torso murcho, costelas quebradas, um crânio rachado — criando a ilusão perfeita de um cadáver recente, abandonado.
A armadilha estava pronta.
Meu objetivo: atrair o Laceratus para o ponto cego, o único espaço entre seus ataques onde eu poderia sobreviver.
Quando ele percebeu a isca, hesitou.Os olhos traseiros se fixaram nela. O corpo se enrijeceu.Não se moveu como um tolo faminto — moveu-se como um predador que sabia que algo estava errado.
Ele avaliou.
Sentiu.
Mas a fome, mesmo nos fortes, tem um peso.
O Laceratus avançou.
E eu esperei, silencioso, invisível — o veneno do tempo escorrendo entre as costelas secas.
A caçada havia começado.
Rolei para o lado, sentindo o ar se cortar onde meu corpo estivera segundos antes. O chão seco e fragmentado estalava sob as investidas lentas e poderosas do Laceratus.
Ele era uma muralha viva de lâminas e ossos, a força bruta encarnada.
Eu não tinha a força dele.
Tinha a agilidade.
Escalei seu dorso arqueado, deslizando rápido pelas placas quebradiças que formavam sua armadura natural.Meus anéis se contraíam com precisão, apertando-se ao redor das saliências ósseas para me impulsionar.Cada movimento era calculado — se errasse, seria dilacerado.
O coração batia forte. A tensão era pura.
O monstro abriu as mandíbulas tripartidas com um estalo seco, revelando fileiras assimétricas de dentes torcidos.
Antecipei o movimento e me lancei para o flanco, desviando com a leveza de uma sombra. O ar explodiu onde meus anéis centrais estiveram, o golpe rasgando o silêncio com violência.
Girei o corpo numa espiral apertada e, com impulso total, cravei meu único ferrão com força brutal atrás do joelho direito da criatura — onde a carapaça se estreitava e a carne vibrava exposta.
O Laceratus urrou.
Cambaleou. Mas não caiu.
Girou o corpo com velocidade surpreendente, tentando atingir-me com uma de suas foices. A lâmina óssea varreu os restos ao redor, espalhando ossos secos e estilhaços de crânios partidos.
Rolei por baixo de uma costela antiga, protegendo-me por um fio.
As placas do meu corpo rangeram sob o impacto do desvio. Mas eu não recuava.
Subi novamente, agora pelas costas largas do monstro, desviando dos espasmos violentos. Cada centímetro era uma luta. Cada instante, uma escolha entre morrer ou matar.
Alcancei o que buscava: a parte inferior da mandíbula tripartida — fina, pulsante, vulnerável.
Com precisão instintiva, cravei o ferrão ali.
A carne cedeu. O sangue, denso e viscoso, jorrou quente e pegajoso, cobrindo meu dorso.
O Laceratus gritou, um som gutural e doente que ecoou como um trovão abafado.
Ele tentou me esmagar contra o chão, saltando para o lado como um corpo gigantesco de aço podre.Mas deslizei, escorregando pela lateral e usando o próprio peso dele contra si.
E foi ali, naquele momento de desequilíbrio, que mirei o golpe final.
Com o último fôlego, concentrei tudo no pescoço exposto — e perfurei com meu ferrão, girando a lâmina natural até sentir o espasmo involuntário de seus nervos sendo dilacerados.
O colosso titubeou.
Caiu.
Lentamente, o corpo do Laceratus se dobrou sobre si mesmo, um cadáver ainda quente entre os restos de tantos outros.
Meu corpo doía. As placas estavam marcadas. O ferrão, trêmulo. Mas eu continuava vivo.E vitorioso.
Aos meus pés, o Laceratus jazia imóvel — a carne ainda quente, a essência pulsando sob a carapaça trincada.
A respiração artificial do meu corpo se estabilizava. Meus anéis vibravam de exaustão, mas o impulso primal de sobrevivência gritava mais alto que a dor.
A carne estava ali.Quente. Viscosa. Carregada de poder.
Aproximei-me em silêncio.
Enrosquei meu corpo ao redor da criatura, como uma serpente abraçando a presa caída. O calor que emanava dela invadia minha pele porosa, e meus receptores se inundaram com o cheiro salgado e ácido da carne recém-aberta.
Era chegada a hora.
O banquete que selaria meu renascimento.
— Continua...