Durante anos, Helena Duarte aprendeu a conviver com o som do vazio.
O silêncio tornou-se sua língua materna quando, aos 18 anos, perdeu o pai em um incêndio que a polícia classificou como acidental – uma versão conveniente demais para alguém que nunca deixava velas acesas e jamais esquecia uma janela aberta. Afonso Duarte era metódico. Discreto. Cheio de pequenos hábitos silenciosos que à sua maneira, preenchiam a casa com presença.
O incêndio ocorreu em uma sala comercial no terceiro andar de um edifício discreto, alugada por Afonso, registrada como escritório contábil, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo – uma zona antiga, cheia de prédios com estrutura envelhecida e pouca fiscalização.
"Acidente causado por curto-circuito, " dizia o laudo final.
Depois da tragédia, Helena e a mãe – Teresa – tentaram se manter firmes. A mãe mergulhou no trabalho como professora universitária, enquanto Helena buscava sentido em traços e cores. Foi ali que nasceu sua obsessão pela arte antiga, especialmente pela restauração de pinturas, como se reconstruir fragmentos do passado fosse uma forma de colar as próprias rachaduras.
Ela se formou, fez especializações, mergulhou em catedrais e porões de museus. Tornou-se uma das restauradoras mais promissoras do instituto onde trabalhava em São Paulo. Tinha talento, mas também um tipo de melancolia que chamava atenção. Um vazio nos olhos que ninguém ousava nomear.
A ausência de Afonso, tornara-se uma sombra atrás de cada tela.
Após o suposto incêndio que teria tirado a vida de Afonso, a relação entre Helena e Teresa Duarte mudou radicalmente. De cumplicidade silenciosa à distância emocional.
Antes da tragédia, Teresa e Helena tinham um relacionamento típico de mãe e filha – às vezes próximo, às vezes distante, mas sempre equilibrado pela presença mais serena de Afonso.
Mas quando ele "morreu", Teresa não entrou em luto como Helena esperava. Não houve lágrimas escancaradas, nem desespero. Ela simplesmente... se fechou.
"Sua mãe ficou mais fria. Como se tivesse desligado um interruptor..."
Teresa tratou o incêndio como um fim definitivo.
Enterrou o assunto com um tipo de silêncio prático.
Impediu que Helena fizesse perguntas demais.
Nunca visitou o local do incêndio.
Nunca quis saber de segunda opinião.
Era como se quisesse apagar Afonso da história – ou talvez esconder o que sabia.
Helena, por outro lado, mergulhou no vazio. Questionava tudo.
Ficava horas relendo as últimas mensagens do pai.
Tentava lembrar se havia sinais que não viu.
Essa diferença de reações criou um abismo emocional entre mãe e filha.
Conviviam, mas não se falavam profundamente.
Dividiam a casa, mas estavam em mundos diferentes.
À medida que os anos passavam, Helena começou a suspeitar de algo que nunca teve coragem de perguntar:
"Minha mãe sabia mais do que dizia? "
Teresa evitava falar sobre Afonso. Mudava de assunto.
Nunca deixou Helena mexer nas coisas dele que ficaram guardadas.
E quando a filha mencionava qualquer possibilidade de que o incêndio não foi um acidente, ela reagia com uma frase curta e gelada:
– Seu pai está morto, Helena. Aceite isso.
Era sempre uma ordem. Nunca uma conversa.
Quatro anos após a tragédia, Teresa foi diagnosticada com um câncer agressivo.
Helena cuidou dela até o fim – apesar de tudo.
Mesmo com a distância emocional, o amor resistia de alguma forma, como raízes sob a terra seca.
Nos últimos meses de vida, Teresa parecia querer dizer algo.
Havia momentos de hesitação, olhares carregados de culpa.
Mas nunca disse nada concreto.
Na véspera de sua morte, ela segurou a mão da filha e, com a voz embargada, disse apenas:
– Seu pai amava você. Mesmo nas sombras.
Foi tudo. Nenhuma explicação. Nenhuma confissão.
Essas palavras ficaram girando dentro de Helena como um eco rachado.
Helena passou a noite toda se perguntando:
"Ela sabia? Estava protegendo ele? Ou a mim? "
Quando Teresa morreu, Helena tinha 22 anos. E nenhuma família.
Numa manhã nublada de setembro, Helena enterrou a mãe em um cemitério simples, sob um ipê amarelo que florescia mesmo fora de época.
Saiu do enterro sozinha, como quem desce de um trem sem saber o destino final.
Nos meses seguintes, a arte foi seu único consolo. Ela mergulhou no trabalho com obsessão. Restaurava quadros dia e noite, mal comia, não atendia ligações. Recusou convites, evitou amigos, isolou-se até das pessoas que tentavam oferecer consolo.
A dor virou verniz invisível – uma camada que disfarçava tudo o que ainda doía.
Mas sempre houve uma pergunta que lhe tirava o sono.
E se Afonso não tivesse morrido?
A resposta começou a tomar forma quando um envelope anônimo foi deixado em sua mesa no ateliê.
Dentro havia uma única imagem: uma fotografia de uma pintura. Cores escuras, verniz amarelado. E no canto inferior direito... uma assinatura impossível de ignorar.
A. Duarte.
Helena conhecia aquele traço. Era o mesmo que o pai usava em tudo o que fazia. Era impossível imitar sua assinatura. Era... dele.
Mas a pintura era recente. Feita no ano anterior.
O mundo de Helena desmoronou mais uma vez.
Tentou rastrear a origem da imagem, mas não encontrou nada. Como se o quadro tivesse aparecido apenas para ela. Um fantasma pintado em óleo.
Naquela noite, Helena sonhou com o pai. Ele estava do outro lado de uma moldura, cercado por fogo, mas seus olhos... não pediam socorro. Observavam. Como sempre fizeram.
Acordou com o rosto molhado de suor e a respiração falha.
Na manhã seguinte, ela tomou sua decisão.
Pediu afastamento do trabalho. Fez as malas. Empacotou seus livros e o pouco que tinha. Deixou as chaves com a síndica e pegou a estrada sem olhar para trás.
Seu destino era Vila do Farol – a pequena cidade litorânea onde passara férias quando criança, muito antes de tudo desabar. Um lugar onde Afonso costumava dizer que "o silêncio era mais profundo que o mar. " Onde Afonso costumava levá-la para ver o mar e montar barcos de papel. Um lugar esquecido no tempo – de ruas estreitas, casas coloridas, faróis que piscam à noite como sentinelas silenciosas. Um lugar de lembranças adormecidas.
Oficialmente estava em busca de paz. Helena só queria recomeçar. Mas dentro dela, sabia: estava seguindo o rastro de alguém que sempre esteve presente, mesmo ausente. Estava indo atrás da sombra do pai. Ou quem sabe... uma verdade enterrada sob camadas de tinta e mentira.
E talvez, no caminho, acabasse descobrindo partes de si mesma que também estavam desaparecidas.
Helena Duarte – Os sete anos em Silêncio
Helena chegou a Vila do Farol como quem naufraga – sem pressa, sem mapa, sem defesa.
Carregava duas malas, uma caixa com pincéis e livros de arte, e o tipo de dor que se torna invisível com o tempo, mas nunca leve.
No começo sua presença causou estranhamento. A cidade era pequena, quieta, cheia de memórias locais e desconfianças longas. Mas ela não estava ali para ser vista. Helena se fazia invisível com uma facilidade quase natural.
Alugou uma casa antiga com janelas que rangiam com o vento e varanda voltada para o mar. Montou um pequeno ateliê improvisado no fundo da única galeria de arte da cidade – um espaço modesto, mas acolhedor, onde passou a trabalhar com restauração de obras regionais e retratos de família desbotados.
Durante os sete anos seguintes, a vida de Helena se construiu em silêncio, rotinas e repetições precisas.
Pela manhã caminhava cedo até o cais, observando os pescadores e a névoa se dissipando como poeira sobre o mar.
Passava o dia com as mãos sujas de solvente, colando fragmentos de pintura, limpando craquelados, cuidando de peças como se cuidasse de feridas.
À noite, lia. Livros de arte, cartas antigas, catálogos de museus. Às vezes desenhava. Às vezes apenas ouvia o farol piscando no ritmo de alguma memória antiga.
Fazia questão de não criar laços profundos. Conhecia todos da cidade, mas era próxima de quase ninguém.
Respondia com educação, mas nunca se demorava.
Helena tornou-se parte da paisagem de Vila do Farol – como as conchas esquecidas entre as pedras.
Mas por dentro, havia um silêncio em suspenso.
Um vazio que nem o tempo – e nem a arte – conseguiram preencher.
Às vezes, à noite, pensava no pai. Não com dor – mas com perguntas.
Será que realmente morreu no incêndio?
Será que sua mãe sabia mais do que dizia?
Mas toda vez que essas perguntas ameaçavam transbordar, ela afundava com trabalho. Com chá de hortelã. Com silêncio.
Até o dia em que o segundo envelope chegou.
Era uma manhã como qualquer outra.
Uma encomenda sem remetente, endereçada apenas a "Helena Duarte – Galeria do Farol".
Dentro, um envelope pardo e uma foto.
Uma natureza morta pintada com técnicas clássicas.
Mas o que importava era a assinatura:
Ali, aos 29 anos, o tempo estagnado voltou a se mover.
Sete anos de calma ruíram em segundos.
Helena sentiu, no fundo do peito, a mesma dor aguda que sentira aos 18 – mas agora, misturada com algo novo:
Raiva. Curiosidade. Determinação.
Ela sabia: aquela assinatura não era coincidência.
Alguém estava cutucando o passado.
Alguém a queria desperta.
E ela estava pronta.