IX.

A infância de Amelia foi resumida a ser provocada por Ethan, chorar de raiva e bater nele. E ele também chorava. De dor e humilhação. Já não bastava ser o menor da turma, ainda apanhava de uma garota 3 anos mais nova. Enquanto os outros iam amadurecendo, a dupla continuava brigando. Ela ainda lembrava de sua amiga Abby falando que meninos eram assim quando gostavam de uma menina e que se ele realmente a odiasse, não iria mais incomodá-la depois das primeiras surras. Mas ela o odiava. Guardava rancor de cada vez que ele a chamou de aberração. E sempre o ofendia de "tampinha" durante as sessões de punição física. 

As memórias do último verão que o viu ainda estavam frescas na mente de Amy. Ela sabia, pelas fofocas do bairro, que ele também não tinha sua mãe há alguns anos. À noite, às vezes, ela conseguia ouvir os gritos que vinham da casa de Ethan. O pai dele era o completo oposto do seu. Chegava bêbado em casa todas as noites e descontava no filho. Para ele, o jovem era culpado pela morte de sua esposa e por isso se achava no direito de abusar do seu poder. Ele era muito pequeno para revidar os ataques do homem que era muito maior que ele. 

Era uma noite fresca, o dia havia sido ensolarado e quente, mas agora o clima virava. As nuvens ondulavam pelo céu, ofuscando os raios brancos de luz da lua que deixava de ser cheia. A garota saiu de casa para respirar, precisava se afastar de seu pai, que agora falava sobre casar com uma mulher que ele mal conhecia. Ela era feliz daquela forma, por que ele queria trazer outra pessoa para a casa deles? Outra família?! Ela não era o suficiente? O argumento era de que logo ela iria precisar de uma mãe que soubesse como a ajudá-la e seria bom ter irmãos mais velhos para protegê-la. Mas ela discordava. Já tinha conhecido Nellie, e a odiou. Uma mulher dois anos mais velha que seu pai, de cabelos curtos e castanhos. Usava vestidos chiques que mostravam como seu corpo havia se recuperado depois de duas gravidezes. Sua boca e nariz deixavam claro que já tinha passado por alguns procedimentos estéticos. E o decote gritava por atenção ao peito artificialmente moldado. O que ela mais odiava, porém, era a forma como sua boca se esticava quando ela fala seu nome como se fossem amigas há anos. Toda a vez que sua voz estridente a chamava, ela sentia em seu âmago que era um demônio a chamando. Matthew, entretanto, achava que era apenas ciúmes e que logo as duas se acertariam. Afinal, Nellie era uma mulher incrível. 

Amelia estava sentada no meio fio, com um pijama composto por um short e uma camisa de botões, feitos de um tecido rosa com coelhinhos bordados em branco. Os pés descalços sentiam o asfalto enquanto ela abraçava seus joelhos. O vento era quente, trazia uma tempestade. Mas ela sabia que aquela não seria a única tempestade chegando. Seus pensamentos só foram desviados de sua ansiedade quando ouviu gritos que vinham do outro lado da rua. Não conseguia compreendê-los, embora tentasse. A entrada da calçada da casa da esquina foi iluminada pela luz amarela que vinha de dentro quando a porta foi aberta. E de lá, Ethan saiu. Ela conseguiu ver seu olho esquerdo roxo logo antes de suas mãos puxarem o capuz do agasalho vermelho.

Seus olhares se encontraram e ela rapidamente desviou, focando de volta no chão. Ethan suspirou, um pouco envergonhado. Não esperava que ela estivesse ali, muito menos que tivesse visto seu rosto daquela forma. Ele caminhou vagarosamente até que seus tênis pretos ficassem no campo de visão de Amelia. 

— Será que pode não me bater hoje? — a voz dele estava um pouco rouca, como a de alguém que ficou horas falando, ou berrando, sem parar. 

— Se não me incomodar…— respondeu, encolhendo os ombros.

Ele se agachou e sentou ao lado dela.

— O que está fazendo fora de casa uma hora dessas?

— Eu poderia perguntar o mesmo para você. — bufou. Ele estava estranhamente menos babaca do que o de costume. 

— Fugindo do meu pai… — ele disse antes de suspirar.

— É, eu também… — Amelia desarmou o tom. 

Por longos minutos eles ficaram em silêncio, com respirações inconformadas. E aquilo era o que os dois precisavam. Não se sentirem sozinhos naquele momento. Um vento gélido fez os cabelos de Amelia balançarem em ondas. Ethan se pegou prestando atenção na forma como eles dançavam e como ficavam bonitos contra a pele clara da garota. 

— Meu pai quer se casar… — ela quebrou o silêncio. Ele esperou ela continuar, não sabia o que poderia perguntar sobre o assunto sem a deixar irritada. — Ele acha que preciso de uma mãe e irmãos para cuidar de mim e me proteger… 

— E você não quer? 

— Não. Eu gosto de como as coisas são. 

— E já tentou falar isso para o seu pai? 

— Já! Mas ele acha que eu estou exagerando…

Ethan não sabia o que falar. Ele não tinha esse tipo de relação dentro da sua casa. Talvez ela estivesse realmente exagerando? Afinal ela era mimada, rica e vivia uma vida fácil que ele jamais teria noção de como era. Mas ele respeitou a dor da menina. A garota estava prestes a completar 12 anos, no início do próximo outono. Seriam os três meses que eles teriam apenas dois anos de diferença. Mas ela não estava ansiosa para seu aniversário, pois dessa vez, sua madrasta estaria presente. Cada dia que precisava conviver com ela era uma tortura. 

— Eu não sei… Sinto uma coisa ruim no peito quando estou com ela… — completou.

Ele murmurou concordando. Mostrava que estava ouvindo. Para ele, ela estava surpreendentemente aberta a conversar. Naquele momento, ele se lembrou de quase 6 anos atrás quando os dois se sentaram juntos naquela calçada, durante uma tarde de uma primavera colorida. Por um instante, ele se arrependeu. 

— Meu pai chegou bêbado em casa… De novo. — o garoto retribuiu a confiança dela. 

Ethan não a odiava. Ele a invejava. Apesar de crescer no mesmo bairro que ela, sua vida era completamente diferente. Sem aulas particulares, materiais de desenho ou festas do chá com amigos. Ele perdeu a mãe para um câncer agressivo com 3 anos e depois disso, seu pai Gregor, virou um alcoólatra violento, viciado em apostas. Ele perdeu todo o dinheiro da família em pouco tempo, além de nunca ter um emprego estável. A única coisa que tinha sobrado era a casa onde eles moravam, que estava no nome da mãe e ela legalmente passou para o filho, impedindo que o homem a vendesse. Isso só o deixava ainda mais rancoroso e vingativo. O abuso começou com tapas esporádicos e muitos xingamentos. E foi só piorando ao longo dos anos. Às vezes, ele passava semanas sem aparecer pela rua por não querer que os outros vissem as marcas da brutalidade que sofria. Tudo isso fazia com que ele sentisse raiva da vida de Amelia. Ele também queria ter um pai amoroso que cuidasse dele depois da morte da mãe. Obviamente, ele não tinha maturidade para reconhecer seus sentimentos. Era mais fácil apenas tornar a vida da garota um pouco mais parecida com a sua.

— Foi ele que te bateu? — perguntou a morena, tentando achar a frase certa para dizer naquele momento. Ele confirmou com a cabeça. Ela sabia que tinha sido feio para ter deixado um roxo tão grande. Sua mente lembrou da vez que viu Gregor descendo do sedan velho que tinha. Era um homem largo, grande. Bem mais alto que seu pai. Parecia um viking com os cabelos loiros compridos até os ombros e a barba desgrenhada. Os olhos eram tão frios quanto os do filho. 

— Mas foi tranquilo dessa vez… Ele estava tão tonto que errou várias vezes. — ele disse, soltando um riso curto e debochado, mas carregado de decepção. 

— Você gosta dele?

Ethan foi pego de surpresa. Era óbvio que não. Ele o odiava e ressentia cada ato daquele homem. Mas nunca deixou ninguém saber daquilo, afinal, ele era sua única família e sempre ouvia como deveria amar o mesmo sangue. 

Amelia notou que ele não respondeu. Mas no fundo ela já sabia a resposta. 

— Por que você não foge? — perguntou, olhando para o céu. Não tinha coragem de encará-lo depois daquela pergunta. 

— E pra onde eu iria? — era uma dúvida genuína. Quem sabe ela tinha um plano mais concreto. 

— Não sei… Mas qualquer lugar parece ser melhor do que onde está agora. — A voz dela era suave. Ela não o julgou por não querer estar perto do progenitor. Foram alguns segundos de uma segurança que ele carecia de sentir há muitos anos. 

— Amy! — Matthew chamou a filha da porta de casa.

Ela se virou para ele, que gesticulou com a mão para que voltasse para dentro. 

— Eu preciso ir. A gente conversa amanhã. — disse se levantando, dando tapas na bunda para tirar a poeira do pijama. Naquele momento Ethan percebeu o tecido delicado do que ela estava vestindo. Seu rosto corou um pouco quando seus hormônios o deixaram tonto, vendo como a garota estava amadurecendo. 

— Que roupa é essa?! — ele perguntou, debochando. 

— Cala a boca, tampinha. — rosnou, revirando os olhos. Ele não teve a chance de desejar boa noite, a garota saiu correndo, encabulada, em direção a quem esperava na entrada. 

Mas ele não apareceu no dia seguinte. O que ela viu foi uma intensa movimentação de sirenes na frente daquela casa. Não só de policiais como de uma ambulância. Quando chegou da escola, no final da tarde, ela ficou olhando de longe. Ethan estava na entrada, de braços cruzados, respondendo algumas perguntas de um homem uniformizado com uma jaqueta do Departamento de Polícia de Nova Iorque. Por algum motivo, seu peito ficou apertado. E esse sentimento aumentou ainda mais quando viu paramédicos carregando uma maca coberta em branco porta afora. Não precisava pensar muito para entender o que era aquilo. 

Durante a noite daquele dia, Amelia esperou sentada na calçada. E durante todas as noites daquela semana. E da próxima. Ela até via as luzes do quarto do garoto acesas por um tempo, mas ele nunca saia. De lá, ele a via pelas frestas da persiana. Uma vontade de ir correndo até ela e contar o que estava sentindo sem ter medo. De explicar pra ela o alívio que sentiu quando chegou da aula e viu seu pai estirado no chão sem respirar. Como sentia que poderia viver em paz… Mas o medo que estava agarrando seu coração. E agora? Pra onde ele iria? Não tinha tios ou avós… Os paternos já haviam morrido há muitos anos… E os maternos deserdaram sua mãe quando ela apareceu grávida sem ter terminado a faculdade de medicina. Porém, quando ele a olhava lá… Esperando por ele… Sentia-se seguro. 

Na terceira semana, durante a sexta, o pai de Amelia preparou um jantar com amigos da família e algumas das colegas da filha para comemorar seu aniversário. Havia uma pilha de presentes no canto da sala, crianças corriam por entre os sofás, mas ela não saía da janela. 

— O que está olhando? — Abby perguntou, com um prato decorado com uma fatia de bolo na mão. 

— Nada, só… Cuidando a noite. — a voz dela tremeu um pouco enquanto contava aquela mentira.

— Sei… — a voz da amiga mostrava que ela não tinha acreditado nas palavras que ouviu. — Vem, sua mãe tá cortando o bolo. 

— Ela não é minha mãe. — Os olhos de Amelia se estreitaram enquanto ela falava entre os dentes. 

— Ainda, né? Mas ela tá usando aquele anel enorme, logo marcam o casamento.

— Ela não é minha mãe! — gritou. Um silêncio tomou conta daquela sala e todos prestavam atenção na garota. — Ela não é minha mãe. Ela nunca vai ser minha mãe! 

Matthew notou a filha ofegante, com raiva, a fitando com um olhar de desaprovação. Foi a primeira vez que ela viu aquela face contorcida daquela forma. Então ele se virou para a mulher, agora sua noiva, com um tom conciliador.

— Nellie… Eu sinto muito, eu não sei porque ela falou algo assim…

Ver seu pai desculpando para mulher que odiava fez seu coração se partir em mil pedaços, como um cristal sendo estilhaçado. A dor foi tanta que ela saiu correndo daquele local e na saída de casa se deparou com Ethan, a esperando, sentado no meio fio. Quando ele se virou para ela, mirou em seus olhos que estavam prestes a transbordar. E era diferente das vezes que ela chorava de raiva. O peito dela subia e descia rapidamente, em pânico. Sem pensar muito, ele agarrou a mão da mais nova e a puxou enquanto começava a correr. 

Ela relutou por um momento, travando seus passos com pés firmes. 

— O que está fazen- Para onde vamos?! — perguntou confusa. 

— Qualquer lugar parece ser melhor do que onde está agora. — a voz dele saiu com um tom calmo, por entre os lábios que desenhavam um sorriso acolhedor. 

Ela reconheceu a frase que havia dito e soube que podia confiar nele. Eles dispararam rua abaixo e uma sensação de liberdade os atingiu como o choque de uma onda gelada na praia. O coração de Amelia parecia estar flutuando em seu peito, acolhido por todas as borboletas que voavam em espiral em sua barriga. Aquela segurança que estavam sentindo naquele momento… Não tinha como explicar. Ethan a puxou por entre um bosque que ficava a oito quadras de distância de lá.