Capítulo 2: Um Pedaço de Destinoe

Parte 1: A Escolha Mais Doce (e Perigosa)

Caio acordou cedo no dia seguinte.

Não por vontade.

Mas por nervosismo.

A barra de chocolate estava ali, dentro da gaveta de meias. Embrulhada em um pano escuro, como se fosse algo proibido. E era. Cada vez que ele abria a gaveta, sentia o mesmo cheiro suave de baunilha, morango e magia — doce, mas quase sufocante.

Ele vestiu a roupa de sempre — jeans escuro, camiseta preta, jaqueta — e foi para a escola com a sensação de que o mundo tinha mudado.

Mas o mundo estava igual. Os corredores ainda tinham a mesma cor esverdeada deprimente. Os armários ainda estavam riscados. O barulho do grupo de vôlei ainda ecoava no fundo. Tudo era igual.

Exceto ele.

E a barra, agora no bolso interno da mochila.

Quando chegou na biblioteca, Ruby já estava lá.

Sentada na mesma mesa de sempre, ao lado da janela, com o mesmo fone pendurado no pescoço e o caderno de desenhos aberto. Ela desenhava uma garota com asas de cristal cercada por corações partidos que flutuavam como balões murchos.

Caio parou. Só observou.

O coração dele batia mais rápido só de estar perto dela.

Ela era tão tranquila. Tão distante. Tão linda.

Mas... havia algo estranho em seu olhar. Uma tristeza que ele nunca tinha conseguido decifrar.

Ele engoliu em seco, ajeitou a mochila nos ombros e foi até a mesa.

— E-ei.

Ruby olhou para ele. Um sorriso gentil.

— Oi, Caio. Chegou cedo hoje.

— Ah… é. Não consegui dormir.

— Também não. Tive uns sonhos estranhos. Tipo… uma chuva de corações explodindo no céu. Meio bobo, né?

Caio sorriu de nervoso. Por dentro, suava frio. Será que o ritual já estava mexendo com o mundo?

— Não é bobo. Às vezes o que a gente sonha... é só o que o coração tá tentando dizer.

Ruby pareceu surpresa. Depois sorriu de canto.

— Bonita essa frase. É sua?

— Não. Mas queria que fosse.

Ela riu. Um riso leve, curto, mas sincero. Um som que Caio queria guardar.

A barra de chocolate pesava na mochila.

Esse era o momento. Ele estava ali. Sozinho com ela.

Ela estava sorrindo. Aberta.

Era só puxar a barra… oferecer um pedaço… e o feitiço começaria.

Mas algo segurou sua mão.

A voz de Alya ecoou em sua cabeça:

> “Se você não souber o que ela realmente deseja… tudo desmorona.”

Caio olhou para Ruby.

Será que ele sabia? Será que ele realmente entendia os desejos dela? Ou era só uma obsessão cega, disfarçada de amor?

— Caio? — disse Ruby, notando que ele estava distante.

Ele balançou a cabeça, voltando à realidade.

— Desculpa. Tava só... pensando.

— No quê?

— Em... como as pessoas podem parecer uma coisa por fora, mas serem completamente diferentes por dentro.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos.

— Eu... sei bem como é isso.

Caio hesitou mais uma vez. A barra ainda estava ali. Mas agora… não era o momento.

Ele não queria um amor forçado.

Queria descobrir de verdade o que Ruby sentia.

Talvez... talvez ele pudesse fazer isso sem a barra.

Ou, pelo menos, usar a barra da maneira certa.

— Ruby — disse ele, encarando-a — posso te perguntar uma coisa?

— Pode.

— O que você… mais deseja agora?

Ela parou de desenhar.

Olhou para a janela.

E, depois de um longo silêncio, respondeu:

— Paz. E alguém que não tente consertar o que eu sou. Só… entender.

Caio sentiu um arrepio.

A barra parecia ainda mais pesada agora.

Talvez o chocolate do Cupido não fosse uma arma. Talvez fosse um teste.

E ele ainda não estava pronto para usá-lo.

Parte 2: O Sussurro Antes do Caos

A conversa com Ruby ficou ecoando na cabeça de Caio o resto da manhã.

> “Paz. E alguém que não tente consertar o que eu sou. Só… entender.”

Ele repetia aquilo mentalmente como se fosse uma senha secreta, um código para entrar no mundo dela.

A barra de chocolate continuava intocada, guardada no fundo da mochila. Ela pesava como um segredo, como uma decisão ainda por fazer. Mas naquele momento, Caio achava que tomar tempo era o certo.

Ou… achava.

Até o mundo começar a agir estranho.

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No intervalo, ele percebeu os primeiros sinais.

Na fila da cantina, enquanto pegava um suco, uma garota do terceiro ano — Luiza, que ele nunca tinha falado — o encarou por alguns segundos como se o conhecesse. Franziu a testa, confusa, e depois se afastou, murmurando algo como:

— Ué… achei que… não, não é ele…

Caio ficou inquieto.

Minutos depois, já no pátio, viu dois garotos discutindo ao lado da biblioteca, apontando em sua direção, como se estivessem falando dele. Mas quando se aproximou, eles se calaram, e um deles soltou:

— Melhor não mexer. Vai que é mais um “caso do chocolate”...

Ele congelou.

“Caso do chocolate”?

Eles estavam falando dele?

Como alguém sabia?

Ele caminhou rápido para o bebedouro, tentando afastar o medo. Era paranoia. Só podia ser. Mas no fundo… não parecia.

Era como se algo no ar tivesse mudado.

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Na última aula do dia, Ruby sentou-se perto dele — o que era raro. Costumava ficar no fundo, sozinha.

— Oi, Caio.

— Oi… tudo bem?

— Mais ou menos. Tô com uma sensação estranha hoje. Tipo déjà vu… como se tivesse esquecido de alguma coisa importante. Ou de alguém. E isso… me dá dor de cabeça.

Ele engoliu em seco.

Ela passou a mão no cabelo, visivelmente incomodada. Depois se virou para ele:

— Você já sentiu isso? Como se sua cabeça estivesse tentando lembrar de algo que nunca aconteceu?

Caio olhou para ela.

Por um instante, teve a certeza de que Ruby já tinha passado por algo parecido com o Chocolate do Cupido.

E se… ela já tivesse sido afetada antes?

E se aquele não fosse o primeiro feitiço em sua vida?

Antes que ele respondesse, alguém entrou correndo na sala.

Era uma menina pequena, do primeiro ano, com óculos tortos e uma prancheta na mão. Ela olhou ao redor e apontou direto para ele:

— Caio da sala 2B? Tem alguém te procurando na entrada da escola. Diz que é… sua irmã.

— Minha… irmã?

Caio ficou pálido.

Ele não tinha irmã.

Ruby o encarou, surpresa.

— Você tem irmã?

— Não.

Ele se levantou, confuso e tenso, atravessando o corredor com passos acelerados.

Quando chegou à entrada, o portão estava aberto.

E ali, encostada no muro, estava Alya.

Só que… diferente. Disfarçada.

Vestia uma jaqueta jeans por cima do vestido rosa florido, óculos escuros e uma mochila nas costas. Mas as asas prateadas ainda brilhavam — discretas, quase invisíveis, como um holograma fora de sintonia.

— Demorei pra achar você no plano mortal, — ela disse, tirando os óculos. — Precisamos conversar, Caio. As coisas estão saindo do controle mais rápido do que eu esperava.

Caio deu um passo atrás, em choque.

— O que está acontecendo?

Alya suspirou.

— Você ainda não mordeu o chocolate... e mesmo assim o caos já começou.

— Como assim?

Ela olhou bem nos olhos dele, séria.

— Alguém está mexendo com o ciclo do feitiço. E não sou eu. Nem os deuses lá de cima. Tem uma terceira força em jogo. Alguém que lembra do que deveria ter sido esquecido.

O vento soprou mais forte. O céu parecia mais escuro, mesmo sendo tarde.

Caio sentiu um calafrio.

Ruby estava certa.

Alguma coisa… muito errada… estava prestes a recomeçar.

Parte 3: A Fratura do Esquecimento

Alya observava Caio como se estivesse analisando cada fragmento da alma dele. O vento soprou suas mechas prateadas e as asas semitranslúcidas ondularam levemente, como cortinas de luz.

— O ciclo não deveria ter começado, — ela disse com voz baixa. — Mas alguém... lembrou.

Caio franziu a testa.

— Lembrou do quê?

— Do caos anterior. Do feitiço original. Dos sentimentos falsos que deveriam ter sido apagados. — Ela o olhou com mais intensidade. — Você sabe o que acontece quando alguém tenta reativar uma memória quebrada de um feitiço amoroso?

— Não faço ideia.

Alya caminhou lentamente, o som leve de seus pés tocando o chão como sinos distantes.

— A realidade começa a rachar.

Ela ergueu a mão, e no ar surgiu uma pequena fenda prateada, como uma rachadura num espelho invisível. Caio ficou hipnotizado.

— Isso... é o que exatamente?

— Uma brecha entre o que foi esquecido e o que quer voltar à tona. — A rachadura desapareceu quando ela fechou a mão. — E está crescendo. Porque alguém além de você ainda sente os ecos do antigo feitiço.

— Quem?

Alya hesitou.

— Talvez... a garota.

— Ruby?

Ela assentiu.

— Ela não lembra. Mas o coração... o coração humano é teimoso. Ele sente, mesmo quando a mente esquece.

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Enquanto isso, Ruby caminhava sozinha pelo corredor do colégio. A aula havia terminado, mas ela precisava de ar. Algo dentro dela pulsava, um incômodo estranho no peito. Como se estivesse vivendo de novo algo que nunca aconteceu.

Passou em frente à sala de música — uma que raramente era usada. E então, de repente, parou.

Um som.

Notas suaves de piano, tocadas com hesitação.

Ela olhou pela porta entreaberta.

Caio?

Não. A sala estava vazia.

Mas a música… ela reconhecia aquela melodia.

Ruby entrou devagar, como em transe. Os dedos se aproximaram do teclado.

— Eu… já toquei isso antes?

Sentou-se.

E tocou.

As mãos fluíram pela melodia como se tivessem feito aquilo a vida inteira. Notas tristes, mas doces. A música falava de uma lembrança distante, de um momento precioso... que havia sumido.

Lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Ruby sem que ela entendesse o porquê.

— Quem… eu era?

Atrás dela, uma sombra apareceu na porta. Um garoto. Rosto desconhecido, mas com olhos... que pareciam saber tudo.

Ele sorriu levemente.

— Você está começando a lembrar, Ruby. E isso... é perfeito.

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No portão, Caio sentiu um arrepio subir pela espinha. Alya olhou para o céu, séria.

— Está começando.

— O quê?

Ela voltou o olhar para ele, olhos azuis como gelo.

— A Segunda Quebra. O caos que nem os deuses conseguem conter.

Caio segurou a alça da mochila com força.

A barra de chocolate parecia mais quente. Quase… viva.

Alya deu um passo à frente.

— Se você for mordê-la, Caio… precisa fazer isso com um desejo verdadeiro. Não por desespero. Ou a barra... vai escolher por você.

Caio arregalou os olhos.

— Espera. Como assim… ela escolhe?

Alya apenas sorriu, mas havia tristeza no sorriso.

— Você vai descobrir. Muito em breve.

E então desapareceu.

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No corredor do colégio, Ruby limpava os olhos e deixava o piano. O garoto misterioso já havia sumido, mas uma única rosa vermelha jazia sobre o banco, com um bilhete:

> "O amor esquecido é o mais perigoso. Porque ele tenta renascer… com força dobrada."