Capitulo 1

 A Verdade em Chamas

O som da multidão reverberava como um trovão contido entre os muros de pedra avermelhada da Praça das Cinzas. Havia sangue sob os paralelepípedos, seco, antigo, como uma promessa não cumprida. Kaela Viren estava parada no centro do pátio, com a armadura escarlate reluzindo sob o sol queimante de Solara. O capacete repousava em seu quadril, preso por uma das mãos enluvadas, enquanto a outra segurava a Lâmina da Verdade, sua espada cerimonial.

Ela não piscava. Não hesitava. Não se permitia isso.

— Pela ordem da Rainha Celenya, e pela verdade da Chama, você foi considerado culpado de traição à Coroa. Sua pena é a morte.

O prisioneiro ajoelhado à sua frente não implorou. Ele riu.

— A verdade é uma farsa... Vocês queimam o que não conseguem controlar.

Kaela sentiu o calor da espada vibrar em resposta à mentira. A Lâmina da Verdade tinha esse dom: revelava quando uma palavra era falsa. Mas não vibrou. O prisioneiro acreditava mesmo no que dizia. Mesmo que estivesse errado.

Com um golpe rápido, preciso e silencioso, Kaela cumpriu a sentença. O corpo tombou para o lado e a multidão permaneceu em silêncio. Ninguém ousava aplaudir. Ninguém ousava questionar.

Ela limpou a lâmina em um tecido branco oferecido por um acólito e virou-se para sair. Os olhos dourado-âmbar buscaram, por um instante, as sombras sob os arcos da fortaleza. Uma silhueta se escondeu ali. Ela a viu. Rápida. Observadora. Como um presságio.

O castelo de Solara era um mosaico de fogo contido. Paredes cor de rubi, janelas circulares com vitrais que refletiam tons alaranjados ao entardecer. Kaela atravessava os corredores com passos firmes, mas o coração, embora oculto sob a armadura, ainda pulsava inquieto.

— Capitã Kaela, a Rainha exige sua presença na Sala da Chama.

O mensageiro era jovem demais para o uniforme que vestia, mas a voz não tremia. Ela assentiu.

A Sala da Chama ficava no coração do castelo, protegida por sete portas encantadas. Era onde a Chama Vermelha deveria arder eterna — mas desde o Incêndio do Templo, anos atrás, o fogo sagrado tremeluzia fraco, como se respirasse com dificuldade.

Kaela entrou em silêncio. Rainha Celenya estava de pé, com um dos conselheiros ao lado: Varun, o mais antigo, o mais perigoso.

— Capitã, houve uma invasão esta madrugada.

Kaela manteve a postura.

— O ladrão entrou no Templo da Verdade e saiu sem deixar rastros. Levou um dos fragmentos selados.

O sangue de Kaela gelou. Aqueles fragmentos não deveriam nem existir mais. Não oficialmente.

— Precisamos recuperá-lo antes que caia em mãos rebeldes, — disse Varun. — E queremos que você o encontre.

Kaela curvou a cabeça.

— Como ele entrou?

Varun entregou a ela um papel amassado. Um mapa rudimentar do castelo. E sobre ele, uma marca feita com sangue.

— Ele conhecia passagens secretas que nem os atuais guardiões sabem. Alguém treinado. Alguém de dentro.

Celenya a fitou.

— Encontre-o, Kaela. Traga o fragmento. E se for preciso... queime o traidor.

Naquela noite, Kaela vasculhou cada túnel, cada arquivo, cada sombra do castelo. E foi assim que, na véspera do novo ciclo solar, encontrou o rastro que a levaria a ele.

O ladrão.

Ou, como ela viria a descobrir depois, o homem que mudaria tudo.

O homem com olhos violeta e um nome amaldiçoado:

Riven Kellar.

Ele estava no Mercado do Cobre, onde os nobres não pisavam e os olhos da guarda raramente se voltavam. Kaela o viu primeiro de longe: a postura relaxada, o capuz encobrindo parte do rosto, a bolsa presa ao cinto com um lacre de sangue — o selo do Templo.

Ela não pensou duas vezes. Mergulhou entre os corredores estreitos, contornando tendas e barris, ignorando os protestos dos mercadores. Quando se aproximou, ele já a esperava.

— Capitã Viren... mais rápida do que pensei.

A voz dele era baixa, suave como seda, mas cortante como vidro.

Kaela sacou a lâmina.

— Devolva o fragmento.

Riven ergueu as mãos, sorrindo.

— Eu deveria... mas e se eu disser que ele não pertence à Coroa? Que a verdade está sendo queimada junto com aqueles que você protege?

A espada vibrou.

Ele não mentia.

Por um segundo, Kaela hesitou. E nesse segundo, ele desapareceu.

Começou uma perseguição pelas vielas. Riven conhecia cada atalho, cada corda, cada telhado. Kaela era rápida, mas ele era sombra. E então, em um salto ousado, ele caiu em uma viela fechada. Sem saída.

Kaela se aproximou devagar, a lâmina em punho.

— Não vai fugir mais.

Ele encostou-se à parede, ofegante, mas ainda sorrindo.

— Talvez não queira.

Ela franziu o cenho.

— O que você quer?

— Mostrar a você o que sua rainha esconde. Mostrar quem você é, Kaela Viren.

Ela parou.

— Como sabe meu nome?

Ele tirou o capuz. Os olhos violeta brilharam sob a luz de uma lamparina distante.

— Porque eu conheci sua irmã. E ela confiava em mim.

Kaela sentiu o mundo girar. A lâmina caiu de suas mãos.

O nome que nunca era dito ecoou dentro dela: Lyra.

E naquele instante, tudo mudou.