Beatriz sacudiu o cabelo, tirando o excesso de chuva como se fosse parte de um ritual natural — cada gota rolava pela curva do pescoço, sumia dentro da gola da jaqueta de couro. Ela ria de algo que uma das amigas disse, mas o riso morreu assim que o olhar dela cruzou o de Arthur.
Por um instante, nada mais existia: o chiado da chapa virou eco distante, o rádio velho pareceu engasgar, a Coca nas mãos dele ficou esquecida.
Beatriz. A garota que era metade lenda no corredor da escola: bonita demais para sentar perto dele, perigosa demais para se misturar. Arthur lembrava de olhar pra ela de longe, no pátio — as calças jeans rasgadas, a mochila cheia de adesivos de banda, a pose de quem sabe que é olhada.
E ali estava ela, agora — tão real quanto o pão quente na barriga dele. Os olhos de mel, cintilando sob o neon gasto da lanchonete. Arthur sentiu um arrepio subir da base da espinha até a nuca.
> [CÓDIGO DO PRAZER]
Status: Alvo Primário Identificado.
Missão Derivada: Prazer Social.
Interaja com Beatriz Corrêa.
Recompensa: +200 Créditos Virtuais / +5 Carisma.
Arthur baixou os olhos, limpou o canto da boca com as costas da mão. O Sistema parecia rir dentro do crânio dele — cada palavra piscava como uma isca.
Beatriz pediu algo no balcão, sem sequer olhar de novo pra ele. As amigas se acomodaram num canto, trocando fofocas baixas. Ela se virou, apoiou um cotovelo no balcão, celular na outra mão, digitando sem pressa.
Arthur notou tudo — a forma como ela mordia o canto da boca ao ler uma mensagem, a unha pintada de vermelho batendo de leve na tela, o cheiro vago de perfume doce que se espalhava, invadindo o cheiro de fritura.
Ele respirou fundo. Sentiu o Sistema cutucar:
> Interaja. Ou falhe.
Arthur olhou de volta pro prato — duas mordidas de x-tudo, Coca pela metade. O peito batia rápido, mas não era medo. Era algo novo — um gosto quente, quase perigoso: apetite.
Olhou de novo pra Beatriz. Ela nem o via. Pra ela, ele era só o órfão invisível, o zé-ninguém que sentava na última fileira.
Um sorriso torto nasceu nos lábios dele.
— Então tá — murmurou. — Quer jogo? Vai ter jogo.
A voz do Sistema ronronou dentro dele, satisfeita, como um gato preguiçoso se espreguiçando.
Arthur se levantou devagar, ajeitou a jaqueta marrom ainda úmida, empurrou o prato vazio pro canto. Cada passo até Beatriz parecia maior do que o beco inteiro onde morreu.
Quando parou ao lado dela, o mundo voltou a zumbir: o chiado da chapa, a música brega, o cheiro de batata queimada.
Beatriz nem ergueu o rosto. Continuava digitando, a franja caindo sobre a testa.
Arthur limpou a garganta. Abriu a boca para quebrar o vidro invisível entre eles.
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