Na manhã seguinte Amelia se arrastou para fora da cama. Se tivesse dormido mais de 4 horas desde o incidente, seria demais. Ela estava sentindo como se uma colheitadeira tivesse a atropelado. As olheiras estavam maiores do que o normal, a pele mais branca… Se sentiu obrigada a lavar o rosto com água gelada algumas vezes para se fazer presente naquele plano. Com muito esforço ela vestiu suas roupas escuras. A calça justa, de sarja preta, uma blusa de mangas compridas e gola alta e o couro de sempre, no coturno e na jaqueta.
Enquanto escovava os cabelos compridos tentando domar a franja, que tinha acordado tão mal humorada quanto ela, algumas batidas soaram da porta. Não eram as batidas do Liam, mas… Aquilo a deixou um pouco mais confortável. Ainda não tinha se recuperado do que tinha acontecido no servidor. Ela caminhou até a porta do seu apartamento no hotel e abriu-a com uma puxada forte, que fez suas madeixas voarem. Do outro lado tinha um jovem usando um terno maior do que ele e mesmo sendo mais alto que ela, Amelia o olhava de cima. Ele estendeu as mãos trêmulas entregando um copo descartável de café e uma pequena sacola de papel. Era claramente uma das pessoas que tinha sido recrutada pelo cérebro e não pelo físico.
— O senhor Liam mandou entregar… — disse o menino. Ela levantou uma sobrancelha e um pouco desconfiada pegou os itens.
— Ei. — Ames disse antes de fechar a porta. Queria dizer algo como "bom trabalho" ou "vai melhorar", mas não teve coragem. Não era como o Gary. — Na próxima, diz pra ele mesmo entregar.
"Senhor Liam?" — ela pensou em um tom irônico. — "Desde quando ele anda com os 'nerds'?"
Ao lado do copo ela viu "Ames" escrito com caneta junto de um desenho de um solzinho com um sorriso.
— Ugh.. Senhor Liam, isso parece ter sido desenhado por uma criança. — debochou, tomando um gole. Ele nunca errava. Era seu favorito. Caramel Macchiato. Um café com leite adoçado com caramelo. Mas ela ainda gostava com mais açúcar. Só Liam sabia do seu paladar infantil. Dentro da embalagem de papel estava seu muffin de amora com cobertura de açúcar que não durou muito tempo inteiro. Pelos minutos que mastigava aquele doce, ela foi feliz. Ela sentou-se no sofá para comer com calma e começar seu dia com um pouco de dignidade.
Na última mordida, o celular em cima da mesa de centro notificou uma mensagem. Ela bateu as mãos na calça para espantar os farelos e pegou o aparelho com a ponta dos dedos. Era Gary, a chamando para a sala dele naquele momento e fazendo questão de avisar que ela estava atrasada. Seu pequeno momento de felicidade foi curto e insuficiente para ter coragem para encarar seu pai.
Ela trocou a tela de conversa do chefe pela de Liam digitando uma pergunta curta:
"Você vem?"
Seus olhos ficaram encarando aquelas letras por um momento, esperando ele responder. Ele apenas visualizou. Achou estranho, mas não pensou muito a respeito. Talvez ele já tivesse subido. Pegou a bebida e partiu para seu destino.
Quando chegou no saguão, percebeu os olhares de costume, mas agora conseguia ouvir pessoas cochichando. Teve que se segurar muito para não perder o controle e mandar todos calarem a boca. Fez questão de andar mais rápido para o elevador principal, só queria que aquilo acabasse o mais rápido possível para conseguir respeito novamente.
No último andar, Amelia desembarcou do elevador e caminhou lentamente pelo corredor forrado em mármore até o teto. As linhas de rodapé dourado que levavam até a grande porta dupla do escritório do homem mais importante dali pareciam dançar na sua mente. Nunca havia se sentido assim. Tudo ficava ainda mais difícil quando não tinha Liam perto dela. Ficou parada na frente da abertura por longos minutos, encarando a maçaneta feita de ouro. Respirou fundo e fechou os olhos, tentando lembrar do sorriso do amigo a encorajando da última vez que passou por ali. Mas logo o pensamento desviou para a voz dele tão perto de seu rosto no dia anterior. E não demorou muito para chegar até sua mão puxando sua cintura. Ela não pode evitar o rosto vermelho, então o cobriu, tentando afastar aquelas memórias. Ele estava a deixando maluca sem sequer estar ali.
— O que está esperando? — uma voz grave, desconhecida, invadiu seus ouvidos, vindo de trás dela. — Quer um convite para entrar?
Quando ela se virou, se deparou com ele. O homem que havia visto saindo daquela mesma sala no dia em que tudo deu errado. Ela não tinha como esquecer aquele par de olhos monstruosamente escuros. E nem aquele sorriso sarcástico no canto dos seus lábios. Seus cabelos estavam penteados para trás, com alguns fios rebeldes que desciam pela sua testa. A camisa social estava igualmente apertada como na primeira vez que o viu, mas dessa vez era em um tom vermelho escuro. O jeans era preto e mais uma vez usava um tênis de marca. Seus braços bronzeados estavam cobertos só até abaixo do cotovelo, já que as mangas estavam dobradas. Aquilo mostrava mais suas mãos com dedos grossos e calejados e os músculos definidos de seu antebraço contornados pelo relevo de suas veias. Quanto mais ele se aproximava, maior e maior ele ficava.
E, como da primeira vez, ele passou por ela e adentrou o escritório como se Amelia nem estivesse lá. E ela o olhou da mesma maneira, o acompanhando intrigada. Ele era uma incógnita. Parecia que era um rosto conhecido… Aqueles olhos não eram estranhos.
Uma das portas ficou entreaberta e ela pode ouvir o início do assunto.
— Ah, Ethan. Desculpa a demora para te chamar, mas Amelia ainda não chegou e eu queria conversar com ela sozinha antes de apresentá-los, mas como ela atrasou… — a voz de seu pai parecia estressada, mas controlada.
— Amelia? — ele perguntou, como se não soubesse quem ela era e aquilo fez um choque de adrenalina correr por seu corpo que acordou-a daquele transe.
De maneira confiante, ela empurrou a porta a sua frente, caminhando para dentro do luxuoso cômodo. Gary levantou-se da cadeira e apontou para a garota com a palma da mão.
— Minha filha, Amelia. — ainda tinha um tom de orgulho na voz dele.
— Ah, claro. Essa Amelia. — o estranho parecia debochar.
Ela o olhou de olhos semicerrados de cima a baixo - não que precisasse, a imagem dele já estava bem gravada em sua mente. - mas não referiu a palavra a ele.
— Liam não chegou ainda? — perguntou se aproximando da mesa, ficando mais à frente do homem e mais perto da mesa do chefe. Então o garoto não tinha contado pra ela. Foi mais esperto que ele.
— Então, Ames, é sobre isso que eu queria conversar… — ele começou, vendo a sobrancelha da garota descer enquanto seus olhos se apertaram. A fala do jovem parceiro soou na cabeça do velho. "Ela vai ficar uma fera." Até mesmo para ele era difícil controlá-la. — Ele não vem.
— O que quer dizer com isso? — perguntou, desconfiada.
— Esse é Ethan, Ames. Seu novo… — ele limpou a garganta seca. — Seu novo parceiro.
O olhar de Amelia foi de cheio de dúvida a cheio de raiva. Aí estava a "Fera".
— Gary… Eu já tenho um parceiro. — a voz foi ríspida, direta.
— Sim, o Ethan é seu novo parceiro. — repetiu, em um tom conciliatório.
— Não, o Liam é meu parceiro! — ela respondeu imitando o tom dele.
Gary esfregou as sobrancelhas com a mão direita, tentando acalmar sua própria impaciência. Algo que ele só faria por ela. E a garota já começava a entender a profundidade daquela notícia.
— Você está brincando… Só pode. — ela continuou, indignada.
— Amelia. — o tom de seu pai mudou para o mesmo que ela ouviu na manhã anterior. Ele viu que não era brincadeira. — Eu vou separar vocês por um tempo.
— O quê? Por que?! Isso… Isso é maluquice, Pa! — Aquela era a maneira como ela o chamava no íntimo e estava começando a parecer uma criança que tinha sido contrariada.
— Quer que eu te explique como você e Liam colocaram em risco toda a nossa operação? Como todos nós, inclusive você, podemos ser presos? Como, na melhor das hipóteses, vocês nos causaram milhares de dólares de prejuízo só em equipamento apreendido? — o tom dele ia aumentando a cada frase que dizia. Parecia realmente irritado. Ela não tinha como discordar. Ele estava certo.
Era só por um tempo, certo? Amelia tentou acalmar-se. Seus olhos se fecharam por um tempo, como uma forma de não visualizar toda aquela bagunça de novo. Ela suspirou, conformada e olhou para o rapaz atrás dela que ainda estava com aquele sorriso no rosto. Só se imaginou tirando a cara de palhaço dele a socos.
— E o que eu vou fazer com esse… com esse… com esse armário ambulante?! — perguntou se referindo a Ethan. Os dois riram, como se já tivessem arquitetado um plano.
— Ele é um bom subordinado, Ames. E se precisar te tirar de cima de alguém, ele vai conseguir.
— E quem vai me tirar de cima dele quando eu estiver quebrando cada dente dele? — perguntou cruzando os braços, em mais uma atitude infantil.
— Bom… — Gary suspirou, sentando de volta em sua cadeira que mais parecia uma poltrona. — Faz tempo que você não se disfarça, não é? Vai ser bom para ensinar ao Ethan como funciona esse tipo de missão…
— Como pretende colocar um disfarce nessa geladeira que chama de homem? Ele mal cabe nas próprias roupas.
— É pra isso que você é minha número dois, não? — ele perguntou rindo e deslizando uma pasta grossa de arquivos. Ela pegou a mesma, abrindo-a e folheando-a com a ponta dos dedos. E então suspirou como se tivesse lido uma notícia muito ruim.
— A sede da polícia…? Você tá ficando maluco… — Ethan sentiu que estava sendo deixado para trás naquela conversa.
— É onde fica o setor de crimes cibernéticos. — o velho disse, pendendo para trás na cadeira e cruzando as pernas que eram adornadas por um luxuoso terno azul escuro com linhas verticais.
— Com licença, eu posso entender do que estamos falando? — o mais alto interrompeu, pedindo uma explicação.
Amelia revirou os olhos, virando-se para ele.
— Vamos invadir a sede da polícia para deletar todas as evidências do nosso servidor e nos livrarmos das provas.
Ele parecia ainda mais confuso.
— Não podemos fazer isso… pela internet?
A garota olhou de volta para o seu pai, como se pedisse, implorasse, para que ele revertesse essa situação.
— Você tem certeza? — perguntou.
— Absoluta. — Gary respondeu com um sorriso no rosto.
Mais uma vez, seus olhos desparelhos rolaram enquanto ela suspirava incomodada.
— Ótimo. — disse ironicamente. Então se virou para a saída, caminhando para o elevador. Quando passou pelo homem, bateu a pasta contra seu peito para que ele a carregasse. Ele chegou a tomar um susto com aquela atitude e ficou a olhando sair do local segurando os papéis.
— Boa sorte… — o mais velho desejou, um pouco preocupado.
Antes que a porta do elevador se fechasse, a mão máscula de Ethan parou-a e ele embarcou, se mantendo afastado dela. Os primeiros andares abaixo foram silenciosos. Só se ouvia o barulho dos cabos.
— Nunca imaginei encontrar alguém como você aqui, Amelia. — ele começou, colocando a pasta debaixo do braço e enfiando as mãos no bolso da calça, deixando os dedões de fora. Ela não respondeu ou expressou qualquer reação. — Se bem que… Acho que combina com a sua personalidade.
"Que merda esse cara tá falando?" — Amy pensou, desviando o olhar para o lado oposto ao que ele estava.
— Principalmente com esses seus olhos bizarros… Até parece uma aberração. — A voz dele deu destaque àquela última palavra.
Uma sensação de sangue fervendo a ponto de borbulhar subiu, corpo acima, na garota. A última vez que ouviu alguém a chamar daquela forma tinha sido…
— Calma, Amyzinha, não vai chorar, né? — As portas do elevador abriram e ele saiu a olhando por cima do ombro. Foi aí que ela lembrou daqueles olhos vazios. Daquele maldito… Tampinha. Estava tão incrédula que não conseguia se mover e as folhas metálicas fecharam a sua frente, tapando a visão de algo que estava prestes a se tornar seu pior pesadelo: aquele sorriso.