Chovia forte, daquele tipo de chuva que deixa o ar com cheiro de terra molhada e promessas antigas. Eu não quis sair da cama, enrolada no meu cobertor pesado e quentinho, o corpo dolorido depois da cerimônia, das risadas e da dança.
O casamento de Adele tinha sido outra coisa, um evento elegante, cheio de luz e barulho, e de algum jeito, no meio de tudo, eu consegui manter tudo em ordem. Devia estar orgulhosa, mas tudo o que queria agora era dormir, talvez até o inverno inteiro passar, esquecer o quanto a casa ficava silenciosa quando todos iam embora.
DING DONG.
Estremeci, franzindo a testa, ouvindo a chuva bater nas janelas. Quem apareceria tão cedo? Maxen estava por aí, interpretando o papel de “marido perfeito”. Meus irmãos ainda estavam na Mansão Ancestral, assim como os sogros de Adele.
DING DONG.
Soltei um suspiro, prendi o cabelo num coque bagunçado, algumas mechas caindo no rosto, e vesti um body confortável e uma calça de moletom que ainda cheirava a lavanda. Encarei meu reflexo: os olhos cansados, as bochechas um pouco fundas, mas eu estava viva.
Abri a porta, e lá estava ele.
Jacob.
A gente não tinha conversado muito, nunca o suficiente para esclarecer tudo. Ele sempre estava por perto, ali no canto, mas a gente continuava engolindo as palavras que precisava dizer, fingindo seguir em frente.
Eu também tentei seguir em frente, mas em várias noites, eu sonhava com ele, e não era justo. O riso dele, a raiva, o toque, o jeito que ele me puxava para perto quando o mundo ficava pesado demais, o jeito que ele me olhava como se eu fosse a única pessoa ali.
E eu odiava lembrar essas coisas, mas sentia falta.
Na noite anterior, peguei ele me olhando enquanto eu levava a Adele até o altar, enquanto minha mãe soltava pequenas farpas com palavras que me lembravam que eu nunca serei suficiente. Todavia sorri, deixei passar, mas ele viu. A verdade era que eu estava machucada há quatorze anos.
Culpa dele. Culpa minha. Culpa nossa.
“Jake?” Minha voz saiu rouca, como se eu não falasse há dias.
“Norah... Oi.” Os olhos dele estavam suaves, o cabelo molhado, a chuva escorrendo pelo maxilar. Ele parecia mais jovem assim, bagunçado, incerto.
“Oi. Entra, você está encharcado.” Eu me afastei, abrindo espaço.
Ele ficou no corredor, pingando água no chão, sem dizer nada, me olhando como se quisesse guardar aquele momento para sempre.
“Venha,” eu disse, guiando-o até o quarto de hóspedes. Ele me seguiu em silêncio, do jeito que sempre ficava quando estava pensando demais.
“Pode tomar um banho. Eu vou secar suas roupas.” Apontei para o banheiro.
Ele balançou a cabeça, o cabelo molhado grudando na testa. “Norah, eu não tenho nada para vestir.”
Eu ri baixo, revirando os olhos. “Eu trago umas roupas pra você, bobo.”
Ele me lançou um olhar de gratidão, mas não disse nada. Esse era o Jacob, nunca dizia, mas eu , sempre soube.
Quando voltei, ele estava lá, recém-saído do banho, só com a toalha enrolada na cintura, gotas de água brilhando nos ombros. Congelei, os olhos percorrendo o corpo que eu conhecia de cor, aquele que jurei que nunca mais iria querer.
“Jake, eu... trouxe suas roupas.” Minha voz soou estranha.
“Obrigado, Norah. ” Ele sorriu aquele sorriso que sempre me desmontava.
“Não nada” Coloquei as roupas nas mãos dele e virei antes de me envergonhar mais. “Eu vou esperar lá embaixo.”
Eu saí, rápido, antes que meu coração me traísse.
...
Eu estava na cozinha, passando café, a chuva ainda batendo nas janelas, trazendo um silêncio confortável. Eu estava perdida no cheiro quente, no vapor subindo, quando senti a presença dele antes mesmo de ouvi-lo.
“Ei.” A voz dele estava próxima, perto demais, me fazendo pular.
“Jesus! Jake, você não sabe fazer barulho quando anda?” resmunguei, tentando disfarçar.
Ele riu baixo. “Talvez você esteja ocupada demais sonhando acordada para ouvir passos naturais.”
Eu revirei os olhos, mas ele não viu o canto da minha boca se curvar. Entreguei a xícara de café do jeito que ele gostava, mesmo que eu insistisse pra mim mesma que não me importava mais com o que ele gostava.
“Obrigado.”
Ele se sentou na bancada, me encarando. O ar estava pesado entre nós, mas nenhum dos dois queria quebrar aquele momento.
“Então, Jake, Jacob, senhor presidente, seja lá como você se chama hoje em dia o que te trouxe aqui tão cedo?” Minha voz soou calma, firme, como eu havia treinado.
Ele sorriu de leve, tomou um gole do café quente, os dedos apertando a caneca. “Eu queria ter te falado ontem, mas... Me desculpa.”
Franzi a testa. “Por que está se desculpando? Aconteceu alguma coisa?”
Ele balançou a cabeça, os olhos baixando como se carregassem um peso antigo. “Eu não tenho sido um bom pai. Você... você fez Adele feliz, Norah. Ela é feliz por sua causa.”
“Jake, para. Você tá sendo injusto com cê mesmo. Desde que soube que ela era sua filha, você esteve lá pra ela. Não faz isso. Você foi um bom pai, sempre a apoiou mesmo quando ela duvidava de si mesma.” Dei um sorriso pequeno, vazio, mas sincero. Ele desviou o olhar, mas eu vi o rubor nas bochechas dele, o jeito tímido de quem ainda guardava algo.
“Não, não é só isso.” Ele respirou fundo, o maxilar contraído. “Eu... eu quero estar com você.”
Meu coração disparou, o rosto esquentou. “O quê?”
“Quis dizer... Sei que ontem foi difícil pra você, com sua mãe, com tudo. Eu só... queria estar aqui.”
Baixei o olhar, mordendo o lábio, engolindo o que queria dizer. “Obrigada.”
Começamos a falar de coisas bobas, do discurso de Adele, do bolo, das flores pesadas, da chuva que parecia uma bênção.
Por um instante, eu deixei acontecer, deixei a risada sair, deixei ele me provocar pelo jeito que reviro os olhos. Deixei-me lembrar de como era antes de tudo desabar.
Ele se intitulou um cozinheiro maravilhoso, então colocamos suas supostas habilidades à prova, ele acabou fazendo uma simples torrada de queijo básica na frigideira, e era tão ridículo, Parecia delicioso, me fez lembrar de quando ele fez um brinde parecido pela primeira vez. Mordi com entusiasmo uma fatia que tirei direto da frigideira, mordi e mastiguei imediatamente, sibilando a dor da minha língua queimada.
“Cê nunca aprende, Norah?” ele provocou, tirando o sanduíche da minha mão, e a gente deu risada, aquela risada de barriga que eu não soltava fazia tempo.
“Quer que eu faça o quê, assopre?” Ele falou brincando, os olhos quentes, e eu ri ainda mais, quase chorando de tanto rir.
Ele me entregou um copo d’água, e enquanto eu bebia, ele se virou para limpar o balcão, mas acabou derrubando uma garrafa de óleo que se espalhou pelo chão.
“Deixa, Jake. Eu limpo.”
“Não, tranquilo, eu limpo.”
“Você é lento, Jake, posso—” Levantei rápido demais e escorreguei no chão molhado.
Esperei a queda, mas não aconteceu.
Os braços dele me seguraram firmes, fortes, me puxando para perto. Minhas mãos foram parar no peito dele, o rosto tão perto, O perfume de rosas negras emanava do seu corpo em direção às minhas narinas.
“Norah, tá tudo bem?” A voz dele era baixa, próxima.
“Tá.” Minha voz saiu num sussurro.
Ele me levantou com facilidade, me carregando até me sentar na bancada. O colar dele enroscou no meu cabelo, o pingente de metade de coração que eu tinha dado pra ele anos atrás, aquele que eu achava que ele tinha jogado fora.
“Você ainda tem isso,” sussurrei.
Os olhos dele encontraram os meus, e ele assentiu, enquanto soltando meu cabelo com cuidado, Seus dedos roçando meu queixo e pescoço.
“Pronto.” Ele sorriu, mas era um sorriso que doía.
Nossos olhares se prenderam, tempo demais, perto demais, minha respiração travou quando ele olhou para a minha boca.
“Eu devia ver se suas roupas já secaram.” Tentei deslizar para descer.
“Fica.” A voz dele foi um pedido, baixinho, enquanto as mãos dele seguravam minha cintura, me mantendo ali.
“Norah, eu... eu—”
Ele me beijou.
Foi um beijo urgente, quente, nada como eu lembrava, mas exatamente o que eu precisava. Os lábios dele eram quentes, famintos, as mãos dele me puxando, a língua invadindo a minha boca, e eu odiei o quanto meu corpo cedeu, o quanto eu beijei de volta.
Minhas mãos se enfiaram nos cabelos dele, puxando-o para mais perto, sentindo cada traço dele contra mim. As mãos dele apertaram minha cintura, me colando nele, e quando ele prendeu minhas mãos contra o armário, me beijando como se estivesse se afogando, eu beijei de volta porque não sabia como parar.
Por um momento, éramos só nós, a chuva, o calor, o gosto dele, o jeito que ele gemeu quando mordi o lábio dele, o jeito que meu corpo lembrava de cada pedaço dele.
Mas então, Neila.
A imagem dele com ela, os corpos juntos, a traição, o jeito como ele me expulsou da casa enquanto ela estava na nossa cama, sorrindo.
Quebrei.
Lágrimas escorriam pelo meu rosto enquanto eu separava nossos lábios, os lábios inchados, o coração rachando.
“Norah, o que houve? Eu te machuquei? .”
Ele me puxou de volta, limpando minhas lágrimas com as mãos trêmulas. “Norah—”
Eu virei o rosto. “Não me toque.”
“Desculpa. Eu não sei o que deu em mim.” A voz dele falhou, os olhos no chão. “Você tem razão. A gente não deve.”