VIII.

A primeira vez que viu aquele garoto foi quando estava voltando da escola com sua babá. Tinha 6 anos. Não tinha muitos amigos na sua turma, era mais próxima da professora do que dos colegas. Mas no grande esquema das coisas, era feliz assim. Até então tinha sido só ela e seu pai, Matthew Hanford. Ele sempre a ensinou a aproveitar as coisas sozinha. Tinha todos os brinquedos que queria, a melhor educação que o dinheiro poderia pagar, comidas da melhor qualidade… Tinha aulas de pianos nas terças e quintas depois da aula, mas naquela tarde, sua professora havia ligado para avisar que iria se atrasar. 

Amelia sentou-se na calçada e ficou observando um grupo de crianças que passava andando de bicicleta, abraçada em seus joelhos. Era o início da primavera e as folhas das árvores da rua estavam mais verdes do que nos anos passados. Aquele bairro era calmo, no subúrbio de Staten Island em Nova Iorque, não tinha movimento de carros e havia inúmeros parques. Matthew achou que aquele seria o lugar perfeito para criar sua filha. 

Ela ainda não sabia andar de bicicleta, embora tivesse uma cor de rosa. Gostava mais de ficar com seus lápis de cor e tintas guache. Ali no meio fio, ela puxou seu caderno de desenho e uma caixinha de giz de cera, começando a ilustrar uma das árvores que chamou sua atenção. 

— O que está desenhando? — alguém perguntou ao seu lado. Ela olhou para cima, mas seus cabelos pretos e pesados cobriram seu rosto. Sua mão delicada puxou as madeixas para atrás da orelha. Na época, Amelia pedia para cortar o cabelo na altura dos ombros, assim ela se sentia mais parecida com sua mãe. Quando revelou sua face, o menino que apareceu se surpreendeu com os olhos daquela garota. Ela apontou para a copa da árvore que pintava com giz verde claro. 

Ele olhou rapidamente para a direção que ela apontava mas logo olhou pra ela de novo. Nunca tinha visto olhos como aqueles. 

— Você tá doente? — perguntou, virando a cabeça como um filhote de cachorro confuso. Mais uma vez ela não falou nada, só gesticulou que não. — Por que seu olho é azul?

Ela voltou ao seu desenho, suspirando.

— Porque ele é assim. — respondeu, mexendo os dedos e colorindo as pequenas folhas. 

— E por que seu outro olho é marrom? — perguntou mais uma vez. 

— Porque ele é assim. 

— Ah… — o garoto fez um som de quem havia entendido uma equação matemática muito difícil. — Tá bom. Posso ver seu desenho?

Ele então se sentou ao lado dela observando o que estava no caderno.

— Wow, você desenha muito bem… Quantos anos você tem? — ele perguntou, genuinamente surpreso. 

— Seis. — ela disse sem rodeios. 

—Você tem seis anos e desenha melhor do que eu. — uma risada despreocupada saiu da boca dele. — Eu sou Ethan, eu moro ali naquela esquina. — apontou.

Era uma casa grande como as da vizinhança, mas não parecia tão bem cuidada como as outras. A grama estava um pouco grande e subia por cima do concreto da calçada. O carro que estava na entrada estava arranhado na lateral, como se tivesse passado por um acidente. 

— Amelia. — ela respondeu com seu nome.

Os dois ficaram ali, desenhando e conversando por alguns minutos quando Ethan esticou o braço para pegar a caixa de cores. Sua manga do suéter vermelho que ele usava levantou e ela pode ver uma marca roxa no pulso dele. No momento que ele percebeu o que ela viu, ele puxou sua mão de volta para si, o que assustou a morena e a fez pular derrubando o giz que tinha na mão. O pequeno cilindro verde rolou lentamente até o meio do asfalto. 

— Eu pego. — Ethan disse se levantando. Ali ela notou que seu cabelo parecia cortado em casa com auxílio de uma tigela, mas tinha uma cor bonita quando o sol o iluminava.

O som de correntes de bicicleta e risadas se intensificaram e antes que ele pudesse alcançar o objeto no chão, ele foi despedaçado pelos pneus de um dos meninos que pararam à frente deles.

— Ei, baixinho! É melhor não falar com essa garota. — disse o que parecia ser o líder deles. — Você não viu os olhos dela? Ela é filha de um demônio. 

Ethan era tão excluído quanto ela. E tinha a mesma quantidade de amigos que ela tinha. Que era zero. Foi a primeira vez que aquela turma conversou com ele sem ser para zombar de sua altura. Ele era pouca coisa mais alto do que Amelia, apesar de ter 3 anos a mais. Naquele momento, sentiu que era uma oportunidade de ter amigos. E realmente era, mas ele escolheu as pessoas erradas. 

— E-Eu não tava falando com ela! — ele disse depois de pegar os pedaços do giz de cera no chão e com eles na mão, os jogou na menina, que virou o rosto para se proteger. 

— Amy?! — A voz preocupada do pai dela veio da porta da casa. O homem era alto, tinha os cabelos loiros e os olhos azuis, assim como o direito de sua filha. Ele estava com uma camisa social branca, para fora da calça de alfaiataria. A barba era bem alinhada e complementava os óculos de armação metálica fina. 

— Parece que o papaizinho chegou, vamos embora, galera! — uma das crianças gritou e chamou Ethan para sua garupa. Ele pensou por pouco mais de 5 segundos. 

— Não fala mais comigo, sua… sua aberração! — ele gritou logo antes de fugir com a nova turma, que ria repetindo aquela palavra em tom de provocação.

Enquanto ele se afastava, a menina pode ver o par de olhos negros, como os de um demônio que acabava de a enganar. Aquela foi a primeira vez que sentiu seu coração se partir em uma traição.

Matthew correu até a filha e a pegou no colo, a apertando com força entre seus braços. Seu material de desenho todo caiu no chão, o que só a fez ficar mais triste. Nem tinha percebido que seus olhos estavam vertendo água. O homem abraçou sua pequena por longos minutos e a levou para dentro de casa. Lá ele a colocou no sofá e secou suas lágrimas com um sorriso triste e preocupado. 

— Papa… O que é aberração? — perguntou. O coração do mais velho se partiu ali mesmo. Mais uma vez abraçou aquela criança, sentindo-se culpado por não a ter protegido.

— Algo que você não é, meu grãozinho de arroz. E nunca vai ser, tá bom? — confortou-a, dando um beijo no topo de sua cabeça.

Foi naquele dia que o pai de Amelia pensou que talvez ela precisasse de uma mãe pela primeira vez. Também foi naquele dia que ela se sentiu traída pela primeira vez. 

Quando Amelia completou 8 anos, pediu para seu pai trocar suas aulas de piano por aulas de taekwondo. Ele achou que seria uma boa ideia, mas não a tirou da música. Sua mãe, filha de chineses, iria adorar vê-la procurando uma arte marcial, embora não era a mesma que praticava. Matthew conheceu Eliza em um voo que voltava da China para os Estados Unidos. Sem conseguir se comunicar com as comissárias de bordo, a jovem que sentava no outro lado do corredor se compadeceu da sua situação depois de rir de suas mímicas para pedir uma xícara de café. A viagem de quase 18 horas se passou em um piscar de olhos para os dois que se apaixonaram ali mesmo. O homem a fazia rir como nunca, os funcionários da companhia aérea chamaram a atenção deles por diversas vezes, até os trocaram de assentos, para que não atrapalhassem os outros passageiros.

3 anos depois, já casados, estavam esperando a primeira, e única, filha. No final daquele ano, no início do outono, Eliza deu à luz a Amelia, mas não sobreviveu ao parto. Matthew mal teve tempo de lamentar a morte de sua amada esposa, a paternidade solitária atropelou todos os seus planos, mas ele abraçou aquela nova função, colocando todos os esforços para criar sua pequena. Sua empresa já era bem sucedida e ele sentiu que a melhor escolha seria ficar em casa, como pai em tempo integral. Como um "dono de casa", ele teve que aprender a fazer tantas coisas que nunca tinha feito, sendo cozinhar a mais difícil delas. Depois que tinha saído da casa de sua mãe, só comia fora até que a falecida mulher mudou sua alimentação com maravilhosos pratos caseiros. Mesmo tendo dinheiro para, ele nunca quis contratar nenhum funcionário. Preferia cuidar da sua menina sozinho, para que ela se sentisse amada em todos os momentos. Uma babá só entrou na história quando ela já tinha idade o suficiente para ir a escola e ele então pode voltar a trabalhar.

Amelia era obstinada desde criança. Seu novo professor de luta ficou chocado com o quanto uma criança de apenas 8 anos se esforçava aula após aula. Muitas vezes ela acabava machucando seus colegas durante as práticas, mas nunca propositalmente, era sempre porque executava seus movimentos com perfeição. Seu responsável foi chamado algumas vezes para conversar, mas não tinha razão para repreendê-la. Entretanto, os dois adultos, treinador e pai, tinham preocupações com a motivação da garota. E ela nunca fez questão de esconder.

"Eu quero dar uma surra no menino que me chamou aberração." — era o que respondia sempre que perguntavam porque ela queria aprender taekwondo. Ela já tinha entendido o significado daquela palavra e estava disposta a fazer ele se arrepender de tê-la dito. 

O dia chegou quase 3 primaveras depois. Amelia agora já tinha algumas amigas que aprenderam a lidar com sua assimetria. Em uma tarde de sábado, no final do verão, as 3 garotas estavam sentadas em uma toalha vermelha de bolinhas brancas no gramado da frente de onde Matthew morava. Suas mãos seguravam pequenas xícaras, uma de cada cor, com padrões de ursinhos nas laterais. Haviam alguns livros as acompanhando, e sanduíches bem recheados com folhas de alface escapando pelos lados. Elas sorriam e comentavam sobre o príncipe que salvou a protagonista da história. 

— Será que um dia eu vou me casar com um príncipe? — a voz fina de uma das meninas perguntou. Ela colocou mechas do cabelo loiro como um girassol atrás das orelhas e deu um sorriso tímido, mostrando o espaço que o canino de leite direito tinha deixado para trás. 

— Príncipes não existem, Maxine. — a outra respondeu. Tinha o cabelo crespo, preso em dois coques gêmeos adornados com tranças. Sua boca se curvou em um sorriso e ela levantou uma sobrancelha pressionando a amiga. O joelho estava machucado, com um curativo que não combinava com seu tom escuro de pele. Abby costumava se aventurar encarando lugares que não deveriam ser escalados e constantemente tinha marcas de suas ousadias à mostra. 

— Vai saber… Pode existir algum em um reino encantado e perdido só esperando por mim. — Max rebateu, parecia estar no mundo da lua. — Você também acha que príncipes não existem, Amy?

— Hm? — a morena foi arrancada de seus pensamentos. — Ah, não. Não como nesse livro. 

Ela estava olhando em volta, como se procurasse alguém. Toda a vez que ficava em frente a casa era assim. No começo sentia medo de encontrar quem esperava. Agora era ansiedade. E muita vontade.

E ele deu o ar da graça. Junto com sua trupe. Vários meninos em bicicletas, todos pareciam na faixa de 11 ou 12 anos. Menos Ethan. Apesar de ter a mesma idade que eles, ele era mais baixo que Amelia, mesmo sendo 3 anos mais velho que ela. O som das correias parando em frente às garotas as fez olharem para eles. Risadas e cochichos já vinham dali. 

— Ei! Não sabem que ela é uma bruxa? — A voz de um deles veio de trás do seu inimigo, que estava no comando daquele grupo. — Ela vai jogar um feitiço em vocês! 

Ames se levantou, largando o livro no chão. Seu cabelo ainda tinha o mesmo corte na altura dos ombros, acompanhado por uma franja milimetricamente reta. O rosto, que era branco como porcelana, estava vermelho de raiva. Ela se aproximava deles devagar, mas não parecia assustada.

— Ah, não! A bruxa vai nos amaldiçoar! — outro debochou.

— É melhor não chegar perto, aberração. — Ethan completou. Ela estava tão furiosa que lágrimas de puro ódio começaram a escorrer de seu rosto. Mas aquilo foi como gasolina em uma fogueira. As piadas se intensificaram e agora eles a chamavam de "Amy chorona".

— Eu não sou uma aberração! — ela rosnou, assim que chegou perto do seu objetivo.

— Você é sim. Você e esses seus sonhos bizarros. — Um sorriso provocativo rasgou o rosto de Ethan, que relaxou no assento da bicicleta, cruzando os braços. 

Naquele momento, Abigail já tinha corrido para dentro da casa a fim de chamar um adulto. Mas nenhum chegaria a tempo de parar Amelia. Ela ficou longos segundos olhando para ele como se estivesse olhando para o abismo. E de certa forma, estava. Seus olhos escuros pareciam não ter fundo. E, em um instante, suas mãos agarraram a gola da camiseta listrada de seu nêmesis, o arrancando para fora de seu transporte. Ele deu um grunhido assustado, sem entender o que estava acontecendo, mas antes que pudesse reagir, a garota já tinha começado a dar socos bem dados em seu rosto. 

— Não… me chama… de aberração… nunca mais! Seu tampinha! — a fala dela foi pontuada por golpes. O coro para sua performance, os meninos mais altos, riam e o caçoavam por estar apanhando para uma menina e repetiam o novo apelido que Ethan ganhou. 

E ela ficou lá até que seu pai aparecesse. O homem chamou sua filha diversas vezes no caminho até ela, mas para Amelia, era como se fosse uma voz tão distante. Na cabeça dela, tudo se movia lentamente. Foi a primeira vez que sentiu a mais doce sensação de adrenalina circulando em seu corpo. Quando foi levantada pelos braços de Matthew, ela sorriu, encarando o rosto do garoto, que agora tinha o lábio inferior cortado, o que fez um arrepio mórbido correr por toda a sua espinha. Parecia que ele sabia que tinha acordado um monstro dentro de uma menina.