O cheiro de esterco de wyvern ainda impregnava os corredores.
Syel tentou ignorá-lo enquanto cruzava a ala leste da Academia de Domadores. Seus passos eram apressados, mas leves — como quem tentava passar despercebida. O uniforme vinho estava amarrotado, e seu cabelo castanho escuro preso num coque torto revelava fios escapando em todas as direções. Nos braços, um livro pesado com a lombada arranhada: "Teoria das Vínculos Bestiais – Volume IV".
Ela adorava aquele cheiro de papel velho e couro desgastado. Era reconfortante. Familiar. Bem diferente das expressões que os outros alunos lançavam quando passavam por ela — olhares breves, julgadores, abafados por cochichos.
— Lá vai a esquisita dos insetos — sussurrou um grupo à sua esquerda, mas Syel não parou. Não mais. Já havia aprendido a deixar as palavras escorrerem.
Ela não gostava de felinos flamejantes ou das águias de relâmpago que todos disputavam. Não queria uma fera bela e chamativa para impressionar avaliadores ou nobres.
Ela queria funcionalidade.
Comportamento imprevisível.
Estrutura não-mamífera.
Adaptabilidade extrema.
E, claro... múltiplos olhos.
Chegou à sala de recepção do Núcleo de Vinculação. Um espaço amplo, hexagonal, cercado por colunas de mármore cinzento. No centro, um círculo mágico ainda apagado. Acima dele, suspensa no ar, uma esfera de runas girava lentamente — o Coração da Matriz de Domínio.
Ela respirou fundo.
Ele realmente fez isso?
O avô dissera que encontraria algo. Uma criatura rara. Talvez um aracnídeo.
— Por favor, que não seja mais um escorpião da areia... — murmurou, massageando a testa.
Então o ar no centro do salão brilhou.
O selo acendeu com um estalo, e a luz dourada foi puxada para baixo como um redemoinho.
Syel recuou um passo instintivamente.
De dentro do feixe, a criatura surgiu — compacta, baixa, de carapaça negra com tons roxos que refletiam a luz em padrões irregulares. O corpo era alongado, com oito pernas articuladas e finas. Os olhos — oito também — se fixaram nela com um tipo de calma inquietante. Não havia fúria, nem medo. Apenas análise.
Ela não se moveu.
O guardião entrou pela porta lateral como uma muralha viva, passos ritmados e silenciosos.
— Entregue — disse apenas, encostando-se numa das colunas. Cruzou os braços.
Syel se aproximou.
Sentiu o cheiro da fera: ácido sutil, mas limpo. Fresco. Não era selvagem comum. E quando estendeu a mão lentamente, notou que a criatura não recuava nem atacava.
Observava.
Como se aguardasse uma ação dela para responder com outra.
— Você... é diferente. — Ela se ajoelhou, encantada. — Não só feio. Complexo. Quase... elegante.
O ar ao redor do aracnídeo pareceu vibrar, levemente.
Ela não sabia, mas seus pensamentos, emoções e instintos estavam sendo lidos. Aquela criatura não funcionava como as outras. Havia algo além do vínculo físico ali.
— Vou te chamar de... Nok. — sorriu, puxando um pedaço de carne seca do bolso. Não para alimentar — mas como oferta.
Nok não se moveu.
Mas aceitou.
E nesse gesto, uma ponte começou a se formar.
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📜 Relatório Interno – Núcleo de Vinculação
Nome Provisório da Fera: Nok
Origem: Região de Ruínas – Fronteira Oeste
Classe Biológica: Indeterminada
Potencial de Vínculo: Elevado
Risco de Contaminação: Nulo (confirmado)
Estado: Em observação
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Do outro lado daquela nova ponte, algo se movia.
O Codex não se manifestava, mas o mundo ao redor do protagonista havia mudado por completo. O chão era liso, as luzes artificiais. Havia cheiros de metal, sabão, carne seca e couro.
E ela.
A humana ajoelhada à sua frente não exalava medo, nem arrogância. Havia uma curiosidade quase infantil em seus olhos — uma mente viva que não o via como aberração, mas como enigma.
Isso o confundiu.
Ele esperava correntes, gritos, dominação. Mas recebeu… uma oferta.
Uma mão estendida. Um nome.
Nok.
Um som simples. Uma tentativa de definir o que não podia ser controlado.
Mas não havia imposição. Apenas vontade.
E no fundo de sua consciência, um eco suave se expandia — uma sensação há muito esquecida.
Aceitação.
Ele não reagiu. Ainda.
Mas gravou
aquele rosto. Aqueles olhos. Aquele nome.
Syel.
E pela primeira vez desde a mutação... sentiu curiosidade.