Ressonância

A porta do Círculo Menor se fechou atrás dela com um estalo úmido, abafando os sons da arena. Ainda podia ouvir os ecos do julgamento nos olhares que a seguiram. As vozes.

“Aquilo foi uma armadilha.”

“Ela não comanda. Ela manipula.”

“E aquela coisa... não se comporta como fera.”

Syel não respondeu a nenhum deles. Caminhava pelos corredores vazios da ala leste, os passos ecoando como pequenos golpes contra sua espinha. Nok seguia atrás, a exatos dois metros, silencioso como sempre.

Só que agora ela o sentia.

Não só atrás de si, mas dentro do próprio campo mental, como se a presença dele ressoasse numa camada abaixo da consciência. Era sutil, desconfortável e... estranhamente familiar.

Foi você ou fui eu?

Ela não sabia mais onde terminava a tática, onde começava o instinto, onde existia o comando de verdade.

📜 Relatório Interno — Núcleo de Combate

Relator: Mestre DarelAssunto: Avaliação de Batalha – Syel Verdan vs Klaes Herram

Fera: Entidade classificada como "aracnídeo anômalo", nome informal "Nok".

Padrão de combate: evasivo, silencioso, dependente de táticas de entrincheiramento e contenção física.

Capacidade de armadilha demonstrada com eficácia tática incomum para nível básico.

Fera não executou ataques fatais.

Domadora apresentou comportamento não agressivo, mas manteve controle pleno.

Sincronia entre fera e domadora excede padrões conhecidos em vínculos jovens.

Biomassa vital extraída de forma não-letal (registro confirmado por sensores internos).

Anomalia comportamental: fera retornou ao lado da domadora sem comando visível.

Recomenda-se monitoramento contínuo. Risco de desvio de vínculo emocional/cognitivo.

Anexado: pedido de análise rúnica do campo de batalha – fibras remanescentes colhidas para estudo.

Na sala dos mestres, a tensão era visível.

Mestre Lior, da ala marcial, cruzava os braços com rigidez.

— Ela jamais deveria ter vencido assim. Isso quebra o propósito da simulação.

Darel, mais velho, manteve-se calado por alguns segundos antes de responder.

— O objetivo era contenção. Valther foi contido. Sem ferimentos graves. Sem traumas irreversíveis. Vitória limpa.

— Mas não natural. — rebateu Lior. — Aquela criatura age como se estivesse lendo padrões, não obedecendo comandos. E ela... ela sequer se exaltou.

— Exato. — murmurou Darel. — Por isso nos preocupa.

📍 Dormitório de Observação – Ala Sul

Syel sentou-se na pedra fria do pequeno cômodo anexo ao estábulo técnico. Não queria voltar ao dormitório principal. Lá havia perguntas.

Aqui, havia só o som de água pingando de algum cano oculto e o cheiro de serragem e teia velha.

Nok permanecia imóvel por longos minutos. Encolhido no canto, pernas dobradas como uma estrutura recuada. Os olhos, no entanto, estavam abertos. Todos eles. Observando-a.

Ela quebrou o silêncio:

— Por que você não matou?

Nok não se moveu.

Ela insistiu, mas em tom mais suave:

— Por que me obedeceu... se eu nem pedi?

Silêncio. O tipo de silêncio que parecia conter algo pulsando. Não hostilidade — apenas algo à beira da linguagem.

Syel esfregou as mãos, cansada.

— Você... agiu como se não precisasse de mim.Como se já soubesse o que fazer.Como se fosse... mais que uma fera.

Então, Nok se ergueu.

Com calma.

Foi até a parte da parede onde a luz azulada de uma lâmpada mágica tremeluzia e, com duas patas dianteiras, começou a arranhar a poeira e a sujeira sobre a pedra.

Syel franziu o cenho, observando.

Não era aleatório.

Os riscos formaram linhas. Depois, curvas. Depois, um círculo incompleto, e uma espiral rudimentar dentro dele.

Ela reconheceu aquilo.

Um símbolo.Um eco.

Era o mesmo sinal rúnico que os aprendizes da tecelagem espiritual usavam para descrever “reflexo de vínculo” — o primeiro estágio da empatia mágica entre fera e domador.

Só que Nok não deveria conhecê-lo.

E, no entanto... ele havia desenhado.

Não perfeitamente. Mas próximo o bastante para ser reconhecível.

Syel se abaixou devagar.

Olhou para o símbolo. Depois para Nok.

— Isso... é o que você quer?

Ele não respondeu.

Mas não se afastou.

E naquele instante, pela primeira vez, Syel não sentiu medo.

Sentiu expectativa.

O que tantos chamavam de aberração... talvez fosse exatamente o que ela sempre buscou.Um vínculo além da obediência.Uma conexão real — com algo que podia aprender. Planejar. Evoluir ao lado dela.

E pela primeira vez desde que pisou naquela Academia, acreditou que seu sonho talvez fosse possível.