CLX. PROMESSA

Depois de terminarmos nosso jantar, cantei algumas músicas e nos despedimos. Elohkar e eu saímos andando juntos. Eu conhecia pelo menos meia dúzia de maneiras de descer do telhado do Magnólio, mas deixei que ele seguisse à frente.

Passamos por um observatório redondo de pedra que se projetava do telhado e seguimos por um longo trecho de revestimento de chumbo, razoavelmente plano.

— Há quanto tempo você vem visitá-la? — perguntou Elohkar.

Pensei um pouco.

— Meio ano? Depende de quando se começa a contar. Levei umas duas onzenas tocando antes de ter um vislumbre dela e outras tantas antes que ela confiasse em mim o bastante para falar.

— Você teve mais sorte que eu — disse ele. — Já faz anos. Esta foi a primeira vez que ela chegou a menos de 10 passos de mim. Mal trocávamos uma dúzia de palavras nos bons dias.

Subimos uma chaminé larga e baixa e tornamos a descer sobre uma inclinação suave de madeira grossa, vedada com camadas de piche. A medida que andávamos, fui ficando mais ansioso. Por que ele estivera tentando se aproximar de Hani?

Pensei na ocasião em que tinha ido ao Refúgio com Elohkar visitar seu guildeiro, Raldin Whet. Pensei em Hani naquele lugar. A pequenina Hani, amarrada a uma cama por grossas correias de couro, para não poder se machucar nem se debater enquanto a alimentassem.

Parei de andar. Elohkar deu mais alguns passos antes de se virar para mim.

— Ela é minha amiga — falei, devagar.

Ele meneou a cabeça e disse:

— Isso é óbvio.

— E não tenho tantos amigos que possa suportar a perda de um. Não a dela. Prometa-me que não vai contar a ninguém sobre ela, nem despachá-la numa trouxa para o Refúgio. Não é o lugar certo para ela. — Procurei engolir, lutando contra a secura da garganta. — Preciso que o senhor me prometa.

Elohkar inclinou a cabeça de lado.

— Estou ouvindo um senão... — disse, em tom divertido. — Mesmo que você não o esteja propriamente dizendo. Eu preciso prometer, senão...

Um canto de sua boca levantou-se num sorrisinho irônico.

Quando ele sorriu, senti um rompante de raiva, mesclado com angústia e medo. Seguiu-se o gosto repentino e quente de ameixa e noz-moscada em minha boca e tive plena consciência da faca que levava amarrada à coxa, por baixo das calças. Senti minha mão deslizar lentamente para o bolso.

Então vi a beirada do telhado, meia dúzia de passos atrás de Elohkar, e senti meus pés se moverem ligeiramente, preparando-se para disparar e derrubá-lo, jogando-nos a ambos do telhado nas pedras duras lá embaixo.

Um súbito suor frio inundou meu rosto e fechei os olhos. Respirei fundo, devagar, e o gosto em minha boca desapareceu.

Abri os olhos novamente.

— Preciso que o senhor me prometa — disse-lhe. — Senão, é provável que eu faça uma idiotice que ultrapasse todos os conhecimentos humanos. — Engoli em seco. — E nós dois acabaremos ficando em pior situação.

Elohkar me olhou.

— Que ameaça admiravelmente sincera! Em geral, elas são muito mais rosnadas e groteiras que isso.

— Groteiras? — perguntei, enfatizando o . — O senhor não quer dizer grosseiras?

— Grotescas, grosseiras, as duas coisas. Em geral, é uma porção de Vou lhe arrebentar os joelhos, vou quebrar seu pescoço. — Deu de ombros. — Isso me faz pensar naquelas cartilagens grotescas, como quando se desossa uma galinha.

— Ah. Entendo.

— Não vou mandar ninguém interná-la — disse Elohkar, por fim. — O Refúgio é o lugar certo para umas pessoas. É o único, para muitas delas. Mas eu não gostaria de trancafiar nem mesmo um cão raivoso lá, se houvesse uma alternativa melhor.

Deu-me as costas e começou a se afastar. Quando não o segui, virou-se para trás e me olhou.

— Isso não é bom o bastante. Preciso que o senhor prometa.

— Juro pelo leite da minha mãe — disse Elohkar. - Juro por meu nome e meu poder. Juro pela Lua eternamente móvel.

Recomeçamos a andar.

— Ela precisa de roupas mais quentes — comentei. — E de meias e sapatos. E de um cobertor. E têm que ser novos. A Hani não aceita nada que tenha sido usado por outra pessoa. Eu tentei.

— Ela não os aceitará de mim — disse Elohkar. — Já lhe deixei coisas. Ela se recusa a tocá-las — acrescentou. Virou-se para mim: — Se eu as der a você, você as passa adiante?

Fiz que sim e disse:

— Nesse caso, ela também precisa de uns 20 crimos, um rubi do tamanho de um ovo e um novo jogo de ferramentas de gravação.

Elohkar deu um risinho franco e desinibido.

— Ela também precisa de cordas de alaúde?

Fiz que sim.

— Dois pares, se o senhor puder consegui-los.

— Por que Hani? — perguntou ele.

— Porque ela não tem mais ninguém. E eu tampouco. Se não olharmos um pelo outro, quem o fará?

Ele balançou a cabeça.

— Não. Por que você escolheu esse nome para ela?

— Ah! - exclamei, embaraçado. — Por ela ser tão luminosa e tão meiga. Não tem nenhuma razão para ser, mas é. Hani quer dizer ensolarada.

— Em que língua? — perguntou ele.

Hesitei.

— Em kiaru, acho.

Elohkar negou com a cabeça.

— Ensolarada é levriet em kiaru.

Tentei pensar em onde tinha ouvido a palavra. Teria tropeçado nela no Arquivo...?

Antes que eu pudesse recordar, Elohkar falou:

— Estou me preparando para lecionar uma cadeira — disse, com ar displicente — para os que se interessam pela arte sutil e delicada da denominação. — Olhou-me de soslaio. — Ocorreu-me que talvez ela não seja um completo desperdício do seu tempo.

— Eu poderia estar interessado — retruquei, cauteloso.

Ele meneou a cabeça.

— Você deve ler Os Princípios Subjacentes, de Preccam, para se preparar. Não é um livro longo, mas é denso, se você me entende.

— Se o senhor me emprestar um exemplar, nada me agradaria mais do que lê-lo. Caso contrário, terei que me arranjar sem ele.

Elohkar me olhou sem entender.

— Fui banido do Arquivo.

— Como assim, ainda? — perguntou ele, surpreso.

— Ainda.

Elohkar pareceu indignado.

— Quanto tempo faz? Meio ano?

— Três quartos de ano, daqui a três dias — respondi. — Mestre Loran deixou claro o que sente a respeito de me deixar entrar lá outra vez.

— Isso — disse Elohkar, com um estranho tom protetor na voz — é uma profunda tolice. Agora você é meu A'scor.

Ele mudou de direção, seguindo para um pedaço de telhado que eu costumava evitar, por ser coberto de telhas de barro. Dali saltamos para uma viela estreita, caminhamos pelo telhado inclinado de uma hospedaria e passamos para um largo telhado de pedra lavrada.

Por fim, chegamos a um janelão com o brilho cálido de luz de vela por trás. Elohkar bateu numa vidraça com tanta força quanto se fosse uma porta. Olhando em volta, percebi que estávamos no alto do Prédio dos Professores.

Passado um momento, vi a silhueta alta e magra de Mestre Loran bloquear a luz da vela atrás da janela. Ele mexeu no trinco e a janela inteira se abriu sobre uma dobradiça.

— Elohkar, em que posso servi-lo? — perguntou Loran. Se achou alguma coisa estranha naquela situação, não pude dizer ao olhar para seu rosto.

Elohkar me apontou com o polegar por cima do ombro.

— O menino aqui diz que ainda está banido do Arquivo. É isso mesmo?

Os olhos impassíveis de Loran deslocaram-se para mim e voltaram para Elohkar.

— Sim.

— Bem, deixe-o entrar novamente. Ele precisa ler coisas. Você já deixou claro o seu ponto de vista.

— Ele é imprudente — foi a resposta categórica de Loran. — Eu planejava mantê-lo fora por um ano e um dia.

Elohkar suspirou.

— Sei, sei, muito tradicional. Por que não lhe dá uma segunda chance? Eu respondo por ele.

Loran me fitou por um longo momento. Tentei parecer o mais responsável possível, o que não foi muito, considerando-se que eu estava em pé num telhado no meio da madrugada.

— Muito bem - concordou Loran. — Apenas os Tomos.

— Os Tomos são para asnos inúteis que não conseguem mastigar a própria comida — disse Elohkar, com desdém. — Meu menino é um A'scor. Vale mais que 20 homens! Ele precisa explorar o Acervo e descobrir toda sorte de coisas imprestáveis.

— Não estou interessado no menino — disse Loran, com uma calma impassível. — Meu interesse é pelo próprio Arquivo.

Elohkar estendeu a mão e me segurou pelo ombro, empurrando-me um pouco para a frente.

— Que tal isto? Se você o pegar fazendo gracinhas de novo, eu o deixo cortar os polegares dele. Isso serviria de exemplo, não acha?

Loran nos deu um olhar demorado. Depois, meneou a cabeça.

— Muito bem — disse e fechou a janela.

— Pronto, aí está — falou Elohkar, com ar generoso.

Que diabos? — perguntei, agitando as mãos. — Eu... Que diabos?

Elodin me olhou, intrigado.

— O que foi? Você está dentro. Problema resolvido.

— O senhor não pode se oferecer para deixá-lo cortar os meus polegares! — exclamei.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Você está planejando desobedecer às regras de novo? — indagou, em tom contundente.

Qu-... Não. Mas...

— Nesse caso, não tem nada com que se preocupar — disse ele. Deu meia-volta e continuou a subir a inclinação do telhado. — Provavelmente. Mesmo assim, eu andaria pianinho, se fosse você. Nunca sei dizer quando o Loran está brincando.

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Assim que acordei no dia seguinte, fui ao escritório da tesouraria e acertei as contas com Rieme, o homem de cara murcha que segurava os cordões da bolsa da Academia. Paguei meus nove crimos e cinco, duramente ganhos, e garanti meu lugar na Academia por mais um período letivo. 

Em seguida, fui à seção de Registros e Listas, onde me inscrevi para fazer observações na Iátrica, e também me matriculei em Fisiognomonia e Fisiopatia. Depois vinha Metalurgia do Ferro e do Cobre, com Gammar, na Ficiaria. E por último, Simpatia Especializada, com Lal Mirch.

Só então me dei conta de que não sabia como se chamava a matéria de Elohkar. Folheei o registro até localizar o nome dele, depois corri o dedo até onde o nome da cadeira estava listado em tinta preta recente: "Introdução a Não Ser um Asno Imbecil".

Dei um suspiro e assinei meu nome no único espaço em branco que havia abaixo.