Por entre as árvores era quase impossível enxergar, mas ele parecia saber onde estava indo. Seus movimentos eram mais lentos e tudo o que se ouvia era o som do vento nas folhas dos pinheiros altos e a respiração ofegante da dupla. A mão do garoto estava suada, mas ele apertava os dedos de Amy com força, determinado a não soltá-la de forma alguma.
Após alguns minutos mata adentro, a lua iluminou uma pequena casa na árvore, parecia construída há muito tempo atrás. Era alta, com madeiras escuras e uma escada de corda. Haviam cipós pendurados nas laterais do telhado que já dava sinais da idade. O jovem conduziu a morena até a entrada e indicou para que ela subisse enquanto recuperava o fôlego.
— Vai você primeiro… — ela protestou, segurando a roupa. Estava de vestido e queria evitar qualquer constrangimento.
— Não dá pra enxergar nada… Vai logo! Se você cair, eu vou estar aqui pra te segurar.
Amy pensou em rebater, mas ainda estava anestesiada com o que sentia. Ela escalou até a plataforma de madeira e ele foi logo atrás. O teto era baixo, forçando os dois a ficarem um pouco curvados. O garoto levou a mão até o chão, puxando uma porta de um compartimento quadrado. Ali ele desenrolou uma lona e tirou uma lanterna e dois cobertores velhos, com estampas em xadrez mas de cores e padrões diferentes. Depois de iluminar o local, ele entregou o aparelho para a mais nova e estendeu os cobertores para que eles pudessem sentar nos mesmos.
— Que lugar é esse? — ela perguntou, enquanto se ajeitava.
— Era o esconderijo da minha mãe. — disse, depois de cruzar as pernas e se escorar na parede. — Ela cresceu no bairro ao lado do nosso… Quando era criança, ela e meu avô construíram esse lugar… Eu achei um mapa nos diários dela. Virou o lugar para onde eu fugia quando não queria ver meu pai.
Naquela luz baixa, Ethan finalmente pode ver as vestes de Amy. Era um vestido preto, de mangas compridas, de veludo, que abria em uma saia rodada. As pernas estavam cobertas por uma meia calça, também negra, que agora estava rasgada na altura da panturrilha. Os pés eram delicadamente adornados por um tênis Converse, de sola reta.
Ele ficou encantado com como ela estava linda.
— O que está olhando? — ela perguntou, levantando uma sobrancelha.
— O que? Nada! — ele limpou a garganta. — Está melhor agora? Aqui você pode chorar se quiser…
Quando ele disse aquelas palavras, ela lembrou do porque tinha saído correndo de seu jardim. O peito se apertou ainda mais quando lembrou da expressão de seu pai. Foi difícil segurar as lágrimas em seus olhos.
— Ele… Ele vai me trocar por ela… — os lábios trêmulos despejaram a insegurança no garoto, que queria dizer alguma palavra de conforto, mas era impossível. O que ele poderia fazer?
As gotas que escorriam pelo rosto de porcelana de Amelia eram como minúsculos diamantes refletindo a luz do luar.
— Eu não quero… Ficar sozinha… — soluçou.
Aquela dor ele conhecia. Talvez ela não tivesse passado pelo que ele passou… Mas o medo da rejeição, do abandono… Ele conhecia bem aquele sentimento. Ali, naquele imenso escuro, ele ficou a olhando se derramar em sua frente.
Seu coração acelerou vendo a fragilidade da menina que lhe dava uma surra toda semana. Como ela parecia pequena agora, mesmo sendo do mesmo tamanho que ele. Por mais de uma hora ele ficou vendo aquela cena, com curiosidade, interesse… Mas com empatia e carinho.
E sem pensar muito ele se ajoelhou ao lado dela, agarrou seus ombros e a trouxe para seu peito. O choro só se intensificou enquanto ela agarrava o tecido do casaco de moletom que ele usava. Sua mão foi até o topo da cabeça dela, deslizando pelos cabelos pretos, em um carinho trêmulo.
— Eu… Não quero ficar sozinha… — repetiu enquanto ela se acalmava no conforto dos braços dele.
— Você não vai ficar sozinha…— respondeu, a apertando ainda mais contra seu corpo. — Eu sempre vou voltar pra você… Quando se sentir sozinha.
Os sussurros dele a faziam respirar mais devagar, para ouvir com mais atenção. Aquelas palavras tinham um peso enorme para os dois, pois ambos tinham medo daquilo não se concretizar. Para Ethan, era ainda mais difícil, pois ele sabia que… Aquela era a última vez que ele a via. Na manhã do dia seguinte o serviço social viria buscá-lo. Já que nenhum responsável apareceu, ele iria para o sistema de adoção.
— Promete? — o queixo de Amelia se apoiou no peito dele enquanto seus olhos o encontraram. E ele a viu ali, tão perto… Por algum motivo algo dentro dele se derreteu com aquela expressão tão pura…
E antes que ele pudesse responder, sua mão, que estava gelada pelo nervosismo, acariciou a bochecha vermelha e úmida em lágrimas da mais nova e então a puxou, passando a ponta de seu nariz pelo dela e, enfim, colando seus lábios nos dela. Nenhum deles sabia bem o que fazer, mas ainda assim, Ethan foi gentil, a deixando livre para recuar. O que o surpreendeu foi que quando ele se afastou, seu rosto estava coberto em rosa. Seus olhos ainda estavam fechados e a boca entreaberta, como se ela esperasse por mais. E ele lhe deu mais um beijo, e mais outro…
O nervosismo os forçou a parar depois de alguns minutos, mas Amy não o soltou. Apenas ficou abraçada, o apertando. Os joelhos do garoto doíam, mas quando tentou afastá-la, ela apenas o agarrou mais forte. Aquela não era mais a menina que tinha conhecido há 6 anos. Ou talvez tivesse voltado a ser ela. Então, sem a soltar, ele a puxou enquanto se sentava, a fazendo sentar-se ao seu lado. E ali ele aproveitou para contemplar o que tinha acabado de acontecer. Seu primeiro beijo tinha sido com a garota que lhe batia e o chamava de tampinha.
Amelia só o soltou quando sentiu os raios de sol tocarem suas pálpebras, a arrancando de um sono profundo. E ele acordou com um susto causado pelo movimento abrupto dela.
— Você tá bem…? — perguntou bocejando.
— Tá amanhecendo… A gente tem que voltar… — ela disse com um certo pesar na voz. Ele também não queria que aquela manhã chegasse. Queria ter tido coragem de contar a verdade para ela.
Em silêncio organizaram o esconderijo de volta ao seu jeito original e seguiram o caminho de volta. Enquanto caminhavam por entre as árvores, Ethan a segurou pela mão novamente, mas quando chegaram de volta ao bairro ela o soltou. Ali ele entendeu que o curto sonho de uma noite tinha acabado.
A manhã estava gelada, recepcionando os primeiros sinais do outono. Quando viu a garota se sacudir em um calafrio, ele imediatamente tirou seu casaco e colocou em volta dos ombros de Amy, que deu um leve sorriso em agradecimento. A dupla caminhou até chegar à rua onde eles moravam. De lá, dava para enxergar duas viaturas da polícia estacionadas na frente da casa de Matthew, com as luzes azuis e vermelhas piscando macabramente.
— Seu pai ficou preocupado… — Ethan quebrou o silêncio, com um sorriso desajeitado.
— É o que parece… — ela completou, cruzando os braços e se encolhendo entre o tecido do casaco vermelho de moletom.
O homem estava sentado no degrau de casa, com a cabeça entre as mãos.
— Senhor Hanford? — um policial fardado chamou a atenção dele. — Aquela é sua filha?
Os olhos dele desviaram para a garota que subia a calçada acompanhada do vizinho. Em segundos ele já estava em pé, correndo em direção a ela e a abraçando com toda a sua força.
— Amy, pelo amor de Deus… Não faz mais isso com seu pai…— ele suplicou, apertando como nunca. — Eu fiquei tão preocupado, minha filha…
— Você não… Tá bravo? — a voz dela saiu um pouco baixa por entre os braços dele.
— É claro que estou. Furioso! — ele se afastou, segurando seus ombros para olhá-la nos olhos. — Mas estou muito mais feliz que estou te vendo de novo.
Ela sorriu, um pouco desconcertada.
— Mas você vai ficar de castigo. Pra sempre! — ele disse rindo com os olhos marejados.
— Tá bom, pra sempre…
Enquanto eles caminhavam de volta para casa, Amelia deu uma última olhada para trás. O sol ainda estava nascendo e batia gentilmente sobre os cabelos dourados de Ethan, que estava parado com as mãos nos bolsos do jeans que usava. Ele sorriu de leve, acenando. Ela retribuiu o gesto.
— Até mais, aberração. — ele falou baixinho, mas ela pode ler seus lábios.
— Até, tampinha. — respondeu.
Ela ainda não sabia, mas aquela seria a última vez que o veria.
Quando o foi procurar de novo, a casa já estava vazia. Seu pai lhe explicou o que tinha acontecido e que ele seria adotado por outra família onde ele poderia ser feliz. Ele falava como se estivesse conversando com uma criança de 5 anos… Mas ela entendeu bem a gravidade da situação. Sabia que nunca mais poderia conversar com ele, ou abraçar ele… Ou beijar ele… Ela ficou ainda mais magoada quando percebeu que ele provavelmente sabia que aquilo iria acontecer e mesmo assim ele roubou seu primeiro beijo e foi embora. Ele tinha a deixado sozinha. Mas… Ele não chegou a prometer… Então aquelas palavras eram vazias. Mas ele queria cumprí-las. Seu plano sempre foi voltar para ela o mais rápido possível.
Mas não aconteceu.
Pelo menos por 14 anos.
Aquela lembrança estava tatuada em sua mente há muitos anos.
Como ele tinha mudado tanto? Ele tinha a mesma altura que ela e agora tinha facilmente mais de 1,90m. O corpo que era magro agora estava definido e musculoso. E depois de ter a abandonado como ela tinha coragem de aparecer assim, no seu meio, na organização que ela fazia parte… Depois de 14 anos sem notícias… Ele só podia ser maluco.
As mãos começaram a apertar o botão para abrir as portas do elevador freneticamente, e assim que a abertura ficou grande o suficiente para que ela passasse, ela o fez, caminhando com passos rápidos até o homem que a deixou sozinha. Não podia ser real. Não era ele. Aquilo era uma brincadeira de mal gosto. Quando o alcançou, passou a caminhar um pouco mais a sua frente para mostrar que era ela que mandava ali.
— O que você tá fazendo aqui? — ela perguntou, o conduzindo pelo saguão principal.
Ele não conseguiu segurar um riso com aquela reação.
— Trabalhando, oras… — disse em um tom debochado.
— Por que aqui?! Como raios você veio parar nesse lugar? — a voz da garota demonstrava sua irritação e impaciência.
— Eu devo dizer que fiquei chateado de você não lembrar de mim… Ou será que já esqueceu seu primeiro am-
— Shh! — ela parou abruptamente, se virando para ele com o dedo indicador sobre os lábios. — Não ouse falar do meu passado aqui. — ordenou, sussurrando.
Ele levantou uma sobrancelha, confuso, mas levantou a mão direita em rendição. Amelia fez um gesto de aprovação com a cabeça e voltou a caminhar em direção ao outro elevador de uso exclusivo do alto escalão da organização. Durante o caminho, um dos subordinados de terno a cumprimentou:
— Bom dia, senhorita Jones.
Como se não tivesse ouvido, ela apenas passou reto por ele, já passando pelas portas metálicas e apertando o número do seu andar. E assim que se viu sozinho com Amelia, Ethan deu alguns passos em direção a ela, colocando o braço definido por cima de seu ombro e a prensando contra a parede.
— Você realmente esqueceu de mim, "Senhorita Jones?"— ele perguntou com o tom de voz grave, olhando diretamente para os olhos assimétricos da menor. Ele jamais imaginou que a poderia vê-la de cima, daquela forma. Depois de anos sendo chamado de "tampinha", até que era uma visão bem confortável.